10 julho 2008
Tarja Livros
Meu livro Contos do Crepúsculo e do Absurdo está sendo comercializado pela Tarja Livros. A seguir, o link referente ao mesmo: http://www.tarjalivros.com.br/detalheprod.asp?produto=24
Produzir Cada Vez Mais
Às vezes penso em certas bobagens, coisas realmente sem a mínima utilidade e que com toda certeza ninguém mais pensa, afinal, eu sou muito desocupado, e as outras pessoas devem trabalhar para ajudar a humanidade a produzir cada vez mais. E eu penso exatamente nisto: a humanidade deve produzir cada vez mais... Tais coisas me impressionam, eu sou muito impressionável, e devo ter uma mentalidade vergonhosamente atrasada, pois não consigo entender a profundidade dos objetivos humanos.
Por um lado, todos os países, todas as indústrias, todas as empresas, enfim, todos! desejam e buscam produzir cada vez mais; por outro lado, todos afirmam que o planeta está se esgotando e que deve ser preservado a qualquer custo, que não se deve mais desmatar florestas ou poluir os ambientes... Ou muito me engano, o que é bem provável, ou encontra-se nesses fatos uma escancarada contradição: produzir mais e mais e ao mesmo tempo preservar o planeta...
Todos os dias, acompanho pela mídia: “setor automobilístico comemora recorde na produção”; “safra brasileira é a maior da história”; “cresce demanda por combustíveis”; “ONU preocupada com a escassez de alimentos, deve-se plantar mais”... E por aí vai, é tudo e todos aumentando a produção! Busca-se mais petróleo, planta-se mais cana-de-açúcar, precisa-se de mais matéria-prima para as fábricas, de mais água para as lavouras, para as cidades, para as indústrias, de mais ouro, de mais ferro, de mais urânio, de mais papel, de mais madeira, de mais energia... E a população sempre aumentando, e precisando de mais terras, de mais áreas urbanas, de mais prédios, de mais casas, e áreas urbanas é sinônimo de poluição e degradação ambiental, e assim caminha a humanidade... E para cada criança que nasce precisa-se de mais alimentos, e então de mais lavouras, e mais terras, e mais águas. E com mais lavouras são menos florestas, e rios mais secos, e solo mais estéril e contaminado, e eu, enlouquecendo em meio a tantos absurdos, fico me perguntando atônito: onde vamos parar?
De onde vamos tirar tantas matérias-primas para dar o suporte necessário a tanto crescimento, a tanto “evolução”, a tanto “progresso”? Até onde alcança minha inteligência limitada, penso que todos os recursos naturais são retirados de nosso planeta, e nosso planeta não é infinito. E quando os recursos naturais acabarem, o que faremos? Vamos sobreviver em uma terra absolutamente devastada e vazia de tudo? Ou vamos ir para a Lua, ou para Marte? Por favor, sábios de nossa civilização, respondam-me, que eu sou muito ignorante.
A palavra “Progresso” parece sagrada para os homens, é o deus dos últimos séculos. Usando uma expressão de meus avós, “Deus o livre” falar mal do Progresso! É uma blasfêmia imperdoável. Tem-se que progredir, não importa a que custo, ou melhor, importa sim. Se o custo é alto e o lucro baixo... nesse caso o Progresso não vale a pena. Não importa nem mesmo o tipo de Progresso, ou quem sai ganhando com isso, ou até mesmo se o Progresso é verdadeiramente um progresso. O que importa é que a humanidade deve crescer, expandir-se, alastrar-se ao limite máximo possível, ou até não-possível, que a ciência deve criar mais e mais tecnologias para resolver os sérios problemas dos homens. Exemplo de um sério problema: enviar a minha imagem pelo celular para a pessoa com quem estou falando. Isso é um gravíssimo problema que a ciência deve dedicar-se ao extremo para solucionar. Inclusive, já solucionou!
Definitivamente, eu sou alguém de raciocínio muito lento. Ainda não entendi que existe o desenvolvimento sustentado, que é aquele desenvolvimento em que, por exemplo, o agricultor destrói toda a mata e deixa uma ridícula faixinha de árvores na beira dos rios. Ali, certamente, dá para viver toda a abundante fauna de qualquer região, e, por mais que chova, nunca o rio irá assorear. Ou então, desenvolvimento sustentado é quando uma fábrica polui toda uma região e depois doa 0,01% de seus lucros para ajudar a preservar a Mata Atlântica. Consciência ecológica!
Eu sou um retrógrado. Não quero que a humanidade se desenvolva. Pra que mais cidades, mais carros, mais fábricas, mais pessoas? Eu quero que se desenvolva o ser humano, aquilo que está dentro dele. Mas isso deve ser uma bobagem, afinal, ninguém dá bola! Melhorar a alma, seja ela o que for, mortal ou imortal, divina ou não-divina, não é Progresso. Progresso é encher os bolsos. Há outro objetivo em produzir-se cada vez mais?
Por um lado, todos os países, todas as indústrias, todas as empresas, enfim, todos! desejam e buscam produzir cada vez mais; por outro lado, todos afirmam que o planeta está se esgotando e que deve ser preservado a qualquer custo, que não se deve mais desmatar florestas ou poluir os ambientes... Ou muito me engano, o que é bem provável, ou encontra-se nesses fatos uma escancarada contradição: produzir mais e mais e ao mesmo tempo preservar o planeta...
Todos os dias, acompanho pela mídia: “setor automobilístico comemora recorde na produção”; “safra brasileira é a maior da história”; “cresce demanda por combustíveis”; “ONU preocupada com a escassez de alimentos, deve-se plantar mais”... E por aí vai, é tudo e todos aumentando a produção! Busca-se mais petróleo, planta-se mais cana-de-açúcar, precisa-se de mais matéria-prima para as fábricas, de mais água para as lavouras, para as cidades, para as indústrias, de mais ouro, de mais ferro, de mais urânio, de mais papel, de mais madeira, de mais energia... E a população sempre aumentando, e precisando de mais terras, de mais áreas urbanas, de mais prédios, de mais casas, e áreas urbanas é sinônimo de poluição e degradação ambiental, e assim caminha a humanidade... E para cada criança que nasce precisa-se de mais alimentos, e então de mais lavouras, e mais terras, e mais águas. E com mais lavouras são menos florestas, e rios mais secos, e solo mais estéril e contaminado, e eu, enlouquecendo em meio a tantos absurdos, fico me perguntando atônito: onde vamos parar?
De onde vamos tirar tantas matérias-primas para dar o suporte necessário a tanto crescimento, a tanto “evolução”, a tanto “progresso”? Até onde alcança minha inteligência limitada, penso que todos os recursos naturais são retirados de nosso planeta, e nosso planeta não é infinito. E quando os recursos naturais acabarem, o que faremos? Vamos sobreviver em uma terra absolutamente devastada e vazia de tudo? Ou vamos ir para a Lua, ou para Marte? Por favor, sábios de nossa civilização, respondam-me, que eu sou muito ignorante.
A palavra “Progresso” parece sagrada para os homens, é o deus dos últimos séculos. Usando uma expressão de meus avós, “Deus o livre” falar mal do Progresso! É uma blasfêmia imperdoável. Tem-se que progredir, não importa a que custo, ou melhor, importa sim. Se o custo é alto e o lucro baixo... nesse caso o Progresso não vale a pena. Não importa nem mesmo o tipo de Progresso, ou quem sai ganhando com isso, ou até mesmo se o Progresso é verdadeiramente um progresso. O que importa é que a humanidade deve crescer, expandir-se, alastrar-se ao limite máximo possível, ou até não-possível, que a ciência deve criar mais e mais tecnologias para resolver os sérios problemas dos homens. Exemplo de um sério problema: enviar a minha imagem pelo celular para a pessoa com quem estou falando. Isso é um gravíssimo problema que a ciência deve dedicar-se ao extremo para solucionar. Inclusive, já solucionou!
Definitivamente, eu sou alguém de raciocínio muito lento. Ainda não entendi que existe o desenvolvimento sustentado, que é aquele desenvolvimento em que, por exemplo, o agricultor destrói toda a mata e deixa uma ridícula faixinha de árvores na beira dos rios. Ali, certamente, dá para viver toda a abundante fauna de qualquer região, e, por mais que chova, nunca o rio irá assorear. Ou então, desenvolvimento sustentado é quando uma fábrica polui toda uma região e depois doa 0,01% de seus lucros para ajudar a preservar a Mata Atlântica. Consciência ecológica!
Eu sou um retrógrado. Não quero que a humanidade se desenvolva. Pra que mais cidades, mais carros, mais fábricas, mais pessoas? Eu quero que se desenvolva o ser humano, aquilo que está dentro dele. Mas isso deve ser uma bobagem, afinal, ninguém dá bola! Melhorar a alma, seja ela o que for, mortal ou imortal, divina ou não-divina, não é Progresso. Progresso é encher os bolsos. Há outro objetivo em produzir-se cada vez mais?
27 junho 2008
As Almas do Fantástico na História do RS
O conto abaixo é o 2º de uma série de 7 contos que estou compondo sobre acontecimentos fantásticos na história do RS. O 1º conto, O Horror no Campo, fui publicado na edição 30 do zine Poemas do Término e Contos do Fim, que está em circulação. Os contos são fundamentados em fatos reais de nossa história, no entanto, apresentam um desenvolvimento fictício. As histórias, apesar de relacionadas, são independentes entre si.
Os Urubus Demoníacos - História 2ª
No princípio da terceira década do século XIX, o tropeiro espanhol Esteban Velasquez cruzava os ermos pampas do extremo sul do Brasil à procura de um local agradável para seu repouso, após dias de extenuantes peregrinações solitárias, ou quase solitárias, se considerarmos a fiel companhia de seu cavalo.
Esteban encontrou então numa região absolutamente deserta de seres humanos, semi-oculto por duas imensas coxilhas, um pequeno e aprazível lago cercado por um frondoso capão de mata, um local realmente convidativo ao descanso. O tropeiro acercou-se do lago, desceu do cavalo e sentou-se distraidamente sobre a relva verdejante e macia à beira das águas límpidas e tranqüilas. Ali, ele podia observar, do outro lado do lago, as árvores imensas da pequena mata, onde dezenas de pássaros emitiam um alegre canto naquele princípio morno da tarde ensolarada.
As margens do lago não eram, como em outros casos, cercadas por arbustos e plantas que dificultavam a aproximação até as águas, pelo contrário, tão-somente havia um vasto gramado que se estendia até elas. Tanto que de uma das duas grandes bolsas que Esteban carregava sobre o cavalo, ele retirou um copo e o encheu com a água cristalina do lago e saciou sua sede. Após, dirigiu-se à outra margem, chegando à beira da mata, e ali, sob a sombra aconchegante das árvores, decidiu fazer seu almoço de charque com pão.
Tranquilamente o tropeiro comia e aproximou-se das águas para colher mais um copo d’água. E foi nesse instante que sua tranqüilidade alçou vôo para nunca mais voltar... Ao retirar o copo do lago, o que Esteban viu não foi aquela mesma água pura e transparente, mas um líquido avermelhado de coloração verdadeiramente sanguinolenta. Alarmado, o espanhol jogou fora a água vermelha e observou atentamente o interior do lago no intuito de encontrar algum cadáver, fosse de homem ou animal, de onde pudesse se originar o sangue que contaminava o lago. Porém, o que Esteban divisou foi algo que ultrapassava as barreiras do absurdo. As águas antes límpidas e translúcidas eram agora invadidas por um fluxo inesgotável de um líquido que possuía a cor e o cheiro de sangue.
O tropeiro percebeu que o sangue, se é que realmente o era, provinha do centro do lago e rapidamente contaminava toda a sua extensão, não restando sequer uma gota de água pura. Para ser mais exato, o misterioso sangue, cuja fonte era impensavelmente desconhecida e insondável, não apenas contaminou as águas, parecia mais ter tomado conta totalmente delas, era como se tivessem se transformado em líquido sanguíneo. Esteban, atônito e assustado, não conseguia formular nenhuma explicação para o que ocorria e, quando ainda observava o fluxo viscoso de sangue do interior do lago e sentia o seu cheiro nauseante, percebeu que o dia, antes ensolarado, rápida e ameaçadoramente principiou a escurecer-se. Com um vento quente e enfermiço, invadiram os céus da região pesadas nuvens de um lúgubre tom avermelhado. Em questão de minutos, todo o céu foi encoberto por densos e estranhos nimbos carregados por uma sinistra coloração escarlate e sangrenta.
Trovões cavernosos e relâmpagos obscuramente rubros expandiram-se pelos céus de sangue, e tudo indicava que em breve desabaria uma chuva torrencial. Nesse instante, o numeroso bando de pássaros abrigados na mata, que se calara no momento em que as águas do lago principiaram a tornar-se vermelhas, iniciaram a emitir não mais o canto alegre e harmonioso quando da chegada do tropeiro, mas um lamento lúgubre, arrepiante, um cântico de morte que assombrava e deprimia, algo completamente diverso e inadequado para o canto de uma ave.
Porém, esse canto fúnebre prolongava-se e aumentava de intensidade de forma progressiva, enquanto um desespero nervoso massacrava o espanhol, que já não podia acreditar que tais absurdos não passassem de perturbadas alucinações, tamanha era a impressão de realidade deixada por aqueles horrores.
