17 setembro 2012

Poemerda à Civilização


dente
cariado
dentre
caído
quedado
por dentro

destecla
de piano
de
cadência
de marcha
de fúnebre

de década
em década
de cágono
desmontado
a com passo
de cágado

peito
desfeido
de peido

engasgo
gago
caco
caralho

falo falhado
de falácia
de falência

a humanaidade...
farelo
e decadência.

14 setembro 2012

O que ouve?


silêncio
no que há em torno
do que me vou tornando

observa
(silente)
há um som oculto
em tudo
que  não se revela..
(a chama que queima
surge do o quê da vela?)

aquilo que desejo
deseja em mim de qual onde?
por que desejo um algo
e não outro
que se esconde?
e o que não desejo
por que silencia?

o que é então que calava
pelo entre
da tua voz que sorria?...

o que forma tornados em torno?
o que houve naquilo que ouve?
qual o distante
do que se é longe?

há algo mais
ou de menos?
verbo que verba somente sinais
que algo que há na tua voz
para um vós
que não me escutais?...

13 setembro 2012

Europa: outro imenso passo atrás*

O texto aqui postado foi retirado do jornal Sul21(aqui). Excelente jornal digital de Porto Alegre, de altíssimo nível e confiabilidade, bem diferente de alguns que conheço. A qualidade do jornal é tão alta que publicou o meu texto abaixo sobre Brahms e Goethe. Brincadeiras à parte, o texto de Antonio Martins aqui postado chamou-me um tanto a atenção porque já há um bom  tempo venho afirmando aqui no blog que a Europa vem passando por um período de ostensível decadência, tanto no aspecto sócio-econômico quanto no cultural. Algo, no mínimo, preocupante, pois todos sabemos que os países europeus servem de modelo para a quase totalidade do mundo ocidental. As últimas grandes crises e momentos de decadência europeias resultaram na 1ª e na 2ª Guerras Mundiais. O texto a seguir corrobora e amplia minhas afirmações. Vamos a ele:


"As hipóteses de pensadores como Manuel Castells e Ignacio Ramonet, que enxergam recrudescimento da luta de classes na Europa e riscos de retrocesso social profundo, ganharam nova força nos últimos dias. Na terça-feira (4/9), o jornal londrino The Guardian vazou o conteúdo de uma carta-ultimato radical, dirigida pela chamada troika(União Europeia, Banco Central Europeu e FMI) ao governo grego. Enviado às vésperas da viagem de uma “comissão de inspetores” a Atenas, e redigida na forma de um elenco seco de exigências, o documento concentra-se nas relações de trabalho.

Requer mudanças profundas – e inimagináveis, há apenas alguns meses – nas leis que protegem os direitos laborais. Além de livrar as grandes empresas de boa parte das leis trabalhistas, concede-lhes ampla redução de impostos, o que debilitaria ainda mais os serviços públicos. Não se trata, porém, de algo limitado à Grécia. Nesta quinta-feira (6/9), ao anunciar novas ações para evitar um colapso financeiro do euro, o presidente do Banco Central Europeu (BCE), Mário Draghi, comunicou que a instituição poderá submeter outros países em dificuldades a semelhantes “medidas de estrita e efetiva condicionalidade”.

A vastidão das propostas exigidas de Atenas levou o site World Socialist a enxergá-las como  ”um retrocesso às condições de trabalho que vigoravam nos países capitalistas durante o século 19″. Não parece haver exagero na imagem. A troika exige explicitamente, por exemplo, o fim da  jornada de 40 horas – que inspirou a maior parte das lutas sociais a partir de 1860 e foi gradualmente conquistada na virada para o século 20. A carta é clara: cobra “flexibilidade ampliada dos horários de trabalho” e especifica: em particular “aumento do número máximo de dias de trabalho, para seis por semana, em todos os setores”.

Estender a jornada laboral, num país onde toda a economia está deprimida, estimulará os empresários a produzir o mesmo com menos empregados. Sintomaticamente, o ultimato também exige que sejam reduzidos em 50% os prazos de aviso prévio e custos indenizatórios das demissões. Mas vai adiante. Pede nova compressão do valor nominal do salário mínimo – já achatado em 21% este ano. Chega ao detalhes: reivindica alterar as leis gregas que estabelecem intervalo mínimo entre as jornadas de trabalho. “A ideia é que os empregadores possam convocar os assalariados a qualquer momento, acabando com a estabilidade dos horários de trabalho”, afirma Panagiotis Sotiris, professor da Universidade do Egeu.

Nem as férias serão preservadas, se as pressões da troika forem aceitas. A carta a Atenas propõe autorizar os empregadores a fatiar o período contínuo de descanso remunerado em dias esparsos, concedidos ao longo do ano. Para os patrões, cômodo e barato – porque permite dispensar os assalariados em períodos de baixa atividade, por exemplo. Para os trabalhadores, equivale à obrigação de permanecer disponíveis, em todas as época do ano, às tarefas definidas pela empresa.

Muitas das exigências contrariam leis e normas gregas – e talvez fosse difícil propor ao Parlamento uma bateria de decisões impopulares. Por isso, a troika tem uma reivindicação de caráter genérico porém devastador, inclusive por humilhar a soberania nacional. Quer desmantelar o sistema atual de fiscalização do trabalho, retirando completamente sua autonomia e colocando-o sob supervisão direta da União Europeia. Ainda que muitas das leis que impedem a super-exploração dos assalariados sejam mantidas, terão pouca eficácia prática. Os funcionários encarregados de garantir seu cumprimento serão comandados por burocratas comprometidos com o sentido geral das novas ordens.

Na mesma carta em que incentiva o ataque generalizado aos direitos dos trabalhadores, a troika reivindica redução das contribuições das empresas aos sistemas de Saúde e Previdência, além de isentá-las de outros impostos. Segundo The Guardian, o ultimato estabelece prazo curto para as decisões. A União Europeia estaria insatisfeita com a “paralisia” do novo governo conservador grego, eleito em maio e até agora incapaz de impor os cortes de direitos sociais e serviços públicos que lhe foram exigidos.

Agora, as cartas estão na mesa, segundo o jornal britânico. Ou Atenas executa as exigências do ultimato, ou não receberá a segunda parcela (14,6 bilhões de euros) de um “resgate” indispensável para manter até mesmo as despesas essenciais do Estado – como o pagamento dos servidores públicos e dos aposentados. A alternativa seria emitir moeda própria e deixar o euro – com consequências ainda imprevisíveis, tanto para a Grécia quanto para a moeda comum.

Ao que tudo indica, porém, Atenas pode ser apenas a primeira vítima de uma nova fase do ataque aos direitos sociais na Europa: a partir de agora, ainda mais intenso e coordenado que ao longo dos últimos três anos. Na quinta-feira (6/9), após uma bateria de encontros com governantes europeus (em especial com a chanceler alemã, Angela Merkel), o presidente do BCE anunciou finalmente que o banco passará a comprar títulos públicos de países em dificuldades de rolar suas dívidas nos mercados.

A ação do BCE era esperada há muito, por todos. Por meio dela, países que foram obrigados a elevar em muito as taxas de juros oferecidas aos credores (como Espanha e Itália) poderão ter, a partir de agora, certo alívio. Mas Mário Draghi estipulou, também, algo inesperado. As intervenções do banco não serão automáticas, como ocorre com os bancos centrais de todos os países. Para iniciá-las, o BCE exigirá dos governos em dificuldades que peçam formalmente apoio. Ao fazê-lo, deverão comprometer-se a “contrapartidas estritas e efetivas”. A Espanha seria séria candidata a inaugurar a lista. Angela Merkel encontrou-se, também nesta semana, com o primeiro-ministro Mariano Rajoy e teria exigido este novo passo.

Os mercados financeiros comemoraram o anúncio de Draghi. As bolsas de valores subiram acentuadamente hoje, em toda a Europa e em Nova York. Tendo em vista o sentido das medidas que se pretende impor às sociedades, só se pode ver, na celebração, o “recrudescimento da luta de classes” mencionado por Castells e Ramonet."

*Antonio Martins (autor do texto) é editor de Outras Palavras.

(Na imagem, o quadro "A Decadência dos Romanos", de Thomas Couture)

12 setembro 2012

Brahms e Goethe - A trágica Rapsódia para Contralto

"Compus uma canção nupcial para a condessa Schumann. Porém, faço-o com raiva."

Johannes Brahms, sobre a Rapsódia para Contralto. Logo, os amigos leitores entenderão melhor.

Em 1869, Brahms compôs uma das suas melhores obras vocais, a Rapsódia para Contralto, Coro Masculino e Orquestra, Op.53. A Rapsódia foi composta sobre trechos de um melancólico texto de Goethe, o poema Viagem  de Inverno pelo Harz. Não é a única obra de Brahms baseada em textos de Goethe, antes ele já havia composto a magnífica cantata profana Rinald. Sem falar nos diversos lieder de Brahms que musicaram poemas do grande poeta alemão . Goethe inspirou uma penca de  compositores do romantismo, desde Beethoven (Egmont, por exemplo), passando por Schubert , Schumann, e vários outros. E não poderia ser diferente, uma vez que Goethe dominou a literatura universal em sua época, foi um precursor do romantismo artístico e legou-nos obras de uma grandeza e profundidade incomparáveis.