Enquanto os hediondos lamentos das aves prosseguiam, e o lago já transbordava de sangue, as primeiras gotas de chuva caíram grossas e pesadas sobre o campo, sobre a mata e sobre Esteban. Contudo, não eram gotas de água, eram gotas de sangue. Sangue que escorreu pela face do tropeiro, e ele percebeu que era um sangue morno e pôde sentir seu gosto de ferro adocicado, enquanto a chuva sangrenta se derramava em sua boca. E aquele sangue, ao cair sobre o campo, queimava a grama e, ao cair sobre a mata, murchava as folhas das árvores. Ainda assim, os pássaros mantinham seu canto de desespero e profundo mau-agouro.
Porém, outras aves foram atraídas pelo cheiro nauseabundo do sangue... Um gigantesco bando de urubus assomou como uma mancha negra nos horizontes enfebricidos e numa velocidade diabólica atingiu a mata grunhindo e chilreando em um alarido insano e demoníaco. As aves pousaram próximo a Esteban, encharcadas de sangue e adejando triunfantes suas asas enormes na chuva infernal.
Aquele inexplicável espetáculo dantesco parecia não ter fim: a chuva continuava implacável caindo das sobrecarregadas nuvens vermelhas e emurchecendo a vegetação; o lago prosseguia transbordando seu sangue espesso, enquanto nos céus os odiosos trovões e relâmpagos atordoavam sem misericórdia a alma estarrecida de Esteban. Porém, o que mais aniquilava o espírito do tropeiro era a tortura ominosa do canto maligno dos pássaros, que agora parecia ser guiado pela não menos aniquilante gritaria satânica e debochada dos urubus. Foi só então que Esteban percebeu que seu cavalo não estava mais por ali, certamente fugira de tantos horrores.
O espanhol fitava os horizontes assustadoramente rubros e não distinguia nenhum sinal da tempestade de sangue acalmar-se. Não sabia o que fazer ou para onde ir. Decidiu entrar no capão de mata para abrigar-se ao menos parcialmente. Desvairado, rapidamente penetrou na mata, sempre atormentado pela histeria absurda dos urubus. Avançou aos tropeções, até que estacou perplexo ao encontrar enrodilhada à sua frente uma imensa serpente de um vermelho angustiantemente vivo e sanguinolento.
Sem que Esteban pudesse evitar, a serpente cravou as presas na sua perna, perfurando suas calças e inoculando um veneno provavelmente fatal. O tropeiro caiu e sentiu-se desfalecer, sabendo que a morte já o fitava, enquanto o ferimento da picada vertia sangue em infrene profusão. Minutos depois, Esteban jazia inconsciente no meio da mata, que mais parecia um banhado de sangue.
No entanto, passados alguns minutos, o tropeiro acordou. Não, não estava morto. Ele observou o local onde se encontrava, e não havia nenhum vestígio de sangue. Olhou para o ferimento de sua perna, mas não havia ferimento, não havia picada. Também não havia nenhuma serpente. O dia estava ensolarado como no princípio, nenhum sinal de chuva de sangue, nenhuma nuvem maculava o céu azul. Esteban, já à beira da insânia, saiu da mata e dirigiu-se ao lago. Encontrou suas águas puras e cristalinas como quando as viu pela primeira vez. Os pássaros ali permaneciam, porém entoavam seus cantos felizes e harmoniosos em honra a luz do sol. E Esteban não avistou nenhum urubu demoníaco por ali. Mas avistou seu cavalo no mesmo lugar em que o deixara.
Absolutamente confuso e caótico, porém acreditando agora que tudo não passou de uma funesta alucinação, ainda perturbado, Esteban montou em seu cavalo e partiu daquela região bela, mas de uma beleza maldita...
Não se sabe o que realmente ocorreu naquele local do pampa gaúcho, e o tropeiro Esteban Velasquez, buscando o esquecimento, como se isso fosse possível para sua alma profundamente traumatizada, jamais procurou saber. No entanto, o que se sabe é que cinco anos após o terrível acontecimento, teve início no RS a Revolução Farroupilha, responsável por um dos maiores derramamentos de sangue da história brasileira.
E o que também não se sabe é que no ano de 1890, o peão de fazenda Luiz Juvenal Soares relatou a amigos e familiares um canhestro caso assombrosamente semelhante ao ocorrido com o espanhol Esteban. Segundo as palavras do próprio Luiz Soares, o que ele viu consistia em “sangue, eu só via sangue pra tudo quanto é lado, e um bando de corvo pingando sangue que gritavam como uns diabo, parecia até que davam umas risada.” Naturalmente, ninguém deu atenção aos desvarios absurdos do rústico e simplório peão, até porque ele já estava apresentando alguns sinais de perturbação mental e dizia que sonhava com urubus enormes com espantosa freqüência. E ninguém relacionou as visões de Luiz Soares com o fato de, três anos mais tarde, em 1893, os vastos campos rio-grandenses terem sido palco de mais um brutal festim sangrento com a Revolução Federalista.
Conta-se ainda que poucos anos antes da Revolução de 1930, um colono italiano teria tido “visões inenarráveis de derramamentos sangrentos em uma região selvagem do interior gaúcho, o que o levou, horas depois de relatar o fato a sua esposa, a cometer suicídio”, segundo noticiado no rodapé de um jornal da época. Deixara uma breve carta de despedida, onde se lia o seguinte trecho: “não agüento mais sentir as asas desses corvos batendo na minha cabeça e essas risadas de demônios...”
Porém, o que não se sabe é que em novembro de 2007, alguém, que é melhor não identificar, relatou-me algo com ele ocorrido inquietantemente similar ao antigo caso de Esteban Velasquez. Porém, com uma sinistra variação: em lugar de sangue, o que esse alguém vislumbrou foi um repulsivo líquido negro, e o número de urubus demoníacos era maior, absurdamente maior, e seus deboches malignos e estridentes eram piores, bem, bem piores...
Esteban encontrou então numa região absolutamente deserta de seres humanos, semi-oculto por duas imensas coxilhas, um pequeno e aprazível lago cercado por um frondoso capão de mata, um local realmente convidativo ao descanso. O tropeiro acercou-se do lago, desceu do cavalo e sentou-se distraidamente sobre a relva verdejante e macia à beira das águas límpidas e tranqüilas. Ali, ele podia observar, do outro lado do lago, as árvores imensas da pequena mata, onde dezenas de pássaros emitiam um alegre canto naquele princípio morno da tarde ensolarada.
As margens do lago não eram, como em outros casos, cercadas por arbustos e plantas que dificultavam a aproximação até as águas, pelo contrário, tão-somente havia um vasto gramado que se estendia até elas. Tanto que de uma das duas grandes bolsas que Esteban carregava sobre o cavalo, ele retirou um copo e o encheu com a água cristalina do lago e saciou sua sede. Após, dirigiu-se à outra margem, chegando à beira da mata, e ali, sob a sombra aconchegante das árvores, decidiu fazer seu almoço de charque com pão.
Tranquilamente o tropeiro comia e aproximou-se das águas para colher mais um copo d’água. E foi nesse instante que sua tranqüilidade alçou vôo para nunca mais voltar... Ao retirar o copo do lago, o que Esteban viu não foi aquela mesma água pura e transparente, mas um líquido avermelhado de coloração verdadeiramente sanguinolenta. Alarmado, o espanhol jogou fora a água vermelha e observou atentamente o interior do lago no intuito de encontrar algum cadáver, fosse de homem ou animal, de onde pudesse se originar o sangue que contaminava o lago. Porém, o que Esteban divisou foi algo que ultrapassava as barreiras do absurdo. As águas antes límpidas e translúcidas eram agora invadidas por um fluxo inesgotável de um líquido que possuía a cor e o cheiro de sangue.
O tropeiro percebeu que o sangue, se é que realmente o era, provinha do centro do lago e rapidamente contaminava toda a sua extensão, não restando sequer uma gota de água pura. Para ser mais exato, o misterioso sangue, cuja fonte era impensavelmente desconhecida e insondável, não apenas contaminou as águas, parecia mais ter tomado conta totalmente delas, era como se tivessem se transformado em líquido sanguíneo. Esteban, atônito e assustado, não conseguia formular nenhuma explicação para o que ocorria e, quando ainda observava o fluxo viscoso de sangue do interior do lago e sentia o seu cheiro nauseante, percebeu que o dia, antes ensolarado, rápida e ameaçadoramente principiou a escurecer-se. Com um vento quente e enfermiço, invadiram os céus da região pesadas nuvens de um lúgubre tom avermelhado. Em questão de minutos, todo o céu foi encoberto por densos e estranhos nimbos carregados por uma sinistra coloração escarlate e sangrenta.
Trovões cavernosos e relâmpagos obscuramente rubros expandiram-se pelos céus de sangue, e tudo indicava que em breve desabaria uma chuva torrencial. Nesse instante, o numeroso bando de pássaros abrigados na mata, que se calara no momento em que as águas do lago principiaram a tornar-se vermelhas, iniciaram a emitir não mais o canto alegre e harmonioso quando da chegada do tropeiro, mas um lamento lúgubre, arrepiante, um cântico de morte que assombrava e deprimia, algo completamente diverso e inadequado para o canto de uma ave.
Porém, esse canto fúnebre prolongava-se e aumentava de intensidade de forma progressiva, enquanto um desespero nervoso massacrava o espanhol, que já não podia acreditar que tais absurdos não passassem de perturbadas alucinações, tamanha era a impressão de realidade deixada por aqueles horrores.
Enquanto os hediondos lamentos das aves prosseguiam, e o lago já transbordava de sangue, as primeiras gotas de chuva caíram grossas e pesadas sobre o campo, sobre a mata e sobre Esteban. Contudo, não eram gotas de água, eram gotas de sangue. Sangue que escorreu pela face do tropeiro, e ele percebeu que era um sangue morno e pôde sentir seu gosto de ferro adocicado, enquanto a chuva sangrenta se derramava em sua boca. E aquele sangue, ao cair sobre o campo, queimava a grama e, ao cair sobre a mata, murchava as folhas das árvores. Ainda assim, os pássaros mantinham seu canto de desespero e profundo mau-agouro.
Porém, outras aves foram atraídas pelo cheiro nauseabundo do sangue... Um gigantesco bando de urubus assomou como uma mancha negra nos horizontes enfebricidos e numa velocidade diabólica atingiu a mata grunhindo e chilreando em um alarido insano e demoníaco. As aves pousaram próximo a Esteban, encharcadas de sangue e adejando triunfantes suas asas enormes na chuva infernal.
Aquele inexplicável espetáculo dantesco parecia não ter fim: a chuva continuava implacável caindo das sobrecarregadas nuvens vermelhas e emurchecendo a vegetação; o lago prosseguia transbordando seu sangue espesso, enquanto nos céus os odiosos trovões e relâmpagos atordoavam sem misericórdia a alma estarrecida de Esteban. Porém, o que mais aniquilava o espírito do tropeiro era a tortura ominosa do canto maligno dos pássaros, que agora parecia ser guiado pela não menos aniquilante gritaria satânica e debochada dos urubus. Foi só então que Esteban percebeu que seu cavalo não estava mais por ali, certamente fugira de tantos horrores.
O espanhol fitava os horizontes assustadoramente rubros e não distinguia nenhum sinal da tempestade de sangue acalmar-se. Não sabia o que fazer ou para onde ir. Decidiu entrar no capão de mata para abrigar-se ao menos parcialmente. Desvairado, rapidamente penetrou na mata, sempre atormentado pela histeria absurda dos urubus. Avançou aos tropeções, até que estacou perplexo ao encontrar enrodilhada à sua frente uma imensa serpente de um vermelho angustiantemente vivo e sanguinolento.
Sem que Esteban pudesse evitar, a serpente cravou as presas na sua perna, perfurando suas calças e inoculando um veneno provavelmente fatal. O tropeiro caiu e sentiu-se desfalecer, sabendo que a morte já o fitava, enquanto o ferimento da picada vertia sangue em infrene profusão. Minutos depois, Esteban jazia inconsciente no meio da mata, que mais parecia um banhado de sangue.
No entanto, passados alguns minutos, o tropeiro acordou. Não, não estava morto. Ele observou o local onde se encontrava, e não havia nenhum vestígio de sangue. Olhou para o ferimento de sua perna, mas não havia ferimento, não havia picada. Também não havia nenhuma serpente. O dia estava ensolarado como no princípio, nenhum sinal de chuva de sangue, nenhuma nuvem maculava o céu azul. Esteban, já à beira da insânia, saiu da mata e dirigiu-se ao lago. Encontrou suas águas puras e cristalinas como quando as viu pela primeira vez. Os pássaros ali permaneciam, porém entoavam seus cantos felizes e harmoniosos em honra a luz do sol. E Esteban não avistou nenhum urubu demoníaco por ali. Mas avistou seu cavalo no mesmo lugar em que o deixara.
Absolutamente confuso e caótico, porém acreditando agora que tudo não passou de uma funesta alucinação, ainda perturbado, Esteban montou em seu cavalo e partiu daquela região bela, mas de uma beleza maldita...
Não se sabe o que realmente ocorreu naquele local do pampa gaúcho, e o tropeiro Esteban Velasquez, buscando o esquecimento, como se isso fosse possível para sua alma profundamente traumatizada, jamais procurou saber. No entanto, o que se sabe é que cinco anos após o terrível acontecimento, teve início no RS a Revolução Farroupilha, responsável por um dos maiores derramamentos de sangue da história brasileira.