Mas falemos da Rapsódia de Brahms. A sua história não é exatamente o que se pode chamar de feliz. Depois de sua famosa paixão por Clara Schumann, mulher do seu amigo Schumann, Brahms se apaixonou por uma filha do casal, Julie. Devia ser bem parecida com a mãe. Mas o desafortunado Brahms deveria ter previsto que adviria outro desastre amoroso em sua triste sina. Antes do compositor se declarar, soube que Julie iria se casar com o conde italiano Victor Radicati di Marmorito. Fazer o quê? Concorrer com um conde italiano não dá. Escreveu Clara: "Contei a Brahms antes de qualquer pessoa. Parecia não esperar por uma notícia como esta e ficou transtornado."  Bah, e ainda o Brahms foi o primeiro a saber... Resultado, para fugir da paixão por Julie, Brahms compôs a trágica rapsódia. O curioso é que Goethe, quando escreveu o poema em questão, estava fugindo da sua paixão por Charlotte von Stein. 

Algum tempo depois, Brahms mostrou à Clara a partitura da Rapsódia para Contralto. Que causou a seguinte reação na viúva de Schumann: "Há muito tempo que não tinha uma impressão tão profunda, fiquei surpreendida pelo tom melancólico de sua música." 

A parte inicial da Rapsódia é de uma profunda, violenta amargura, em que parece soprar o gelado e impiedoso vento do sombrio inverno alemão. A densidade emotiva tão característica de Brahms atinge nessa obra níveis extremos. Porém, como também é característica de Brahms, não há exageros, mas uma escura gravidade aliada a uma beleza solene. Tudo dentro de uma forma rigorosa, equilibrada. Os lamentos e súplicas da contralto, o acompanhamento celestial do coro masculino (que somente entra quando a obra se prepara para a conclusão) e os sentenciadores acordes da orquestra formam um todo admiravelmente coeso, em que um envolve o outro. A obra vai adquirindo contornos mais luminosos conforme ascende em direção ao seu final. Sim, é uma verdadeira ascensão, uma transfiguração, que parte de um sofrimento dilacerante de intensa excitação psíquica até uma grandiosa serenidade plena de amor e compaixão. Sem, todavia, atingir a felicidade.

Brahms escolheu três estrofes do poema de Goethe. Abaixo a tradução:

Viagem de Inverno pelo Harz (trechos utilizados na Rapsódia para Contralto)

Mas ao lado, quem é?
No meio dos arbustos seu destino se perde.
Atrás dele, apenas o farfalhar dos arbustos.
E a grama se ergue novamente,
E a andorinha o engole.

Ah, quem mitigará a dor daquele
Para quem o bálsamo se fez veneno?
Daquele que, em pleno amor,
O ódio humano bebeu?
Antes, escarnecido, agora zombador,
Curte secretamente o torturante egoísmo.

Se há em teu saltéro,
Pai de misericórdia,
Uma nota que fale ao seu ouvido,
Enche o seu coração de misericórdia.
Abre ao nublado olhar
Do caminheiro, sedento,
As fontes infinitas do deserto.

Johann von Goethe

10 setembro 2012

Cacete(te) para um Político


gabinete
palacete
com tapete
camionete

prometeste
de falsete
sem valete
cafajeste

em banquete
garçonete
omelete
alcaguete

governete
peidorrete
sem topete:

Marionete!

08 setembro 2012

Três Pequenas Maldições

I

a diferença
entre o apenas intelectual
e o sábio
é que para o apenas intelectual
não há diferença

II

se aqueles que têm a razão
praticassem a razão
que dizem ser a razão
(sejamos francos)
assaltariam bancos

III

para as leis científicas
entre a humanidade
não existem zumbis

para as leis poéticas
entre a humanidade
só existem zumbis

07 setembro 2012

Que Seja Sobre o Sangue


que seja
o meu verso

sobre o sangue
em areia derramada dura
no nu obsceno
do seio necropsiado
da terra
sangue seco
coagulado pelo pó da enxada
que deserticamente escorre...

que seja
sobre o sangue
ou água-podre
em rio derramado humano
visco de olho negro
no óleo do amargo da margem
que poluidamente escorre...

sobre o sangue
ou seiva-lágrima
em verde derramada queda
o esverdeado do plasma
da vastidão evaporada
que devastadamente escorre...