E o que também não se sabe é que no ano de 1890, o peão de fazenda Luiz Juvenal Soares relatou a amigos e familiares um canhestro caso assombrosamente semelhante ao ocorrido com o espanhol Esteban. Segundo as palavras do próprio Luiz Soares, o que ele viu consistia em “sangue, eu só via sangue pra tudo quanto é lado, e um bando de corvo pingando sangue que gritavam como uns diabo, parecia até que davam umas risada.” Naturalmente, ninguém deu atenção aos desvarios absurdos do rústico e simplório peão, até porque ele já estava apresentando alguns sinais de perturbação mental e dizia que sonhava com urubus enormes com espantosa freqüência. E ninguém relacionou as visões de Luiz Soares com o fato de, três anos mais tarde, em 1893, os vastos campos rio-grandenses terem sido palco de mais um brutal festim sangrento com a Revolução Federalista.
Conta-se ainda que poucos anos antes da Revolução de 1930, um colono italiano teria tido “visões inenarráveis de derramamentos sangrentos em uma região selvagem do interior gaúcho, o que o levou, horas depois de relatar o fato a sua esposa, a cometer suicídio”, segundo noticiado no rodapé de um jornal da época. Deixara uma breve carta de despedida, onde se lia o seguinte trecho: “não agüento mais sentir as asas desses corvos batendo na minha cabeça e essas risadas de demônios...”
Porém, o que não se sabe é que em novembro de 2007, alguém, que é melhor não identificar, relatou-me algo com ele ocorrido inquietantemente similar ao antigo caso de Esteban Velasquez. Porém, com uma sinistra variação: em lugar de sangue, o que esse alguém vislumbrou foi um repulsivo líquido negro, e o número de urubus demoníacos era maior, absurdamente maior, e seus deboches malignos e estridentes eram piores, bem, bem piores...
23 junho 2008
Sentença
aquele Olho que me olha
nunca deixa de me olhar
um olho negro como um erro
um olho firme como um crime
um olho forte como a morte
como é fundo aquele olhar...
é tão fundo como o nada
é tão sério como o fado
é tão duro quanto a sina...
a que mistérios
me destina?
nunca sorri aquele olho
nunca pisca aquele olho
nunca muda aquele olho
aquele Olho
que me olha
nunca deixa de me olhar
aquele Olho
que me olha
nunca deixa de me olhar
nunca deixa
meu olhar
nunca deixa de me olhar
um olho negro como um erro
um olho firme como um crime
um olho forte como a morte
como é fundo aquele olhar...
é tão fundo como o nada
é tão sério como o fado
é tão duro quanto a sina...
a que mistérios
me destina?
nunca sorri aquele olho
nunca pisca aquele olho
nunca muda aquele olho
aquele Olho
que me olha
nunca deixa de me olhar
aquele Olho
que me olha
nunca deixa de me olhar
nunca deixa
meu olhar
12 junho 2008
Tristeza, tão-somente
Tristeza
pura e simplesmente
sim, aquela de Cruz e Sousa
velha tristeza nada original
tristeza há muito tempo triste
longa, roxa e fantasmal
tristeza de tudo
tristeza por nada
de tudo que é sublime
por nada desolada
tristeza em quintessências
que flui aos olhos dos séculos
lá dos milênios e eras
até a tristeza do agora
tristeza do Início
e que jamais vai embora
tristeza do ontem e do hoje
e que vai até o Fim
de tudo que se perde e chora
e que sai dos teus olhos
e se expressa por mim
tristeza dos grandes finais
cada vez mais perto de nós
tristeza que cresce e assombra
com sombrios adeuses na voz
tristeza-sentença
do que é e de tudo que virá
de tudo que foi e que morre
tristeza que ao futuro corre
tristeza que não basta
e nunca bastará
pura e simplesmente
sim, aquela de Cruz e Sousa
velha tristeza nada original
tristeza há muito tempo triste
longa, roxa e fantasmal
tristeza de tudo
tristeza por nada
de tudo que é sublime
por nada desolada
tristeza em quintessências
que flui aos olhos dos séculos
lá dos milênios e eras
até a tristeza do agora
tristeza do Início
e que jamais vai embora
tristeza do ontem e do hoje
e que vai até o Fim
de tudo que se perde e chora
e que sai dos teus olhos
e se expressa por mim
tristeza dos grandes finais
cada vez mais perto de nós
tristeza que cresce e assombra
com sombrios adeuses na voz
tristeza-sentença
do que é e de tudo que virá
de tudo que foi e que morre
tristeza que ao futuro corre
tristeza que não basta
e nunca bastará
05 junho 2008
Vão Vocês...
crer no possível mundo melhor
e ir pelo mundo em celestes sorrisos
e pregar que o mundo melhor é possível
em possíveis ciências celestiais...
os senhores podem ir, mas eu...
eu não agüento mais.
bater pelas portas com mãos de esperança
com faces de luz em vivas canções
e nas ruas erguer as bandeiras
à esperança-portas em que vós entrais
as senhoras podem ir, mas eu...
eu não agüento mais.
e olhar nos olhos com olhos de amor
em rostos felizes de felizes amores
levar a alegria em lindos olhares
olhares de amor a que vós alegrais...
vós todos podeis ir, mas eu...
eu não agüento mais.
ah os vossos sonhos
os sonhos vossos
já sonhei todos
os vossos sonhos
antes de serem vossos
e os sonhos meus
sonham sempre comigo...
mas usar os sonhos
pra sonhar nas ruas
em humanos ideais?
não não...
vão vocês!
que eu não agüento mais.
e ir pelo mundo em celestes sorrisos
e pregar que o mundo melhor é possível
em possíveis ciências celestiais...
os senhores podem ir, mas eu...
eu não agüento mais.
bater pelas portas com mãos de esperança
com faces de luz em vivas canções
e nas ruas erguer as bandeiras
à esperança-portas em que vós entrais
as senhoras podem ir, mas eu...
eu não agüento mais.
e olhar nos olhos com olhos de amor
em rostos felizes de felizes amores
levar a alegria em lindos olhares
olhares de amor a que vós alegrais...
vós todos podeis ir, mas eu...
eu não agüento mais.
ah os vossos sonhos
os sonhos vossos
já sonhei todos
os vossos sonhos
antes de serem vossos
e os sonhos meus
sonham sempre comigo...
mas usar os sonhos
pra sonhar nas ruas
em humanos ideais?
não não...
vão vocês!
que eu não agüento mais.
01 junho 2008
Segredo
nas asas do Fim de tudo que foge
nas vozes tormenta longa distante
nas nuvens que crescem aos gritos de corvos
em tudo que parte em fúria do vento
em tudo que voa em força desastre
em tudo que canta sentenças ao longe
meus velhos olhos que explodem em ciclones
meus olhos doenças com asas pesares
meus corvos olhos no cosmos malditos
lá onde as mortes arrancam com foices
lá onde os carmas orquestram ocultos
lá onde os deuses tempestam universos
é lá onde estou com meu luto segredo
nas vozes tormenta longa distante
nas nuvens que crescem aos gritos de corvos
em tudo que parte em fúria do vento
em tudo que voa em força desastre
em tudo que canta sentenças ao longe
meus velhos olhos que explodem em ciclones
meus olhos doenças com asas pesares
meus corvos olhos no cosmos malditos
lá onde as mortes arrancam com foices
lá onde os carmas orquestram ocultos
lá onde os deuses tempestam universos
é lá onde estou com meu luto segredo
22 maio 2008
Um Beijo e Uma Frase...
Naquela noite fria e longa, tu chegaste. Uma tempestade se formava lá fora. E para aquecer-me com tua lembrança, eu ouvia as paixões terríveis de Brahms. Há muito que eu te esperava. A tempestade apagara a luz, só uma vela iluminava tua face. Como era belo o segredo da tua visita! Vi e senti a luz dos teus olhos cintilando ao entrares no meu quarto. Não sei que espécie de magia estranha envolvia os teus olhares, tão escuros que brilhavam como lagos, tão intensos que falavam-me mistérios. De onde foi que tu vieste?
Tu vestias o negro puro das noites profundas, e junto contigo invadiu o meu quarto o perfume escarlate das rosas invisíveis que enfeitam teu corpo. Senti-me nos paraísos edênicos aos aspirar o teu aroma nos ares repletos da tua presença. A tempestade relampejava lá fora. E à luz de raios eras ainda mais bela. Lentamente, foste te aproximando de mim em tua doce elegância de fêmea. Tu parecias que flutuavas... E eu te fitava como num sonho...
Sentaste ao meu lado na cama, e eu repousei meu olhar no teu rosto. Aqueceu minha alma o calor que teu corpo irradiava, tão junto do meu. Quando teus dedos tocaram em febre minha mão, senti que o sangue correu mais rápido nas veias, aos pulsos de vida de meu coração inflamado. Sorrimos, e desse sorriso nasceu nosso beijo. A tempestade enlouquecia lá fora. E que loucura era teus lábios tocarem os meus. Como o sonho toca os lábios da noite. Os vapores quentes de tua respiração eram um delírio que me entorpecia. Quanto desejo cantava em nossas línguas! Como bebi sedento os vinhos que destilava a tua boca. Embriaguei-me de teus licores doces e férvidos como um alucinógeno. Consumi-me nos teus lábios, na tua língua, nos teus dentes.
E que música sublime ouvi de ti quando beijei o perfume de teu pescoço: foram os teus suspiros, que me estremeceram. Mergulhei em teus suspiros, eram sons de violinos. Teus violinos murmuravam em meus ouvidos. E eu sussurrei no teu espírito. Teus dedos deslizavam por meu rosto. Deixamos nossos átomos um para o outro.
Em um abraço denso e forte como a morte, deitamo-nos na cama. Lá fora, abraçava o mundo a tempestade. Eu te disse coisas que não digo. E tu falaste coisas que não falo. Mas tua voz me elevava como as aves, percorria a minha pele como um rio de água morna e cristalina. E meus dedos percorriam a tua pele como se fossem brisas quentes de verão.
Enquanto nossos cabelos se misturavam, nossas bocas transmitiam o segredo dos nossos corpos. E a tempestade desabava. Lá fora o mundo se findava e o nosso beijo era infinito. Lá fora o mundo de consumia, e nós nos consumíamos num beijo. Como amei tua alma naquele curto instante eterno! Como amei teu corpo naquele eterno instante curto! Eu absorvia os desejos de amor da tua alma e do teu corpo. E os sentia em tempestade! E a tua alma me aquecia... E o teu corpo me incendiava! Tanto, tanto, mas tanto... que... eu me acordei.
Acordei, e tu não estavas no meu quarto. E a tempestade consumia-me lá fora... Consumia-me aqui dentro. Mas astralmente tu ainda pairavas do meu lado. Sentia tuas auras quando respirava aquele ar...
Um Beijo... e uma Frase. Que frase? Esta, de Fernando Pessoa: “E, por fim, tenho sono, porque, não sei por que, acho que o sentido é dormir.” E eu voltei a dormir...
Tu vestias o negro puro das noites profundas, e junto contigo invadiu o meu quarto o perfume escarlate das rosas invisíveis que enfeitam teu corpo. Senti-me nos paraísos edênicos aos aspirar o teu aroma nos ares repletos da tua presença. A tempestade relampejava lá fora. E à luz de raios eras ainda mais bela. Lentamente, foste te aproximando de mim em tua doce elegância de fêmea. Tu parecias que flutuavas... E eu te fitava como num sonho...
Sentaste ao meu lado na cama, e eu repousei meu olhar no teu rosto. Aqueceu minha alma o calor que teu corpo irradiava, tão junto do meu. Quando teus dedos tocaram em febre minha mão, senti que o sangue correu mais rápido nas veias, aos pulsos de vida de meu coração inflamado. Sorrimos, e desse sorriso nasceu nosso beijo. A tempestade enlouquecia lá fora. E que loucura era teus lábios tocarem os meus. Como o sonho toca os lábios da noite. Os vapores quentes de tua respiração eram um delírio que me entorpecia. Quanto desejo cantava em nossas línguas! Como bebi sedento os vinhos que destilava a tua boca. Embriaguei-me de teus licores doces e férvidos como um alucinógeno. Consumi-me nos teus lábios, na tua língua, nos teus dentes.
E que música sublime ouvi de ti quando beijei o perfume de teu pescoço: foram os teus suspiros, que me estremeceram. Mergulhei em teus suspiros, eram sons de violinos. Teus violinos murmuravam em meus ouvidos. E eu sussurrei no teu espírito. Teus dedos deslizavam por meu rosto. Deixamos nossos átomos um para o outro.
Em um abraço denso e forte como a morte, deitamo-nos na cama. Lá fora, abraçava o mundo a tempestade. Eu te disse coisas que não digo. E tu falaste coisas que não falo. Mas tua voz me elevava como as aves, percorria a minha pele como um rio de água morna e cristalina. E meus dedos percorriam a tua pele como se fossem brisas quentes de verão.
Enquanto nossos cabelos se misturavam, nossas bocas transmitiam o segredo dos nossos corpos. E a tempestade desabava. Lá fora o mundo se findava e o nosso beijo era infinito. Lá fora o mundo de consumia, e nós nos consumíamos num beijo. Como amei tua alma naquele curto instante eterno! Como amei teu corpo naquele eterno instante curto! Eu absorvia os desejos de amor da tua alma e do teu corpo. E os sentia em tempestade! E a tua alma me aquecia... E o teu corpo me incendiava! Tanto, tanto, mas tanto... que... eu me acordei.
Acordei, e tu não estavas no meu quarto. E a tempestade consumia-me lá fora... Consumia-me aqui dentro. Mas astralmente tu ainda pairavas do meu lado. Sentia tuas auras quando respirava aquele ar...
Um Beijo... e uma Frase. Que frase? Esta, de Fernando Pessoa: “E, por fim, tenho sono, porque, não sei por que, acho que o sentido é dormir.” E eu voltei a dormir...
18 maio 2008
Descanso
lentidões roxas
de exaustas marchas fúnebres
luas cheias exauridas
decadentes
irreais
em sono morno de felinos negros
em frio de sóis sobre campos longos
cantos langues
sombriamente celestiais
fundos lagos
de sonhos parados
coaxam sapos
versos em sinais
todos lentos e cansados
como sangues de lábio em asas
como aves e névoa em taças
e venenos infernais
vinhos verdes
rosas fadas
se derramam das estrelas
choram morrem
olhos-noites de tristezas
em réquiens musicais
de amor negro e devastado
de um mundo já esgotado
em verbo e horas lentas
e finais...
de exaustas marchas fúnebres
luas cheias exauridas
decadentes
irreais
em sono morno de felinos negros
em frio de sóis sobre campos longos
cantos langues
sombriamente celestiais
fundos lagos
de sonhos parados
coaxam sapos
versos em sinais
todos lentos e cansados
como sangues de lábio em asas
como aves e névoa em taças
e venenos infernais
vinhos verdes
rosas fadas
se derramam das estrelas
choram morrem
olhos-noites de tristezas
em réquiens musicais
de amor negro e devastado
de um mundo já esgotado
em verbo e horas lentas
e finais...
30 abril 2008
A Cidade Fétida e a Estranha Doença do Senhor Noite
Sou conhecido como o senhor Louis Noite. Claro que meu sobrenome não é esse, mas assim tornei-me conhecido devido ao estranho caráter dos impiedosos sintomas de minha enfermidade, os quais me impedem de sair às ruas durante o dia. Não que os raios solares sejam a mim nocivos, o que ocorre é que o sofrimento causado pela desconhecida patologia torna-se inexplicavelmente insuportável durante o dia, amenizando-se pelas horas noturnas.
Outras características e sintomas de minha doença são ainda mais absurdos, frutos de uma inquietante alteração de consciência, que muito se assemelha a uma esquizofrenia, com a diferença essencial de que sempre mantenho-me consciente de tudo o que comigo ocorre. Para exemplificar claramente o comportamento de minha enfermidade, relatarei os acontecimentos daquela terrível noite, da qual julgo desnecessário mencionar sua data.
Realizava eu uma de minhas longas caminhadas noturnas, que é quando intento buscar momentâneo alívio à dor física e psicológica ocasionadas pela doença, e, costumeiramente, meu lobo negro juntou-se a mim. Sim, em minhas caminhadas, sempre tenho a companhia de um imenso lobo de espessa pelagem negra, que comigo dialoga durante toda a noite. Esse é mais um sintoma da enfermidade, a visão de um lobo que conversa como um humano e que, obviamente, não é visto por ninguém mais, e, assim, todos pensam que converso sozinho, mas quem me conhece já está acostumado com minha loucura. Às vezes, subo às costas do lobo, e ele carrega-me por estranhos e magnificentes lugares oníricos, os quais não é meu objetivo descrevê-los agora. Outro sintoma, que ao longo daquela noite encontrava-se um tanto exaltado, consiste no fato de, ao passar por qualquer árvore, invariavelmente, perceber um vulto luminoso ao lado, acima, ou interpenetrado na mesma. Identifico tal vulto como a alma da árvore e com ela mantenho um absurdo diálogo.
Contudo, como ia dizendo, aquela noite foi verdadeiramente terrível. Não diferiu muito das outras em sua essência, mas na intensidade e dramaticidade dos acontecimentos. Talvez por ser lua cheia, dizem que isso afeta os loucos. Passava eu por um grupo de jovens quando, involuntariamente, pude ouvir sobre o que se tratavam os assuntos de suas conversas. Ao fazê-lo, senti um tremendo choque em meu cérebro, uma febre alucinante que me transmitia a insuportável sensação de que meu crânio iria derreter. Atribuo tal choque à imensa quantidade de bobagens e de futilidades contidas nas conversas daqueles jovens, tão agressivas a minha mente enferma que a acometeu de uma febre vulcânica.
Prosseguindo em meu sinistro passeio, avistei em uma esquina um homem alto que muito chamava a atenção. Ele conversava com outros dois homens, e, aproximando-me, percebi que se tratava de um respeitável candidato a deputado. Então, outro sintoma de minha enfermidade principiou a se manifestar, agora na forma de estarrecedores distúrbios visuais. Meus olhos doentes e insanos não viam ali somente um alegre e eloqüente político, mas um ser monstruoso, de cuja boca gotejava uma baba amarelada e purulenta, de cujos olhos brotavam horripilantes ejaculações gangrenosas. E ainda tive a nítida impressão de que ao fundo da boca bestial daquele ser para mim desprezível havia algo como um maligno deboche. Aquele ar perverso e vazio que o político irradiava perturbou sobremaneira minha demente psique, e eu não conseguia entender como que os outros não se davam conta de nada disso, como tudo era tão normal para os outros e tão horrível para mim.
Já durante a madrugada, passei em frente a uma boate e pude captar os sons das músicas que de lá provinham. O resultado foi que percebi aqueles sons tão doentiamente que meus ouvidos gotejaram sangue por várias quadras. Felizmente, tinha sempre ao meu lado meu amigo lobo, que me consolava, contando-me histórias de um mundo muito além do nosso, o que tranqüilizava meu espírito atormentado.
Quando tentava fugir a todas as pessoas, pois já me era intolerável o que o normal comportamento humano sintomaticamente despertava em mim devido à enfermidade, tive a má-sorte de cruzar por um grupo de pessoas eufóricas e muito falantes. Durante arrastados minutos, pude ouvir tudo o que disseram, mesmo que deles me afastasse rapidamente, pois meus tímpanos tornaram-se superexcitados após o sangramento. E essa extrema sensibilidade de meus ouvidos permitiu que eu ouvisse não só as suas frívolas conversas, mas também, e sem dúvida isso é mais uma alucinação de minha doença, algo como uma outra voz simultânea que soava ao fundo das vozes normais e transmitiam a impressão intuitiva de que eram emitidas pelo interior dos falantes. Enquanto aquele grupo comentava sobre diversões e festas, as vozes ao fundo, num tom rouquenho, monstruoso, falavam de dor e desespero, de solidão e vazio. Enquanto eles abordavam suas atividades de seus empregos, as vozes ao fundo se diziam escravas de um trabalho inútil e embrutecedor; e ao falar o grupo sobre dinheiro, as vozes diabólicas grunhiam sobre a total falta de sentido na vida e a maquinização do ser humano; enquanto aquelas pessoas tratavam de suas alegrias e felicidades, as lúgubres vozes interiores rugiam e gemiam infinitas tristezas, desesperanças e fatalidades. E eu, ao ouvir todo aquele infernal espetáculo de horror, senti-me perigosamente asfixiado, e lágrimas infrenes brotaram de meus olhos e uma dor de cabeça lancinante torturou-me ao máximo.
Psiquicamente dilacerado pelos sintomas de minha enfermidade, subi às costas do lobo e saí da cidade. Minutos depois, avistamos uma imensa carruagem de aspecto mitológico, puxada por sete cavalos possantes e imponentes, certamente, outra alucinação oriunda da doença. Sobre o primeiro dos cavalos, estava um homem de longo cabelo, trajando vestes, de vermelho vivo, típicas de um guerreiro nórdico. Sobre a carruagem, avistei uma imensa águia de asas abertas, com o agudo olhar fixo no horizonte. Dentro do carro mitológico havia alguns indivíduos, e, ao lado de cada um, um lobo ou um leopardo. O cavaleiro de trajes vermelhos parou a carruagem e convidou-me a subir. Eu o fiz, juntamente com o lobo. A carruagem prosseguiu até subir um alto monte, onde um frio vento soprava incessante. No cume do monte, olhamos para trás e avistamos ao longe a cidade, envolta em uma fumaça negra e mórbida. Com o vento, um fedor indescritivelmente insuportável foi trazido daquela decadente região urbana. E eu pensei comigo que até então fizera parte daquela completa degeneração...
Outras características e sintomas de minha doença são ainda mais absurdos, frutos de uma inquietante alteração de consciência, que muito se assemelha a uma esquizofrenia, com a diferença essencial de que sempre mantenho-me consciente de tudo o que comigo ocorre. Para exemplificar claramente o comportamento de minha enfermidade, relatarei os acontecimentos daquela terrível noite, da qual julgo desnecessário mencionar sua data.
Realizava eu uma de minhas longas caminhadas noturnas, que é quando intento buscar momentâneo alívio à dor física e psicológica ocasionadas pela doença, e, costumeiramente, meu lobo negro juntou-se a mim. Sim, em minhas caminhadas, sempre tenho a companhia de um imenso lobo de espessa pelagem negra, que comigo dialoga durante toda a noite. Esse é mais um sintoma da enfermidade, a visão de um lobo que conversa como um humano e que, obviamente, não é visto por ninguém mais, e, assim, todos pensam que converso sozinho, mas quem me conhece já está acostumado com minha loucura. Às vezes, subo às costas do lobo, e ele carrega-me por estranhos e magnificentes lugares oníricos, os quais não é meu objetivo descrevê-los agora. Outro sintoma, que ao longo daquela noite encontrava-se um tanto exaltado, consiste no fato de, ao passar por qualquer árvore, invariavelmente, perceber um vulto luminoso ao lado, acima, ou interpenetrado na mesma. Identifico tal vulto como a alma da árvore e com ela mantenho um absurdo diálogo.
Contudo, como ia dizendo, aquela noite foi verdadeiramente terrível. Não diferiu muito das outras em sua essência, mas na intensidade e dramaticidade dos acontecimentos. Talvez por ser lua cheia, dizem que isso afeta os loucos. Passava eu por um grupo de jovens quando, involuntariamente, pude ouvir sobre o que se tratavam os assuntos de suas conversas. Ao fazê-lo, senti um tremendo choque em meu cérebro, uma febre alucinante que me transmitia a insuportável sensação de que meu crânio iria derreter. Atribuo tal choque à imensa quantidade de bobagens e de futilidades contidas nas conversas daqueles jovens, tão agressivas a minha mente enferma que a acometeu de uma febre vulcânica.
Prosseguindo em meu sinistro passeio, avistei em uma esquina um homem alto que muito chamava a atenção. Ele conversava com outros dois homens, e, aproximando-me, percebi que se tratava de um respeitável candidato a deputado. Então, outro sintoma de minha enfermidade principiou a se manifestar, agora na forma de estarrecedores distúrbios visuais. Meus olhos doentes e insanos não viam ali somente um alegre e eloqüente político, mas um ser monstruoso, de cuja boca gotejava uma baba amarelada e purulenta, de cujos olhos brotavam horripilantes ejaculações gangrenosas. E ainda tive a nítida impressão de que ao fundo da boca bestial daquele ser para mim desprezível havia algo como um maligno deboche. Aquele ar perverso e vazio que o político irradiava perturbou sobremaneira minha demente psique, e eu não conseguia entender como que os outros não se davam conta de nada disso, como tudo era tão normal para os outros e tão horrível para mim.
Já durante a madrugada, passei em frente a uma boate e pude captar os sons das músicas que de lá provinham. O resultado foi que percebi aqueles sons tão doentiamente que meus ouvidos gotejaram sangue por várias quadras. Felizmente, tinha sempre ao meu lado meu amigo lobo, que me consolava, contando-me histórias de um mundo muito além do nosso, o que tranqüilizava meu espírito atormentado.
Quando tentava fugir a todas as pessoas, pois já me era intolerável o que o normal comportamento humano sintomaticamente despertava em mim devido à enfermidade, tive a má-sorte de cruzar por um grupo de pessoas eufóricas e muito falantes. Durante arrastados minutos, pude ouvir tudo o que disseram, mesmo que deles me afastasse rapidamente, pois meus tímpanos tornaram-se superexcitados após o sangramento. E essa extrema sensibilidade de meus ouvidos permitiu que eu ouvisse não só as suas frívolas conversas, mas também, e sem dúvida isso é mais uma alucinação de minha doença, algo como uma outra voz simultânea que soava ao fundo das vozes normais e transmitiam a impressão intuitiva de que eram emitidas pelo interior dos falantes. Enquanto aquele grupo comentava sobre diversões e festas, as vozes ao fundo, num tom rouquenho, monstruoso, falavam de dor e desespero, de solidão e vazio. Enquanto eles abordavam suas atividades de seus empregos, as vozes ao fundo se diziam escravas de um trabalho inútil e embrutecedor; e ao falar o grupo sobre dinheiro, as vozes diabólicas grunhiam sobre a total falta de sentido na vida e a maquinização do ser humano; enquanto aquelas pessoas tratavam de suas alegrias e felicidades, as lúgubres vozes interiores rugiam e gemiam infinitas tristezas, desesperanças e fatalidades. E eu, ao ouvir todo aquele infernal espetáculo de horror, senti-me perigosamente asfixiado, e lágrimas infrenes brotaram de meus olhos e uma dor de cabeça lancinante torturou-me ao máximo.