sangue
ou guará atropelado
pelo horizonte
rubro-vivo-lago
miolo derramado afora
no embora das estradas
que extintamente escorre...

que seja...
ou o que morre

05 setembro 2012

O Homem Correto (Final)

Também não deveria sair mais com meus amigos. No fundo, não eram meus amigos, eles sabiam. E eu deveria sentir-me grato por eles estarem agora me alertando, antes que fosse tarde demais. Antes que eu me perdesse e me transformasse em um ser inútil, absolutamente improdutivo para a sociedade. Exclamei que sim, que minha gratidão era infinita, e lembro que chorei ao telefone as mais sinceras lágrimas. Então se despediram, muito polidamente, lembrando das severas punições em caso de desobediência e acrescentando que no dia seguinte eu receberia algo muito importante. Seria um manual, uma cartilha de como encontrar bons amigos. No final da cartilha, haveria uma breve lista com nomes, telefones e endereços de pessoas que seguramente seriam ótimos amigos para mim. Eu deveria procurá-los o mais rápido possível. Poucas vezes senti-me tão feliz em minha vida.

Certo dia, estava eu em um shopping, experimentando roupas em um provador de uma loja. Enquanto vestia a camiseta que provavelmente levaria, escuto um som de respiração, como se alguém estivesse muito próximo a mim. No meu lado esquerdo havia uma cortina. Parecia ser detrás dela que o som provinha. Abri-a. E ali estavam eles. Logo, declararam que estavam me observando, através de um pequeno orifício na cortina, enquanto eu experimentava as novas roupas. E, com um ar de profunda gravidade e decepção, que me estremeceu, disseram-me que não gostaram nem um pouco das roupas que eu estava pretendendo comprar. Eu não estava os agradando dessa forma. As roupas não combinavam comigo, garantiram, não podiam combinar. Elas não me deixariam melhor como pessoa. Eram de muito mau gosto. Exclamei, bastante envergonhado, que, fosse como fosse, era o meu gosto pessoal.  Eles não quiseram saber. De súbito, retiraram de seus paletós várias sacolas, cada uma com uma peça de roupa diferente. Disseram-me que, a partir daquele dia, para o meu próprio bem e crescimento individual, deveria usar aquelas roupas. E sempre que eu fosse comprar vestimentas novas, deveriam ser naquele estilo e com aquelas cores. Qualquer dúvida, deveria consultar um manual, uma cartilha de bem vestir-se que eles deixariam com a gerente da loja. Em caso de desobediência... eu já sabia. Claro que as roupas que eles me deram não eram de graça. Paguei por elas.

Levei-as comigo e experimentei-as somente em casa. De início, foi um choque. Senti-me verdadeiramente ridículo. Aquelas roupas não tinham nada a ver comigo. Porém, mantive firme minha força de vontade e segui as usando. Fui trabalhar com elas. Percebi que todos me olhavam na rua com sorrisinhos mal disfarçados e troçavam de como eu estava me vestindo. Mantive-me altivo e não dei atenção. Idiotas, pensei, que não sabem de nada. Se eles me garantiram, é porque assim eu estou bem melhor. De modo que os dias se passaram, segui usando aquelas roupas, adquirindo outras que não fugissem àquele estilo, e, ao fim das contas, nunca me senti tão bem vestido.

As semanas, os meses, os anos foram seguindo seu curso, e, de tempos, em tempos, eu os encontrava na rua, ou em algum local público, ou em meu trabalho, ou eles vinham até minha casa, com o nobre intuito de me transmitir mais instruções de como eu deveria viver, a melhor forma de se viver. E eles aproveitavam tais ocasiões para me inquirir. Desejavam saber se eu estava cumprindo com todas as determinações que me foram outorgadas. Garanti que sim, simplesmente porque era verdade. E mesmo que eu quisesse mentir, seria uma catástrofe, porque eles sempre sabiam de tudo. E então, com a mentira, a punição seria triplicada. Questionavam-me apenas para verificar o meu nível de sinceridade. É óbvio que jamais os decepcionei, nunca deixei de os agradar, sempre agi e me comportei de acordo com o que esperavam de mim, esforçava-me, em suprema abnegação, em mantê-los plenamente satisfeitos. Afinal, eles estavam sempre certos, a razão estava sempre com eles, suas opiniões eram as mais corretas, seus gostos, os mais perfeitos, suas ideias, as mais brilhantes. É assim, que posso fazer?