Psiquicamente dilacerado pelos sintomas de minha enfermidade, subi às costas do lobo e saí da cidade. Minutos depois, avistamos uma imensa carruagem de aspecto mitológico, puxada por sete cavalos possantes e imponentes, certamente, outra alucinação oriunda da doença. Sobre o primeiro dos cavalos, estava um homem de longo cabelo, trajando vestes, de vermelho vivo, típicas de um guerreiro nórdico. Sobre a carruagem, avistei uma imensa águia de asas abertas, com o agudo olhar fixo no horizonte. Dentro do carro mitológico havia alguns indivíduos, e, ao lado de cada um, um lobo ou um leopardo. O cavaleiro de trajes vermelhos parou a carruagem e convidou-me a subir. Eu o fiz, juntamente com o lobo. A carruagem prosseguiu até subir um alto monte, onde um frio vento soprava incessante. No cume do monte, olhamos para trás e avistamos ao longe a cidade, envolta em uma fumaça negra e mórbida. Com o vento, um fedor indescritivelmente insuportável foi trazido daquela decadente região urbana. E eu pensei comigo que até então fizera parte daquela completa degeneração...
21 abril 2008
Noivado
noivado da noite
com o mundo da lua:
núpcias minhas...
Noite:
eu não quero
que tu me digas coisa nenhuma
não me enchas com filosofias
não me cegues de verdade inútil
te amo porque és silêncio
e o teu mistério só fala de sonho
e eu não quero saber de mais nada
então fecha teus olhos de estrelas
então abre teus lábios de trevas
e beija minha boca de morte
Noite...
deixa que outros discutam a vida
deixa que outros proclamem o que é certo
deixa que outros outorguem saberes...
nós somos tristes
não temos nada com isso...
por isso te digo:
fecha teus lábios de ocultos
abre teus lábios de longes
e beija minha boca de fim
com o mundo da lua:
núpcias minhas...
Noite:
eu não quero
que tu me digas coisa nenhuma
não me enchas com filosofias
não me cegues de verdade inútil
te amo porque és silêncio
e o teu mistério só fala de sonho
e eu não quero saber de mais nada
então fecha teus olhos de estrelas
então abre teus lábios de trevas
e beija minha boca de morte
Noite...
deixa que outros discutam a vida
deixa que outros proclamem o que é certo
deixa que outros outorguem saberes...
nós somos tristes
não temos nada com isso...
por isso te digo:
fecha teus lábios de ocultos
abre teus lábios de longes
e beija minha boca de fim
13 abril 2008
Beijo
cinza antigo da coruja
em toques ao branco em neve lunar
negro da pata de aranha
em toques de rubros ao casto da rosa
treva da capa da noite
em toques de sol à íris que surge
escuro do pêlo de onça
em toques ao claro de água na fonte
cipreste de verde tão triste
em toques ao azul calmo de céus:
meus lábios
nos teus
em toques ao branco em neve lunar
negro da pata de aranha
em toques de rubros ao casto da rosa
treva da capa da noite
em toques de sol à íris que surge
escuro do pêlo de onça
em toques ao claro de água na fonte
cipreste de verde tão triste
em toques ao azul calmo de céus:
meus lábios
nos teus
31 março 2008
O Baque no Fundo do Abismo
Deveria ser mais uma de minhas consoladoras caminhadas noturnas. Como disse Victor Hugo, “Eu sou um poeta. É a melancolia da gente da minha profissão que nos faz andar de noite pelas ruas.” Porém, aquela caminhada não foi como as outras...
A princípio, apenas digo que parti em minha tranqüilidade soturna para perambular solitário pelas ruas obscurecidas de minha cidade. A temperatura reconfortantemente fria do cair da noite e o céu absolutamente límpido, cintilante pela onírica magia de um quase plenilúnio, causaram-me uma agradabilíssima sensação, um bem-estar físico e psicológico quase transcendente. E ocorreu que enquanto tais sensações atingiam o auge no momento em que percorria um trecho belamente arborizado e com algumas casas bastante antigas, carregadas de recordações e impressões, percebi a minha frente o elegante caminhar de uma mulher de longos cabelos castanhos escuros, vestindo um casaco preto com detalhes em lilás. Não pude ver seu rosto, mas algo nela atraiu-me fantasticamente, uma atração que não saberia explicar, que não era meramente física, uma atração quase sobrenatural. E foi essa poderosa sensação que fez com que eu seguisse a desconhecida mulher pelas ruas mergulhadas na noite, não me importando nem um pouco o seu destino...
Seu caminhar era charmoso, porém rápido, e necessitei apertar bastante o passo para acompanhá-la de uma distância relativamente pequena. Minha intenção era conseguir observar seu rosto, o qual, imaginava alucinadamente, deveria ser de uma rara beleza. Nos instantes em que ela olhava para os lados, ao atravessar as ruas, eu podia discernir com dificuldade algo de seu perfil, o que já me transmitia uma vaga idéia de sua fisionomia e confirmava minhas suspeitas sobre sua aparência física: concluí definitivamente que deveria ser de fato uma bela mulher...
No entanto, não conseguia me aproximar da desconhecida moça, seu caminhar era realmente acelerado, e o máximo que lograva manter era a nossa distância constante. Caminhávamos na mesma velocidade, se eu intensificasse meu passo, ela também o fazia, o que me levou a desconfiar que ela tinha conhecimento que eu a seguia e, temendo minha aproximação, decidiu chegar o mais rápido possível ao seu destino. Pelo menos foi o que pensei. Porém, apesar da exagerada velocidade de caminhada para uma mulher de aparência delicada e estatura mediana, não chegávamos a lugar algum. Estávamos atingindo já lugares afastados da cidade, pouco conhecidos por mim, contudo, minha inexplicável atração pela suposta beleza divina da misteriosa desconhecida era tamanha que nem pensei em desistir de minha insana perseguição.
Mas devo confessar que ao passar por aquelas ruas escuras, distantes, sombrias, comecei a recear... Um vago medo invadiu-me e passei a dirigir minha atenção não só para a mulher a minha frente, mas também para o que ocorria ao meu redor. A noite avançava, a lua cintilava intensa pelo empíreo sem nuvens, e um vento frio soprava impiedosamente em meu rosto, o que não chegava a ser para mim um desconforto, pois estava com o corpo já bastante aquecido.
Como disse, principiei a observar com mais atenção os meus arredores e percebi que, mesmo com o cair da temperatura, um sem-número de pessoas começava a abrir portas e janelas de suas residências para observar as ruas. Não entendia absolutamente nada, mas os olhares que aquelas pessoas a mim dardejavam não eram nem um pouco amistosos...
Em um momento, tive a nítida impressão que a mulher que eu seguia voltou seu rosto em minha direção, e julguei contemplar como um relâmpago um rosto feminino irrepreensivelmente angelical, com expressivos olhos escuros e uma boca de tonalidade avermelhada. Pareceu-me ainda que ela esboçou um suave sorriso. Porém, não pude ter certeza de nada, a escuridão naquele trecho impediu-me. E ela prosseguia em sua frenética caminhada, não obstante não perder a graça e a delicadeza jamais. E eu, sempre a seguindo desvairado, não podia deixar de perceber o número crescente de indivíduos, homens e mulheres, que surgiam às portas e janelas, e todos eles me fitavam canhestramente. Pude ver em seus olhos algo como um ódio, uma violência latente dirigida contra mim, um rancor, uma malignidade. Confesso que a partir desse instante um verdadeiro temor assolou meu coração, mas já não podia deixar de seguir aquele magnífico ser feminino, era tarde demais.
Avançava infrene, mesmo me sentindo seriamente ameaçado. E o clima de ameaça tornou-se ainda mais carregado no momento em que verifiquei estarrecido que as fisionomias de todas aquelas pessoas assustadoras pareceram sofrer algum tipo de funesta alteração, uma modificação monstruosa. Aparentavam ter perdido algo de suas características humanas para assumirem outras doentiamente diabólicas. Intensificou-se a perversidade, a malignidade daqueles rostos, e acelerei ainda mais o passo, não só para acompanhar a bela mulher, mas também para fugir daquelas visões pavorosas. Porém aquelas pessoas de expressões demoníacas estavam em todas as casas, em todas as portas, em todas as janelas. E o que mais me assombrava era a impressão de profundo e implacável ódio que a mim, e somente a mim, transmitiam. Intentei compreender o porquê de tamanha maldade ser a mim direcionada e deixei que minha intuição falasse...
Seria somente porque eu perseguia a enigmática mulher? O que haveria de especial nela? Seria algo divino ou diabólico? Ou ambos? Ou os motivos do ódio anormal e monstruoso contra mim possuiriam raízes mais diversas, mais profundas, mais secretas? O que eu via nos olhares ominosos de todos era uma degradante e inexorável miséria. Não uma miséria material (em nossos dias, a humanidade é tão miserável que se julga que a única miséria possível é a ausência de dinheiro e bens materiais), mas uma vergonhosa miséria psíquica e espiritual. E percebi que todo o ódio que me ameaçava tinha como causa o fato de que eu ainda sonhava...
Sonhava romântica e absurdamente ao perseguir alucinado e febrento pela noite invernal e escura aquela mulher supostamente misteriosa. E isso era para eles inadmissível, eu jamais deveria cometer o abominável crime de sonhar insanamente em meio a pessoas que há muito já extirparam e asfixiaram suas próprias almas. E o fizeram, segundo elas, em nome de uma fina intelectualidade e de uma moderna filosofia.
A verdade é que, para eles, seres como eu não deveriam dar-se ao trabalho de existir. Afinal, de acordo com o julgamento daquela gente, uma real existência consistia simplesmente em viver-se como um cadáver ainda com energia vital. Vivo, porém interiormente morto. Percebi de forma definitiva naqueles instantes oníricos, de sonho e pesadelo, que o terrível peso anímico de minha existência anômala recairia com toda sua força sobre minhas costas.
O ódio egóico daquelas pessoas de mefistofélica perversidade desejava esmagar-me, banir a minha diferença do meio delas. Como seria possível aceitar alguém tão diverso das determinações padronizadas? Um lunático, um nefelibata, um homem absurdo como eu, um ser impregnado de ideais e emoções nebulosas, de ânsias de um sublime perdido, deveria ser naturalmente aniquilado. Eu seria tão-somente um mau-exemplo, uma indesejada influência a todos aqueles cadáveres autômatos que não queriam abandonar suas acomodações. Não sei como ocorreu aquela materialização tão ostensível, tão visível de tamanho ódio a mim direcionado. O que sei é que fui escolhido como uma espécie de bode expiatório. Iria pagar o altíssimo preço por ter tido a ousadia de sonhar com o impossível, com o inatingível, com a busca do segredo das almas... O segredo daquela mulher era um segredo de alma. E aqueles cadáveres da miséria do mundo que intentavam massacrar-me com seus olhares mentiam a si mesmos que eles representavam toda a vida possível e estavam certos que as minhas sombras nebulosas e secretas do sonho e do ideal eram símbolos de morte. Eu era um louco e, como tal, era um perigo à ordem geral estabelecida: afinal, todos devemos ser iguais...
Na minha insânia, portanto, eu prosseguia seguindo os passos fantásticos da moça. E a que preço a minha demência me carregaria? O que deve pagar alguém que ainda crê possível encontrar algo mais em uma simples perseguição noturna que uma simples mulher, tão normal e medíocre como todas as outras? Como eu poderia ser tão desvairado a ponto de acreditar que naquela mulher que eu seguia haveria mais que um corpo vulgar desprovido de alma como outorga a regra geral? Porém, por mais absurdo que isso fosse, eu acreditava. Para mim, naquela mulher havia alma, algo me dizia que ela não era como as outras, que valeria a pena segui-la... E prossegui.
Mas também algo mais prosseguiu sobre meus calcanhares: ao voltar rapidamente meu olhar para trás, senti um calafrio percorrer minha medula ao observar todas aquelas pessoas monstruosas correndo em meu encalço com um ódio catastrófico em suas faces cada vez mais disformemente demoníacas. A mulher à minha frente acelerou seu passo, agora para uma corrida desesperada, e, é claro, fiz o mesmo. E essa infernal perseguição manteve-se por um tempo indeterminado, porém relativamente longo, onde fomos paulatinamente deixando as casas e as ruas para trás e penetrando em um local desolado onde nada havia além de um terreno escuro e pedregoso, em um ambiente verdadeiramente insalubre. Nesse instante, dei mais uma olhada à minha retaguarda e percebi que tinha obtido uma considerável vantagem sobre meus perseguidores, mas eles permaneciam em meu encalce.
Foi então que a mulher estancou sua corrida subitamente e voltou-se em minha direção... O que meus olhos vislumbraram nesse momento assombrou-me terrivelmente: diante de mim estava um rosto onde somente se distinguia dois olhos escuros e doces com chamas violetas que me fitavam intensamente, como que escrutando os recônditos de minha alma, e uma boca vermelha como o sangue que me convidava estranhamente a beijá-la. E em seu rosto não havia mais nada, só olhos e boca. Tudo o mais era invisível, transparente, de modo que me era possível divisar os seus belos cabelos caídos sobre seu casaco. Nem mesmo seu pescoço era distinguível. Parecia algo suspenso no ar aqueles seus cabelos. O restante de seu corpo estava coberto por suas roupas, inclusive suas mãos por estranhas luvas brancas.
Após o choque causado pela visão absurda, desviei minha atenção para um ponto à frente da mulher e percebi para meu maior assombro que estávamos a poucos passos de um vasto precipício. Os olhos daquela moça fantástica permaneciam fixos em mim, como se quisessem descobrir-me profundamente. Intentei, atônito, falar-lhe, mas antes que o pudesse fazer, surgiu por entre a escuridão um daqueles monstros que me perseguiam e derrubou-me violentamente no abismo, caindo ele junto comigo. Mas minha queda no precipício também foi insólita: eu caía, muito lentamente, quase que flutuando. Mas caía...