As últimas instruções que recebi referiam-se a uma lista das mulheres que eu poderia namorar e, posteriormente, casar-me. Não era uma lista longa, havia ali apenas cinco mulheres. Também não eram muito bonitas. No entanto, em hipótese alguma eu poderia escolher para namorar alguma mulher que não estivesse na lista. A punição seria impiedosa.  Como deve ser, para que nos mantenhamos na linha. Ainda estou escolhendo qual delas será. Uma vez escolhida, não posso mais trocar. E a moça deve me aceitar em namoro. Ela não tem escolha. E é melhor realmente que não tenha, daria muita confusão. São as leis, justíssimas, para o nosso próprio bem.

É claro que desde que os conheci, minha vida tem se tornado difícil. Mas eu não reclamo, eu não protesto, jamais me rebelo, nunca questiono. Por que o faria? Sei que tudo o que eles fazem, os sacrifícios por mim e por tantos outros, todas as suas instruções, regras, ordens e disciplinas constituem um esforço tenaz em me tornar um exemplo de cidadão, um bom homem em todos os sentidos, cumpridor de seus deveres, um indivíduo correto, que conhece o seu lugar e as suas responsabilidades, que vive sua vida dentro da lei e da ordem estabelecidas e que, apesar de todos os percalços, é um homem satisfeito e bem sucedido.

Lembro que certa vez um antigo amigo, que, graças, nunca mais o vi, perguntou-me: “Mas como assim, eles decidem tudo por ti e tu achas bom?” Eu, sereno, limitei-me a responder: “É claro, por que não acharia, se assim sou feliz?”

04 setembro 2012

O Homem Correto

Abordaram-me durante uma manhã de sol.  Disseram que eu estava indo para o trabalho pelo caminho errado. Garantiram-me que, para meu próprio bem, eu deveria seguir por outro caminho. Protestei que, para mim, o caminho que percorria naquele momento era perfeito, que eu sempre o fizera, e que não via por que outro seria melhor. Mostraram-me então o caminho que eu deveria percorrer. E não somente naquele dia, mas por todos os outros em que eu fosse trabalhar. Caso não fosse por ele, seria punido. O que era, segundo eles, perfeitamente justo, uma vez que era tudo para o meu próprio bem. Convencido, passei, daquele dia em diante a ir trabalhar somente pelo caminho que me fora orientado. Não vi nenhuma vantagem em fazê-lo, creio que era até um pouco mais longe do que o que percorria anteriormente. Mas se eles estavam tão certos que era para o meu bem, como poderia contrariá-los? Sem contar que, se não o fizesse, seria punido. Não me esclareceram, no entanto, que tipo de punição eu sofreria.

Dias depois, estava almoçando em minha casa, quando ouvi batidas na porta. Atendi. Eram eles. Traziam-me algumas viandas com variados tipos de comida, conforme verifiquei instantes depois. Imaginei que as viandas fossem o seu almoço. Convidei-os para entrar e almoçar. Recusaram, declarando que aquela comida não era para eles, mas para mim. Naturalmente, eu deveria pagar pela comida. E o fiz. Acrescentaram que já haviam se encarregado de realizar a encomenda de meu almoço, e que o mesmo seria entregue sempre por volta do meio-dia no meu endereço por um menino escolhido por eles. Eu deveria pagar o almoço ao menino. Todos os dias. E comer, ao menos durante o almoço, somente o que havia nas viandas. Eram alimentos cuidadosamente escolhidos para a minha mais perfeita saúde. Retruquei que não gostava de vários alimentos que ali estavam. Responderam que isso não fazia diferença, eu deveria comer e me habituar a eles. Era para o meu próprio bem. Caso me recusasse a me alimentar somente com os alimentos das viandas, seria severamente punido. Tive que aceitar.

Quando abri a última das viandas (eram 5 no total), não havia comida ali, mas uma folha de papel cuidadosamente dobrada. Abri-a e li o seguinte:

“Senhor Gilberto, aqui está uma lista dos livros, revistas, músicas e filmes. São os que você deverá ler, ouvir, assistir durante este mês. Não é necessário ler todos os livros, ouvir todas as músicas, assistir a todos os filmes. Porém, o que senhor desejar ler, ouvir ou assistir, deverá estar incluído nessa lista. Nem é preciso que escrevamos que é para  o seu próprio bem. E crescimento individual. Tudo o que está na lista foi selecionado pensando-se exclusivamente em seu bem-estar.  É igualmente desnecessário que escrevamos que a punição oriunda do descumprimento destas determinações será exemplar. No mês seguinte, junto com alguma das viandas, virá a lista para o mês em questão. E assim sucessivamente. ”

No mesmo dia, providenciei alguns dos filmes, livros e músicas. Eu não gostava de quase nada do que estava lista. Porém, estava certo que, com o tempo, aprenderia a gostar, e que o benefício a mim trazido pelas obras seria extremamente recompensador.