Porém, aquele que me empurrou já havia caído. Ouvi o baque fúnebre de sua queda. E logo depois, discerni caindo todos os outros seres diabólicos que me perseguiam, dezenas deles, pessoas monstruosas que submergiam no mar de trevas com uma velocidade vertiginosa, tanto que rapidamente passaram por mim, que me mantinha em minha queda canhestramente lenta.
Enquanto eu caía pairando, transcorreram alguns segundos, e então ouvi um aterrador baque que me gelou o espírito. Era o som dantesco da queda dos monstros... Porém, estranhamente, mesmo sabendo que cedo ou tarde eu também deveria atingir o fundo daquele báratro, não me desesperei. E simplesmente pelo fato de que dirigindo minha atenção para os escuros olhos violetas daquela que na beira do precipício me observava, percebi que ela sem dúvida faria algo para evitar minha queda... Sim, eu possuía essa certeza, aquele ser feminino não me deixaria cair naquele abismo... Ou deixaria? Bem, seja como for, isso já aconteceu... Ou seja, ou eu caí, ou fui salvo. E este relato foi escrito. Resta saber em que condições? Na escuridão do precipício ou sob a luz dos olhos dela?...
A princípio, apenas digo que parti em minha tranqüilidade soturna para perambular solitário pelas ruas obscurecidas de minha cidade. A temperatura reconfortantemente fria do cair da noite e o céu absolutamente límpido, cintilante pela onírica magia de um quase plenilúnio, causaram-me uma agradabilíssima sensação, um bem-estar físico e psicológico quase transcendente. E ocorreu que enquanto tais sensações atingiam o auge no momento em que percorria um trecho belamente arborizado e com algumas casas bastante antigas, carregadas de recordações e impressões, percebi a minha frente o elegante caminhar de uma mulher de longos cabelos castanhos escuros, vestindo um casaco preto com detalhes em lilás. Não pude ver seu rosto, mas algo nela atraiu-me fantasticamente, uma atração que não saberia explicar, que não era meramente física, uma atração quase sobrenatural. E foi essa poderosa sensação que fez com que eu seguisse a desconhecida mulher pelas ruas mergulhadas na noite, não me importando nem um pouco o seu destino...
Seu caminhar era charmoso, porém rápido, e necessitei apertar bastante o passo para acompanhá-la de uma distância relativamente pequena. Minha intenção era conseguir observar seu rosto, o qual, imaginava alucinadamente, deveria ser de uma rara beleza. Nos instantes em que ela olhava para os lados, ao atravessar as ruas, eu podia discernir com dificuldade algo de seu perfil, o que já me transmitia uma vaga idéia de sua fisionomia e confirmava minhas suspeitas sobre sua aparência física: concluí definitivamente que deveria ser de fato uma bela mulher...
No entanto, não conseguia me aproximar da desconhecida moça, seu caminhar era realmente acelerado, e o máximo que lograva manter era a nossa distância constante. Caminhávamos na mesma velocidade, se eu intensificasse meu passo, ela também o fazia, o que me levou a desconfiar que ela tinha conhecimento que eu a seguia e, temendo minha aproximação, decidiu chegar o mais rápido possível ao seu destino. Pelo menos foi o que pensei. Porém, apesar da exagerada velocidade de caminhada para uma mulher de aparência delicada e estatura mediana, não chegávamos a lugar algum. Estávamos atingindo já lugares afastados da cidade, pouco conhecidos por mim, contudo, minha inexplicável atração pela suposta beleza divina da misteriosa desconhecida era tamanha que nem pensei em desistir de minha insana perseguição.
Mas devo confessar que ao passar por aquelas ruas escuras, distantes, sombrias, comecei a recear... Um vago medo invadiu-me e passei a dirigir minha atenção não só para a mulher a minha frente, mas também para o que ocorria ao meu redor. A noite avançava, a lua cintilava intensa pelo empíreo sem nuvens, e um vento frio soprava impiedosamente em meu rosto, o que não chegava a ser para mim um desconforto, pois estava com o corpo já bastante aquecido.
Como disse, principiei a observar com mais atenção os meus arredores e percebi que, mesmo com o cair da temperatura, um sem-número de pessoas começava a abrir portas e janelas de suas residências para observar as ruas. Não entendia absolutamente nada, mas os olhares que aquelas pessoas a mim dardejavam não eram nem um pouco amistosos...
Em um momento, tive a nítida impressão que a mulher que eu seguia voltou seu rosto em minha direção, e julguei contemplar como um relâmpago um rosto feminino irrepreensivelmente angelical, com expressivos olhos escuros e uma boca de tonalidade avermelhada. Pareceu-me ainda que ela esboçou um suave sorriso. Porém, não pude ter certeza de nada, a escuridão naquele trecho impediu-me. E ela prosseguia em sua frenética caminhada, não obstante não perder a graça e a delicadeza jamais. E eu, sempre a seguindo desvairado, não podia deixar de perceber o número crescente de indivíduos, homens e mulheres, que surgiam às portas e janelas, e todos eles me fitavam canhestramente. Pude ver em seus olhos algo como um ódio, uma violência latente dirigida contra mim, um rancor, uma malignidade. Confesso que a partir desse instante um verdadeiro temor assolou meu coração, mas já não podia deixar de seguir aquele magnífico ser feminino, era tarde demais.
Avançava infrene, mesmo me sentindo seriamente ameaçado. E o clima de ameaça tornou-se ainda mais carregado no momento em que verifiquei estarrecido que as fisionomias de todas aquelas pessoas assustadoras pareceram sofrer algum tipo de funesta alteração, uma modificação monstruosa. Aparentavam ter perdido algo de suas características humanas para assumirem outras doentiamente diabólicas. Intensificou-se a perversidade, a malignidade daqueles rostos, e acelerei ainda mais o passo, não só para acompanhar a bela mulher, mas também para fugir daquelas visões pavorosas. Porém aquelas pessoas de expressões demoníacas estavam em todas as casas, em todas as portas, em todas as janelas. E o que mais me assombrava era a impressão de profundo e implacável ódio que a mim, e somente a mim, transmitiam. Intentei compreender o porquê de tamanha maldade ser a mim direcionada e deixei que minha intuição falasse...
Seria somente porque eu perseguia a enigmática mulher? O que haveria de especial nela? Seria algo divino ou diabólico? Ou ambos? Ou os motivos do ódio anormal e monstruoso contra mim possuiriam raízes mais diversas, mais profundas, mais secretas? O que eu via nos olhares ominosos de todos era uma degradante e inexorável miséria. Não uma miséria material (em nossos dias, a humanidade é tão miserável que se julga que a única miséria possível é a ausência de dinheiro e bens materiais), mas uma vergonhosa miséria psíquica e espiritual. E percebi que todo o ódio que me ameaçava tinha como causa o fato de que eu ainda sonhava...
Sonhava romântica e absurdamente ao perseguir alucinado e febrento pela noite invernal e escura aquela mulher supostamente misteriosa. E isso era para eles inadmissível, eu jamais deveria cometer o abominável crime de sonhar insanamente em meio a pessoas que há muito já extirparam e asfixiaram suas próprias almas. E o fizeram, segundo elas, em nome de uma fina intelectualidade e de uma moderna filosofia.
A verdade é que, para eles, seres como eu não deveriam dar-se ao trabalho de existir. Afinal, de acordo com o julgamento daquela gente, uma real existência consistia simplesmente em viver-se como um cadáver ainda com energia vital. Vivo, porém interiormente morto. Percebi de forma definitiva naqueles instantes oníricos, de sonho e pesadelo, que o terrível peso anímico de minha existência anômala recairia com toda sua força sobre minhas costas.
O ódio egóico daquelas pessoas de mefistofélica perversidade desejava esmagar-me, banir a minha diferença do meio delas. Como seria possível aceitar alguém tão diverso das determinações padronizadas? Um lunático, um nefelibata, um homem absurdo como eu, um ser impregnado de ideais e emoções nebulosas, de ânsias de um sublime perdido, deveria ser naturalmente aniquilado. Eu seria tão-somente um mau-exemplo, uma indesejada influência a todos aqueles cadáveres autômatos que não queriam abandonar suas acomodações. Não sei como ocorreu aquela materialização tão ostensível, tão visível de tamanho ódio a mim direcionado. O que sei é que fui escolhido como uma espécie de bode expiatório. Iria pagar o altíssimo preço por ter tido a ousadia de sonhar com o impossível, com o inatingível, com a busca do segredo das almas... O segredo daquela mulher era um segredo de alma. E aqueles cadáveres da miséria do mundo que intentavam massacrar-me com seus olhares mentiam a si mesmos que eles representavam toda a vida possível e estavam certos que as minhas sombras nebulosas e secretas do sonho e do ideal eram símbolos de morte. Eu era um louco e, como tal, era um perigo à ordem geral estabelecida: afinal, todos devemos ser iguais...
Na minha insânia, portanto, eu prosseguia seguindo os passos fantásticos da moça. E a que preço a minha demência me carregaria? O que deve pagar alguém que ainda crê possível encontrar algo mais em uma simples perseguição noturna que uma simples mulher, tão normal e medíocre como todas as outras? Como eu poderia ser tão desvairado a ponto de acreditar que naquela mulher que eu seguia haveria mais que um corpo vulgar desprovido de alma como outorga a regra geral? Porém, por mais absurdo que isso fosse, eu acreditava. Para mim, naquela mulher havia alma, algo me dizia que ela não era como as outras, que valeria a pena segui-la... E prossegui.
Mas também algo mais prosseguiu sobre meus calcanhares: ao voltar rapidamente meu olhar para trás, senti um calafrio percorrer minha medula ao observar todas aquelas pessoas monstruosas correndo em meu encalço com um ódio catastrófico em suas faces cada vez mais disformemente demoníacas. A mulher à minha frente acelerou seu passo, agora para uma corrida desesperada, e, é claro, fiz o mesmo. E essa infernal perseguição manteve-se por um tempo indeterminado, porém relativamente longo, onde fomos paulatinamente deixando as casas e as ruas para trás e penetrando em um local desolado onde nada havia além de um terreno escuro e pedregoso, em um ambiente verdadeiramente insalubre. Nesse instante, dei mais uma olhada à minha retaguarda e percebi que tinha obtido uma considerável vantagem sobre meus perseguidores, mas eles permaneciam em meu encalce.
Foi então que a mulher estancou sua corrida subitamente e voltou-se em minha direção... O que meus olhos vislumbraram nesse momento assombrou-me terrivelmente: diante de mim estava um rosto onde somente se distinguia dois olhos escuros e doces com chamas violetas que me fitavam intensamente, como que escrutando os recônditos de minha alma, e uma boca vermelha como o sangue que me convidava estranhamente a beijá-la. E em seu rosto não havia mais nada, só olhos e boca. Tudo o mais era invisível, transparente, de modo que me era possível divisar os seus belos cabelos caídos sobre seu casaco. Nem mesmo seu pescoço era distinguível. Parecia algo suspenso no ar aqueles seus cabelos. O restante de seu corpo estava coberto por suas roupas, inclusive suas mãos por estranhas luvas brancas.
Após o choque causado pela visão absurda, desviei minha atenção para um ponto à frente da mulher e percebi para meu maior assombro que estávamos a poucos passos de um vasto precipício. Os olhos daquela moça fantástica permaneciam fixos em mim, como se quisessem descobrir-me profundamente. Intentei, atônito, falar-lhe, mas antes que o pudesse fazer, surgiu por entre a escuridão um daqueles monstros que me perseguiam e derrubou-me violentamente no abismo, caindo ele junto comigo. Mas minha queda no precipício também foi insólita: eu caía, muito lentamente, quase que flutuando. Mas caía...
Porém, aquele que me empurrou já havia caído. Ouvi o baque fúnebre de sua queda. E logo depois, discerni caindo todos os outros seres diabólicos que me perseguiam, dezenas deles, pessoas monstruosas que submergiam no mar de trevas com uma velocidade vertiginosa, tanto que rapidamente passaram por mim, que me mantinha em minha queda canhestramente lenta.
Enquanto eu caía pairando, transcorreram alguns segundos, e então ouvi um aterrador baque que me gelou o espírito. Era o som dantesco da queda dos monstros... Porém, estranhamente, mesmo sabendo que cedo ou tarde eu também deveria atingir o fundo daquele báratro, não me desesperei. E simplesmente pelo fato de que dirigindo minha atenção para os escuros olhos violetas daquela que na beira do precipício me observava, percebi que ela sem dúvida faria algo para evitar minha queda... Sim, eu possuía essa certeza, aquele ser feminino não me deixaria cair naquele abismo... Ou deixaria? Bem, seja como for, isso já aconteceu... Ou seja, ou eu caí, ou fui salvo. E este relato foi escrito. Resta saber em que condições? Na escuridão do precipício ou sob a luz dos olhos dela?...
06 março 2008
Eu Amo a Humanidade
Estão completamente enganados aqueles que dizem que eu odeio a humanidade. Como poderia odiá-la? Em amo a humanidade infinitamente, meu amor não pode ser maior. Estou certo que a amo mais que vocês todos, afinal, eu amo tudo que não presta. Há muito tenho dito que sou um doente, uma alma enferma que ama o horror, conseqüentemente, amo a humanidade, não cansarei de repetir isso.
Sou realmente apaixonado pelo sangue em suas mais variadas formas, menos dentro dos organismos. Sim, eu adoro ver o sangue derramado, coagulado em lagos cobertos por corvos, o sangue podre fedendo pelas ruas, o sangue de um sapo esmagado a pedradas, todos os tipos de sangue espalhados, seja A, B, O, AB, nos campos de batalha, nas esquinas das grandes cidades, o sangue do assassinato, do estupro, o sangue do trabalhador explorado esvaindo-se por seus poros, o sangue das focas tingindo o gelo do ártico, o sangue com aids, o sangue verde da Amazônia evaporando ao sol, o sangue do petróleo tingindo de negro os mares, sim, eu sou um demente, eu amo todos esses sangues, por isso eu amo a humanidade!
Como não amar a humanidade se é ela que derrama tanto sangue pelo mundo? Se é ela que espalha tanto horror pelas ruas, se é ela que faz as guerras, e das guerras surge muito sangue. Sangue! Eu amo a humanidade porque sou muito cruel, frio e insensível. Adoro ver os animais levando balas nos miolos, de ver os miolos sanguinolentos voarem pelos ares! Esse prazer que sinto é sublime... É a humanidade que estoura esses miolos? Oh sim, é ela, por isso eu amo a humanidade infinitamente, sem ela, como eu iria me divertir? Quando vejo uma criança sendo morta por bala perdida, fico triste quando o sangue dela não respinga (sim, eu disse quando ele NÃO respinga) no meu rosto. Gosto de sentir o sangue no rosto, o sangue quente, e viva a humanidade que mata crianças com balas perdidas! Eu amo a humanidade, não me cansarei de repetir.
Eu adoro campos queimados, matas queimadas, tostadas, devastadas, o chão duro, seco, cinzento, coberto de carcaças de animais tostados, adoro pisar sobre eles, sentir os ossos quebrando, o fedor de carniça, eu amo todo esse horror. Eu sou muito mau, gosto de saber que faço parte da humanidade e que é a humanidade que massacra todos esses seres inocentes. Eu amo tudo que não presta porque eu sou humano e não presto também, por isso eu amo a humanidade. Adoro rios imundos, ares imundos, mares imundos, adoro lixões a céu aberto, adoro valetas fétidas e enfermiças, eu sou mesmo um demônio. Por isso eu amo a humanidade, porque ela suja tudo que vê, a humanidade é formada por porcos, e eu amo porcos também.
Eu amo tudo que é desonesto, injusto e corrupto, eu amo a falsidade e a ganância, a hipocrisia, “ó falso hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”(Baudelaire). Eu vos amo, porque vós sois humanos, e eu amo a humanidade. Amo tudo que chafurda no lodo, amo a miséria, a fome, o medo, amo ver a mãe africana dando terra suja para seu filho comer! Que espetáculo aos meus olhos diabólicos e humanos. Eu sou realmente muito mau, e sinto um deleitoso prazer ao contemplar meia dúzia de políticos enriquecendo às custas de todo um povo de ignorantes retardados fãs de bigbrother. Isso é digno da humanidade. E eu a amo muito e com orgulho.
Eu sou um diabo, e por ser um diabo amo todas as religiões que prometem o céu, porque o homem crendo que tem o céu, não precisa melhorar, e continuam os merdas de sempre. Eu amo isso tudo, essas religiões que são Robin Hood ao inverso: roubam dos pobres pra dar aos ricos. Amo toda essa mentira porque mentir é humano e eu amo a humanidade.
Eu amo tudo onde não há amor, eu odeio o amor, porque o amor não faz parte da humanidade, e eu só amo a humanidade, não cansarei de repetir isso. Amo todos aqueles que não puderem se amar, amo os que não se amaram, os que não deixaram que se amassem, amo os que não souberam ou não quiseram amar, e a humanidade ama não amar, por isso eu amo a humanidade. Amo! Enfim, eu amo o fim deste planeta, de toda vida que há nele, amo a destruição total e absoluta de tudo. E a humanidade está fazendo isso muito bem... Por isso eu amo a humanidade. Eu, definitivamente, não presto.
Sou realmente apaixonado pelo sangue em suas mais variadas formas, menos dentro dos organismos. Sim, eu adoro ver o sangue derramado, coagulado em lagos cobertos por corvos, o sangue podre fedendo pelas ruas, o sangue de um sapo esmagado a pedradas, todos os tipos de sangue espalhados, seja A, B, O, AB, nos campos de batalha, nas esquinas das grandes cidades, o sangue do assassinato, do estupro, o sangue do trabalhador explorado esvaindo-se por seus poros, o sangue das focas tingindo o gelo do ártico, o sangue com aids, o sangue verde da Amazônia evaporando ao sol, o sangue do petróleo tingindo de negro os mares, sim, eu sou um demente, eu amo todos esses sangues, por isso eu amo a humanidade!
Como não amar a humanidade se é ela que derrama tanto sangue pelo mundo? Se é ela que espalha tanto horror pelas ruas, se é ela que faz as guerras, e das guerras surge muito sangue. Sangue! Eu amo a humanidade porque sou muito cruel, frio e insensível. Adoro ver os animais levando balas nos miolos, de ver os miolos sanguinolentos voarem pelos ares! Esse prazer que sinto é sublime... É a humanidade que estoura esses miolos? Oh sim, é ela, por isso eu amo a humanidade infinitamente, sem ela, como eu iria me divertir? Quando vejo uma criança sendo morta por bala perdida, fico triste quando o sangue dela não respinga (sim, eu disse quando ele NÃO respinga) no meu rosto. Gosto de sentir o sangue no rosto, o sangue quente, e viva a humanidade que mata crianças com balas perdidas! Eu amo a humanidade, não me cansarei de repetir.
Eu adoro campos queimados, matas queimadas, tostadas, devastadas, o chão duro, seco, cinzento, coberto de carcaças de animais tostados, adoro pisar sobre eles, sentir os ossos quebrando, o fedor de carniça, eu amo todo esse horror. Eu sou muito mau, gosto de saber que faço parte da humanidade e que é a humanidade que massacra todos esses seres inocentes. Eu amo tudo que não presta porque eu sou humano e não presto também, por isso eu amo a humanidade. Adoro rios imundos, ares imundos, mares imundos, adoro lixões a céu aberto, adoro valetas fétidas e enfermiças, eu sou mesmo um demônio. Por isso eu amo a humanidade, porque ela suja tudo que vê, a humanidade é formada por porcos, e eu amo porcos também.
Eu amo tudo que é desonesto, injusto e corrupto, eu amo a falsidade e a ganância, a hipocrisia, “ó falso hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”(Baudelaire). Eu vos amo, porque vós sois humanos, e eu amo a humanidade. Amo tudo que chafurda no lodo, amo a miséria, a fome, o medo, amo ver a mãe africana dando terra suja para seu filho comer! Que espetáculo aos meus olhos diabólicos e humanos. Eu sou realmente muito mau, e sinto um deleitoso prazer ao contemplar meia dúzia de políticos enriquecendo às custas de todo um povo de ignorantes retardados fãs de bigbrother. Isso é digno da humanidade. E eu a amo muito e com orgulho.
Eu sou um diabo, e por ser um diabo amo todas as religiões que prometem o céu, porque o homem crendo que tem o céu, não precisa melhorar, e continuam os merdas de sempre. Eu amo isso tudo, essas religiões que são Robin Hood ao inverso: roubam dos pobres pra dar aos ricos. Amo toda essa mentira porque mentir é humano e eu amo a humanidade.
Eu amo tudo onde não há amor, eu odeio o amor, porque o amor não faz parte da humanidade, e eu só amo a humanidade, não cansarei de repetir isso. Amo todos aqueles que não puderem se amar, amo os que não se amaram, os que não deixaram que se amassem, amo os que não souberam ou não quiseram amar, e a humanidade ama não amar, por isso eu amo a humanidade. Amo! Enfim, eu amo o fim deste planeta, de toda vida que há nele, amo a destruição total e absoluta de tudo. E a humanidade está fazendo isso muito bem... Por isso eu amo a humanidade. Eu, definitivamente, não presto.
04 março 2008
Análise de Minha Obra
No link abaixo encontra-se uma magnífica análise feita por Inominável Ser acerca de minha obra: http://covasombriaes.forumeiros.com/os-sombrios-literatos-contemporaneos-f16/alessandro-reiffer-o-escritor-t349.htm#1929
25 fevereiro 2008
Soneto ao Algo
É... até as estrelas um dia se apagam
e a face da lua é sempre fatal,
há um cisne que canta no bem e no mal
e avisos de anjos há muito me vagam...
De sonhos-fins minhas noites se alagam,
nos vales ao longe um selo e um sinal,
sussurram os ventos sentença mortal
e asas de loucas subindo me tragam...
Algo de estranho pousou sobre mim,
que olhos não vêem mas os olhos me sentem
e voa distante partindo enfim...
Mas... irei buscá-la em meu peito doente
antes que caia o derradeiro fim:
terei ainda alma e será suficiente.
e a face da lua é sempre fatal,
há um cisne que canta no bem e no mal
e avisos de anjos há muito me vagam...
De sonhos-fins minhas noites se alagam,
nos vales ao longe um selo e um sinal,
sussurram os ventos sentença mortal
e asas de loucas subindo me tragam...
Algo de estranho pousou sobre mim,
que olhos não vêem mas os olhos me sentem
e voa distante partindo enfim...
Mas... irei buscá-la em meu peito doente
antes que caia o derradeiro fim:
terei ainda alma e será suficiente.
17 fevereiro 2008
Eduardo Guimaraens: um Grande Gaúcho Esquecido
Eduardo Guimaraens. Alguém sabe quem foi ele? Que foi um poeta gaúcho nascido em Porto Alegre em 1892? Que escreveu sete livros e que foi considerado na época nosso maior poeta simbolista? E mais, que chegou a ser considerado uns dos maiores do país, comparado a Cruz e Sousa? Quem lembra dele? E dos que lembram, quem já o leu? Triste saber que um poeta de sua magnitude esteja relegado ao esquecimento até mesmo pelos gaúchos. Mas, quais seriam os motivos? A meu ver, faz parte da discriminação sofrida pelo Simbolismo em nossas terras; a verdade é que ainda hoje os brasileiros não lograram compreender os simbolistas.
O Simbolismo é considerado como o responsável pelo nascimento da poesia moderna, ainda mais se levarmos em conta que Baudelaire, um dos maiores autores simbolistas, foi o pioneiro da modernidade, quando uniu à linguagem sublimada do romantismo o grotesco da realidade humana. Devemos ainda considerar que uma das primícias simbolistas, isto é, sugerir e não afirmar, foi e continua sendo de vital relevância para o desenvolvimento da poesia contemporânea. Sobre o movimento simbolista, afirma Afrânio Coutinho: “Sua contribuição à literatura foi imperecível, havendo quem lhe empreste a categoria de movimento mais importante, pelo seu aspecto positivo e pela herança legada, da poesia moderna”. Se existe a poesia moderna, foi porque antes existiu o Simbolismo.
No entanto, no Brasil, o Simbolismo não atingiu o mesmo nível de relevância que adquiriu na Europa, sofrendo uma negligência e subestimação, onde se entende que o nosso movimento simbolista não chegou a ser devidamente compreendido e assimilado pela sociedade, não estabelecendo bases na mesma. Isso fez com que a grande maioria de seus autores não obtivesse o mesmo grau de divulgação e reconhecimento que escritores de outros movimentos e escolas. Tal fato é possível apreender-se da afirmação de Carollo, ao referir-se sobre os obstáculos ao acesso às fontes bibliográficas dos simbolistas: “...estes obstáculos permitem a proposição de novas indagações quando vistos como índices de preconceitos da crítica na interpretação do movimento...” Na mesma obra, adiante, Carollo observa: “Reconhecidas ainda as dificuldades de aceitação e avaliação do Simbolismo por parte da crítica ‘oficial’ contemporânea, orientada por todo um instrumental metodológico de origem cientificista...”
Sem dúvida, Eduardo Guimaraens também foi vítima desse “preconceito” para com o Simbolismo. Felizmente, grandes críticos, como Massaud Moisés, souberam considerá-lo como “autêntico poeta”, e que “alguns de seus poemas serão suficientes para situá-lo sem favor ao lado de Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens”. Da mesma forma, julgou Andrade Muricy que “a sua arte afastou-se do cunho clássico português e da ingenuidade da temática e da expressão... foi dos mais civilizados dentre todos eles e um dos mais meditativos e delicados”.
Eduardo Guimaraens foi um conhecedor profundo da literatura universal, tradutor de Baudelaire e Dante Alighieri, não por acaso suas maiores influências, sendo que em sua época sua obra foi amplamente valorizada, (ainda que pouco lida) como observa Zilberman, referindo-se a seu principal livro “A Divina Quimera”: “que o consagrou nacionalmente, obtendo reconhecimento de todos que historiam o Simbolismo brasileiro”. No entanto, o poeta que “foi uma das vozes mais altas e mais puras da lírica brasileira”, segundo o jornal Correio do Povo (14/12/1928), constitui-se também, conforme Mansueto Bernardi, em “o menos estudado”. Corroborando Mansueto, verifica-se hoje um escasso número de referências ao poeta gaúcho, imerso, talvez, no relativo ostracismo em que se encontram grande parte de nossos autores simbolistas.