Por vezes, desejava encontrá-los na rua para que eu pudesse agradecê-los por tamanha bondade e consideração por alguém tão insignificante quanto eu. Eu, que trabalho em uma indústria de móveis da manhã à noite e que recebo um salário não mais que razoável. Realmente, eu jamais teria tempo para pensar em todas essas coisas que eles têm pensado por mim. Tenho me sentido bem mais tranquilo. Fico imaginando o que devo ter feito de tão meritoso para receber a preocupação e dedicação deles. E chego à conclusão de que não fiz nada. Aliás, nada faço além de trabalhar e voltar para casa. Nos fins de semana, bebo, melhor dizendo,bebia, uma cervejinha com os amigos.

Digo que bebia, porque não o posso mais fazer. Para meu próprio bem. Há alguns dias, acordei com um telefonema às 3h da madrugada. Eram eles. Rapidamente, pois não podiam desperdiçar seu tempo, disseram-me que eu não deveria mais beber nenhuma bebida alcoólica. Eram nocivas, fosse para a minha saúde física, fosse para a minha saúde psíquica. Nunca, jamais, eu deveria voltar a ingerir um gole sequer de álcool. 
(Amanhã, o final do conto.)

03 setembro 2012

Gripe A e o jornal Expresso Ilustrado

Como praticamente chegamos ao final do inverno de 2012 e os casos de gripe A não devem surgir mais com força este ano, talvez apenas isoladamente, creio que é o momento de analisarmos a sua taxa de mortalidade. Esta será a minha resposta ao jornal Expresso Ilustrado e ao jornalista João Lemes, editor do jornal. Ocorre que em 2009, quando do surgimento da gripe A, ou suína, o jornal Expresso escreveu que a mortalidade da gripe A era igual ou menor à da gripe comum, e que não haveria motivo de sérias preocupações. Questionei a informação, apresentando dados que mostravam que a gripe A era na verdade mais mortal. O jornalista João Lemes, então, eu seu blog, contestou-me (aqui), sugerindo que eu me corrigisse. Porém, eu apenas fiquei sabendo de sua contestação em finais de 2011. Como era verão, não tinha dados atualizados para analisar melhor a questão. Agora, tenho-os, e os apresento. Vamos a eles:

Segundo o site do jornal Correio do Povo (aqui), os casos confirmados em 2012, até 13 de agosto, de gripe A, no RS chegaram a 447, com 57 vítimas fatais. Basta fazer o cálculo para encontrarmos a taxa de mortalidade da doença: 12,75%. Se pegarmos toda a região Sul do Brasil, até 30 de julho, teremos 144 mortes em 1613 casos confirmados (aqui). Taxa de mortalidade: 8,93%. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a taxa de mortalidade da gripe comum gira em torno de 0,5 a 1,5%. Ou seja, as taxas de mortalidade da gripe A no Brasil estão altíssimas. E não é só aqui. 

Segundo estudos que vêm sendo realizados (aqui) a gripe causou e vem causando muito mais mortes do que se pensava. O total de mortos pela gripe A foi elevado em 15 vezes com relação ao que havia se calculado anteriormente. 

Não culpo o jornal Expresso pela informação veiculada na época, pois muitos, até mesmo cientistas, acreditavam que a gripe A era uma "gripezinha". Já eu não era da mesma opinião.  Como o jornal não aceitou meu questionamento na época, o que era do seu direito, naturalmente, retorno à questão. Agora, passados três anos do surgimento da doença, está-se percebendo que a gripe A não é nenhuma brincadeira. Como não acompanho o jornal Expresso, não sei o que ele veiculou a respeito da mortalidade da doença em 2012. Porém, se ainda não o fez, deveria, como qualquer jornal sério, ao menos, questionar a sua própria informação veiculada há três anos. Enviarei um e-mail ao jornalista João Lemes sobre o assunto.

01 setembro 2012

Palavr(ar) ao Nada


a minha palavra em lava
esvaziada pelo vento
o vazio da minha lavra
de palavra desventada
minha lava em ventania
vã palavra no vazio
o meu livre enderramado
vaziado em vendaval
a palavra deslavada
derramada do meu vaso
meu vazio vitalizado
enlevado de palavras
meu tornado derramado
desvazado no meu livre
a palavra ciclonando:
em teu vão vandalizada
furacão para  o teu nada

30 agosto 2012

Existe Brahms


I

nossos intelectuais
estão certos
de que preveem o futuro
(...)
mas deveriam fazê-lo
acendendo
(antes)
uma vela
no (v)entre do escuro...