Não obstante, a poesia de Eduardo Guimaraens nos apresenta um âmbito temático de inúmeros desdobramentos. Sua obra nos revela uma profunda sensibilidade e imaginação, uma sutileza e musicalidade da linguagem, um refinamento de emoções repleto de luzes e sombras. Seus poemas são intensamente humanos e espirituais ao mesmo tempo, situando-se entre a veia lúgubre de Alphonsus de Guimaraens e a ascensão vertiginosa de Cruz e Sousa. Eduardo é mais sereno que ambos, menos sombrio que o primeiro, mais terno que o segundo. Sem dúvida, merece que o conheçamos. Para finalizar, nada melhor que alguns de seus versos:
“Não despertes, porém, ainda que surja o dia!
Dorme perpetuamente o sono teu sem termo,
ó forma de vitral, Musa e Melancolia,
que és a quimera de um espírito enfermo!
Não despertes, porém, ainda que surja o dia!”
O Simbolismo é considerado como o responsável pelo nascimento da poesia moderna, ainda mais se levarmos em conta que Baudelaire, um dos maiores autores simbolistas, foi o pioneiro da modernidade, quando uniu à linguagem sublimada do romantismo o grotesco da realidade humana. Devemos ainda considerar que uma das primícias simbolistas, isto é, sugerir e não afirmar, foi e continua sendo de vital relevância para o desenvolvimento da poesia contemporânea. Sobre o movimento simbolista, afirma Afrânio Coutinho: “Sua contribuição à literatura foi imperecível, havendo quem lhe empreste a categoria de movimento mais importante, pelo seu aspecto positivo e pela herança legada, da poesia moderna”. Se existe a poesia moderna, foi porque antes existiu o Simbolismo.
No entanto, no Brasil, o Simbolismo não atingiu o mesmo nível de relevância que adquiriu na Europa, sofrendo uma negligência e subestimação, onde se entende que o nosso movimento simbolista não chegou a ser devidamente compreendido e assimilado pela sociedade, não estabelecendo bases na mesma. Isso fez com que a grande maioria de seus autores não obtivesse o mesmo grau de divulgação e reconhecimento que escritores de outros movimentos e escolas. Tal fato é possível apreender-se da afirmação de Carollo, ao referir-se sobre os obstáculos ao acesso às fontes bibliográficas dos simbolistas: “...estes obstáculos permitem a proposição de novas indagações quando vistos como índices de preconceitos da crítica na interpretação do movimento...” Na mesma obra, adiante, Carollo observa: “Reconhecidas ainda as dificuldades de aceitação e avaliação do Simbolismo por parte da crítica ‘oficial’ contemporânea, orientada por todo um instrumental metodológico de origem cientificista...”
Sem dúvida, Eduardo Guimaraens também foi vítima desse “preconceito” para com o Simbolismo. Felizmente, grandes críticos, como Massaud Moisés, souberam considerá-lo como “autêntico poeta”, e que “alguns de seus poemas serão suficientes para situá-lo sem favor ao lado de Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens”. Da mesma forma, julgou Andrade Muricy que “a sua arte afastou-se do cunho clássico português e da ingenuidade da temática e da expressão... foi dos mais civilizados dentre todos eles e um dos mais meditativos e delicados”.
Eduardo Guimaraens foi um conhecedor profundo da literatura universal, tradutor de Baudelaire e Dante Alighieri, não por acaso suas maiores influências, sendo que em sua época sua obra foi amplamente valorizada, (ainda que pouco lida) como observa Zilberman, referindo-se a seu principal livro “A Divina Quimera”: “que o consagrou nacionalmente, obtendo reconhecimento de todos que historiam o Simbolismo brasileiro”. No entanto, o poeta que “foi uma das vozes mais altas e mais puras da lírica brasileira”, segundo o jornal Correio do Povo (14/12/1928), constitui-se também, conforme Mansueto Bernardi, em “o menos estudado”. Corroborando Mansueto, verifica-se hoje um escasso número de referências ao poeta gaúcho, imerso, talvez, no relativo ostracismo em que se encontram grande parte de nossos autores simbolistas.
Não obstante, a poesia de Eduardo Guimaraens nos apresenta um âmbito temático de inúmeros desdobramentos. Sua obra nos revela uma profunda sensibilidade e imaginação, uma sutileza e musicalidade da linguagem, um refinamento de emoções repleto de luzes e sombras. Seus poemas são intensamente humanos e espirituais ao mesmo tempo, situando-se entre a veia lúgubre de Alphonsus de Guimaraens e a ascensão vertiginosa de Cruz e Sousa. Eduardo é mais sereno que ambos, menos sombrio que o primeiro, mais terno que o segundo. Sem dúvida, merece que o conheçamos. Para finalizar, nada melhor que alguns de seus versos:
“Não despertes, porém, ainda que surja o dia!
Dorme perpetuamente o sono teu sem termo,
ó forma de vitral, Musa e Melancolia,
que és a quimera de um espírito enfermo!
Não despertes, porém, ainda que surja o dia!”
06 fevereiro 2008
É Lógico que a Vida Não Possui Lógica
“...não sei ser humano, conviver
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser cotidiano, ser nítido,
Ter um lugar na vida...”
Fernando Pessoa
Não, não possui. Talvez possua algum Equilíbrio, um equilíbrio sombrio, oculto, incompreensível, inacessível e absoluta e canhestramente ilógico. Mas um equilíbrio. E sempre acima de nossa mão. Por que deveria ser compreensível? Já alguns dirão que esse equilíbrio não existe. Eu não digo nada. Não gosto de dizer as coisas. Gosta de cantá-las. E de gritá-las. Mas não de dizê-las, dizer é tão fraco.
A Lua estava anômala ontem. Foi necessário que eu saísse às ruas naquele estado de sono que não era o sono. Era um sono em um estado alterado de consciência. Saí caminhando pelo dia não-diurno, sim, porque eu sentia um sono profundo e vertiginoso, algo como um desejo não-terráqueo nem fictício, mas dominado por todas as cores de beijos. Não, não sou sonâmbulo. Naquela praça, vi 4 homens lendo jornais. Jamais conseguiria defini-los, mas os defino: horríveis, todos eles: olhos esbugalhados, descabelados, tossindo, boca escorrendo sangue como um churrasco mal-assado, não falavam uns com os outros, não se movimentavam. Não sei se andei ou flutuei até eles, aliás, eu não sei nada. E pedi um jornal emprestado e li todas as manchetes. Horríveis, todas elas.
Como era mágico e salutar meu sono... Com as manchetes dos jornais fiz um poema, sem modificar uma só palavra. O poema mais trágico da história da humanidade. Sonhei... Não sei com o que sonhei, mas vivi o mais fundo possível o que sonhei. Que mais se pode fazer? E como saí das florestas felinas sem ter uma só palavra a dizer a ninguém, isso é que é de se admirar! E como senti os vapores nunca-vistos de tudo que tu me disseste aquele dia sem que me olhasses uma só vez nos olhos... E como olhei nos teus olhos com cheiros de músicas sem que tu me dissesses um só verbo divino ou caído.
Amanhã vai chover... Assim, percebi que a humanidade não vale a pena... Vale a pena aquele rio que nunca correu, aquela flor que nunca nasceu, aquela árvore que nunca cresceu, aquela música que nunca tocaram, aquele céu que nunca brilhou, aquele beijo que nunca se deram... Por isso voam aves de verde pelas ânsias perfumadas daquele inverno que nunca apagou sua luz. Nem a minha. Porém, o mais absurdo de tudo, algo realmente ilógico e que nunca me foi permitido entender é que a sociedade no fundo odeia os professores. Deve ser por que eles são os únicos capazes de melhorar seus filhos. Se o homem quisesse ser melhorado, eu não estaria aqui dormindo, sonhando e escrevendo.
Quantas estrelas caíram aquele dia do céu... Uma delas abriu ao meio minha cabeça, literalmente, e uns uivos-desejo flutuavam tensos ao longe, e perto de mim. Era uma noite sombria, mas tu não estavas sobre os altares. Como se iluminou todo o luar, como uma treva santa chocou-se contra os versos que uma águia largou do bico sobre a morte... Três mãos alucinadas ergueram-se de dentro de meu peito, e vi uma chuva de olhos com chifres brancos perfurarem todo meu coração, o sangue não-meu que lacrimejava ao espaço doente formou uma nuvem que aceleradamente ascendeu ao sonho onde eu dormia. Não esqueçam que eu estava dormindo, por favor, não percam o fio da meada. Corri. Tu não estavas lá. Tudo não estava lá.
E no Brasil odeia-se ainda mais os professores, e estou certo que isso é uma das principais características de nossa cultura, talvez a principal, aquela que define definitivamente o que é ser brasileiro, odiar um professor, afinal, sem isso o Brasil não seria Brasil. Mas um canto e um grito titânicos ergueram-se majestosos daquele planeta de luz que não vejo. Como soou apaixonado um violino de Brahms aos meus ouvidos, e todas as coisas se angustiavam de forma tão ciclonicamente sublime que um furacão passou pela minha cidade e arrasou com tudo, inclusive comigo. Por isso durmo e elevo meu coração na ponta de uma espada flamígera e atiro-o ao relâmpago que me beija... O fim é como o começo: “Sim, está tudo certo./Está tudo perfeitamente certo./O pior é que está tudo errado.” É do Álvaro de Campos, que nunca existiu e valeu a pena. E eu me acordei.
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser cotidiano, ser nítido,
Ter um lugar na vida...”
Fernando Pessoa
Não, não possui. Talvez possua algum Equilíbrio, um equilíbrio sombrio, oculto, incompreensível, inacessível e absoluta e canhestramente ilógico. Mas um equilíbrio. E sempre acima de nossa mão. Por que deveria ser compreensível? Já alguns dirão que esse equilíbrio não existe. Eu não digo nada. Não gosto de dizer as coisas. Gosta de cantá-las. E de gritá-las. Mas não de dizê-las, dizer é tão fraco.
A Lua estava anômala ontem. Foi necessário que eu saísse às ruas naquele estado de sono que não era o sono. Era um sono em um estado alterado de consciência. Saí caminhando pelo dia não-diurno, sim, porque eu sentia um sono profundo e vertiginoso, algo como um desejo não-terráqueo nem fictício, mas dominado por todas as cores de beijos. Não, não sou sonâmbulo. Naquela praça, vi 4 homens lendo jornais. Jamais conseguiria defini-los, mas os defino: horríveis, todos eles: olhos esbugalhados, descabelados, tossindo, boca escorrendo sangue como um churrasco mal-assado, não falavam uns com os outros, não se movimentavam. Não sei se andei ou flutuei até eles, aliás, eu não sei nada. E pedi um jornal emprestado e li todas as manchetes. Horríveis, todas elas.
Como era mágico e salutar meu sono... Com as manchetes dos jornais fiz um poema, sem modificar uma só palavra. O poema mais trágico da história da humanidade. Sonhei... Não sei com o que sonhei, mas vivi o mais fundo possível o que sonhei. Que mais se pode fazer? E como saí das florestas felinas sem ter uma só palavra a dizer a ninguém, isso é que é de se admirar! E como senti os vapores nunca-vistos de tudo que tu me disseste aquele dia sem que me olhasses uma só vez nos olhos... E como olhei nos teus olhos com cheiros de músicas sem que tu me dissesses um só verbo divino ou caído.
Amanhã vai chover... Assim, percebi que a humanidade não vale a pena... Vale a pena aquele rio que nunca correu, aquela flor que nunca nasceu, aquela árvore que nunca cresceu, aquela música que nunca tocaram, aquele céu que nunca brilhou, aquele beijo que nunca se deram... Por isso voam aves de verde pelas ânsias perfumadas daquele inverno que nunca apagou sua luz. Nem a minha. Porém, o mais absurdo de tudo, algo realmente ilógico e que nunca me foi permitido entender é que a sociedade no fundo odeia os professores. Deve ser por que eles são os únicos capazes de melhorar seus filhos. Se o homem quisesse ser melhorado, eu não estaria aqui dormindo, sonhando e escrevendo.
Quantas estrelas caíram aquele dia do céu... Uma delas abriu ao meio minha cabeça, literalmente, e uns uivos-desejo flutuavam tensos ao longe, e perto de mim. Era uma noite sombria, mas tu não estavas sobre os altares. Como se iluminou todo o luar, como uma treva santa chocou-se contra os versos que uma águia largou do bico sobre a morte... Três mãos alucinadas ergueram-se de dentro de meu peito, e vi uma chuva de olhos com chifres brancos perfurarem todo meu coração, o sangue não-meu que lacrimejava ao espaço doente formou uma nuvem que aceleradamente ascendeu ao sonho onde eu dormia. Não esqueçam que eu estava dormindo, por favor, não percam o fio da meada. Corri. Tu não estavas lá. Tudo não estava lá.
E no Brasil odeia-se ainda mais os professores, e estou certo que isso é uma das principais características de nossa cultura, talvez a principal, aquela que define definitivamente o que é ser brasileiro, odiar um professor, afinal, sem isso o Brasil não seria Brasil. Mas um canto e um grito titânicos ergueram-se majestosos daquele planeta de luz que não vejo. Como soou apaixonado um violino de Brahms aos meus ouvidos, e todas as coisas se angustiavam de forma tão ciclonicamente sublime que um furacão passou pela minha cidade e arrasou com tudo, inclusive comigo. Por isso durmo e elevo meu coração na ponta de uma espada flamígera e atiro-o ao relâmpago que me beija... O fim é como o começo: “Sim, está tudo certo./Está tudo perfeitamente certo./O pior é que está tudo errado.” É do Álvaro de Campos, que nunca existiu e valeu a pena. E eu me acordei.
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