II

dizem
ter descoberto
a “partícula de Deus”
(o homem
procura a sabedoria
como se procurasse uma palha
em um palheiro
a esmo)
só o que lamento
é que nunca encontraram
a partícula de si mesmo

III

perguntam-me
qual afinal
a minha esperança...
ora, eu não escolho esperanças
eu espero o que vem...
não espero
por exemplo
que tu, ser humano
me ames.

fora isso...
existe Brahms

29 agosto 2012

Dia Nacional de Combate à Televisão

Hoje é o Dia Nacional de Combate ao Fumo. Ótimo. Mas por que que não existe também, por exemplo, o Dia de Combate à Coca-Cola, Dia de Combate aos Agrotóxicos, Dia de Combate aos Aditivos Químicos e, finalmente, o Dia de Combate à Televisão. Melhor fumo que televisão. Fumo faz mal para os pulmões. Televisão, faz mal para a cabeça. E, principalmente, para o que tem dentro dela. Transforma cérebros em merda.


E outra. Poderia existir também o Dia de Combate ao Funk, Dia de Combate ao Michel Teló, Dia de Combate ao Tchu e Tcha. Isso sim faz mal. Para a mente. Para a alma. Seja como for, de uma forma ou de outra, todos prejudicam a si mesmos, não é só fumando. Mas, na maioria das vezes, nem sabem. E nem querem saber. E a mídia não quer que saibam. E assim todos vivem felizes e contentes em sua ignorância e hipocrisia. 

Muitos irão pensar que estou fazendo campanha pró-fumo. Não estou. Estou fazendo campanha em prol da liberdade. Hoje, tiram nosso direito de fumar. Amanhã, será o de tomar as nossas próprias decisões. E depois, finalmente, tirarão o nosso direito de pensar por  nós próprios. Coisa que, dissimuladamente,  a televisão já o faz. 

28 agosto 2012

Soneto-Ocaso


derradeira derrocada das massas
pela invicta derrota do que humano
vontades que naufragam ano a ano
em vórtices vazados de não-taças

o infindo decair do que se faça
no em-vão irrevogável do não-plano
a esperança vencida pelo insano
nas vastas pradarias da desgraça

passo a passo de um algo que maldito
sobre as patas-serpentes de um cavalo
entre os olhos sedentos do inaudito...

a nulidade do ato de salvá-lo
dessangra entre vermelhos de infinito
e o Horror levanta a força do seu falo...

26 agosto 2012

Silêncio


em breve
nem o longe
ao longe
no horizonte
em breve
o sempre
que será ontem
silêncio esgotado
ao esgoto
de uma fonte

em breve
nem o leve
só o calo
de um canto de ave
calado
num eterno vago
de neve
pássaro passado
desmanche
de sorriso lasso
desmoronado
por entre olhos
de cuja luz
em breve
nem traço

e da árvore
que te arde
despencada
entre abismo
folha por folha
abalada
entre os riscos
do que cismo
em breve
nem cisco

em breve
nem nada
e que te leve
o desfeito

assim
como se fosse
o meu peito

25 agosto 2012

do Não Esperar


o que se planeja
não é o que vida:
vida
é o que não está nos planos

não esperar
é evitar que o vindo
venha abaixo do esperado

o mais belo
o mais fundo
o mais alto
é o que não nos pode ser dado

só espero pelo que não posso
que é o que não depende
do inútil do meu esforço

mas de um indefinido não pensado
paisagem em súbito na estrada
susto de inspiração
surgida do nada

como pode valer a pena
ser alcançado
o que já está ao alcance da mão?
a canção que mais nos comove
é aquela que canta
(em nosso íntimo)
o imenso de um não...

o que é então
que deve ser como deveria?
melhor é o que não se espera
que não se vê
e nem seria...
os prenúncios de estrelas
vêm apenas
durante a noite sombria...

23 agosto 2012

Três Considerações Antipáticas


I

ser poeta
é ser líder e único membro
de sua própria gangue
e preparar-se
para um banho
(entre palavras)
de sangue

II

um poema
além de segredos
é dar nos dedos
e tirar sarro:
é como soltar na cara
de quem não fuma
uma baforada de cigarro

III

o mais corajoso
dos soldados
é o que deserda
o mais corajoso
dos homens
é o que tem coragem
de mandar
tudo à merda

22 agosto 2012

Secas Devastam ao Redor do Planeta - E o que Será da Humanidade nas Próximas Décadas?

Já por diversas vezes afirmei aqui no blog (e também sugeri através de textos literários) que o aprofundamento da degradação ambiental de nosso planeta não é algo que ocorre através de uma sequência clara e sem interrupção, mas de maneira um tanto enganadora: em um ano, o planeta é assolado por incontáveis catástrofes naturais, que parecem indicar que o próximo ano será ainda pior. Porém ocorre que no ano seguinte a situação apresenta uma aparente amenização. Então, muitos, na ânsia de não culpar o homem, ou de acalentar uma ilusória esperança, aproveitam para afirmar que a situação não é tão grave como acusam os "alarmistas". Muitas doenças também evoluem assim. Após uma crise, surgem momentos de melhora, que são confundidos com cura, e o paciente não se preocupa em se tratar. Mas se passa um tempo, e os sintomas surgem mais intensos. Até que um dia o doente falece.

É assim que determinadas pessoas, inclusive estudiosos e cientistas, acreditam que não existe o Aquecimento Global, ou, se existe, não seria tão sério, e o ser humano não teria responsabilidade a respeito. No entanto, passados dois ou mais anos, as catástrofes naturais repetem-se de forma ainda mais severa e mais generalizada. E, discretamente, de maneira um tanto gradual, recordes negativos vão sendo sistematicamente batidos, e, de forma muitas vezes imperceptível, o planeta vai lentamente sendo consumido, vitimado pela inconsciência humana.

Sobre o assunto, vejamos o que está no jornal Correio do Povo deste último domingo, na seção da previsão do tempo:

"As secas marcam este ano de 2012 até agora no mundo com impactos econômicos mundiais que geram o temor de uma crise de alimentos global. O ano começou com a Inglaterra enfrentando sua pior estiagem desde 1976. O início de 2012 foi marcado ainda por grande seca no Cone Sul da América(...). Lavouras de milho e soja agora agonizam com a falta de chuva nos EUA, no que está sendo considerada uma das cinco piores secas em solo americano no último século. No México, a estiagem é descrita como a pior em 70 anos.  Seca agora também na Rússia, onde são revistas para baixo as projeções da safra de trigo. E na Índia, com monções insuficientes e danos ao arroz a ponto de rios inteiros terem secado no país. Espanha e Portugal também têm há meses déficit de precipitação e os últimos dias foram de graves incêndios na Ilhas Canárias."

Alguém poderia argumentar que em nenhum desses lugares a estiagem, apesar de intensíssima, está sendo a pior da história. O que significaria que já passamos por momentos piores e, não obstante, estamos aqui. Porém, o que deve ser percebido, o grave disso tudo, é que as secas nunca foram tão generalizadas, nunca foram tantas ao mesmo tempo no mundo. Isso é que inédito. Quase todo o planeta sofre com secas severas simultâneas. Aqui em Santiago mesmo, somos testemunhas de uma das maiores estiagens de todos os tempos em nosso município, talvez a mais prolongada da história, com o trágico fato inédito de vermos a nossa imensa barragem quase seca.

E se aliarmos a esses "detalhes" o terrível fato de que o Hemisfério Norte está tendo um dos verões mais abrasadores da história, de que as águas oceânicas setentrionais nunca estiveram tão quentes, de que as águas do mar Ártico atingiram este ano a maior temperatura desde o início da medições, e de que o gelo da Groenlândia chegou a derreter em 97%, recorde absoluto e inquestionável, podemos elaborar uma sombria questão: da forma como não fazemos nada, o que será da humanidade nas próximas décadas?

20 agosto 2012

Ilógico

entre o tudo que não existe
dou-te-me este poema
vitoriosamente triste
pois nem triste chegou a ser:
talvez o fosse
se eu me pudesse ver

e a minha pá (lavra de coveiro)
que não é suficiente
talvez o seja
em se olhar ao mundo
como morrer
e só então
ser profundo

a minha humanidade
não me perdoa:
sou minha culpa
e o culpado
do que não voa

e o que me eleva
é o que não veio
ou talvez veneno
envernizado em taça
eternizada
entre teu seio

que o horror divino
é sempre firme
em tudo há medo
e aponta um dedo:
sentir é crime

eu sou
o que não me esquece:
sou como um sono
e tu minha prece

a minha palavra
não dará ensejo
a nenhuma lágrima
e não será desejo
de organismo etéreo
o que eu disse
nem está dito
o que eu não disse
eu me mistério