Esta é a tua história. Tiveste um sono perturbado, acordaste banhado em
suor, os lençóis úmidos. Sonhos e pesadelos durante toda a noite, infinitos de
desejo. Abriste os olhos com receio. Alguma coisa não estava correta. Mas os
teus pesadelos eram demasiado reais. Desespero foi a primeira palavra que
ensombreceu a tua mente, quando puseste o pé esquerdo no chão. Talvez tudo não
estivesse correto. Fracassaste tão logo acordaste. Mas disso não te deste
conta. Para ti e para os outros, vivias a vida dos sonhos de todos. Um homem de
sucesso.
Olhaste pela janela. 7 horas da manhã. Raios de sol iluminavam teus olhos.
De nada adiantaria. Fazias isso todos os dias, todas as manhãs o mesmo ato. Já
estavas anestesiado e mecânico. Passado e futuro digladiavam-se em tudo o que
sentias. Nunca o presente. E o presente é extremamente cruel. Sempre o presente
é cruel. Tinhas saudade do passado e planos concretos para o futuro. E o futuro
chegava, e os planos eram realizados, grandiosos objetivos para ti. Enfim,
conseguiste. Mas mesmo conseguindo, o presente era sempre uma merda. Se
falasses em público essa palavra, “merda”, o que diriam aqueles que te admiram?
Fracassaste em teu presente, por mais que tenhas tido sucesso. Tens tudo. Mas
no fundo não queres nada do que tens. O que realmente, ou na ilusão, queres é
sempre o que não alcanças. Mas não sabes disso. Não sabes disso.
Abriste a geladeira, e ela estava abarrotada de coisas. Sem tempo para
comer. Um suco escorregou sem graça pelo teu esôfago. A garganta continuou
seca. A laranja não tinha culpa de nada, pensaste.
A roupa que vestiste era impecável. Hoje precisarias de teu melhor terno.
O trabalho dignifica. És um homem digno. As ruas pelas quais passas agora são
de uma magnificência encantadora. Muito bem ornadas para o Natal que se
aproxima. Todos os dias o mesmo trajeto. Mal as viste. Exausto sem ainda estar,
cansado sem cansaço, o cosmos falava pelo canto dos pássaros. Não ouvias. Sem
tempo. Sem vontade. Ou nem sabes do que tens vontade. Já estás atrasado. O salário é alto, bastante
alto, como não poderia deixar de ser para alguém inteligente e trabalhador como
és. Sempre valia a pena o esforço, o sacrifício e a dedicação extremados.
Imensidões de esperança despencavam do céu de irrepreensível azul. Já estavas
no escritório. Janelas fechadas.
Cumprimentaram-te de acordo com toda a necessidade do respeito que te é
devido. Há muito tempo teus olhos não se enchiam de lágrimas. E assim permaneceram.
Mandou que um subordinado abrisse as janelas. Fitaste a imponente figueira filtrada
pelos vidros espelhados do escritório. O verde irradiava-se livre pela ascensão
triunfante do dia. Fracassaste em teu emprego de sucesso. Porque não querias
estar no emprego, mas nos galhos da figueira. Mas não sabias disso. Trabalhaste
para ser livre. Mas te tornaste ainda mais escravo. Os homens livres dos
sistemas democráticos e capitalistas são os cruéis escravos.
Afogado nos papéis, uma sede insaciável debatia-se na tua alma. Córregos,
rios, mares, oceanos cintilavam pelo longínquo sob o crepuscular das estrelas.
O olhar da moça que passou dirigiu-se de forma sinuosa aos teus. E tua
assinatura era agora imprescindível. Em centenas de documentos que em verdade
não diziam nada. Mas eram tudo. E quem poderia se pronunciar contra? Lembras-te
que há muito tempo não via olhos como aqueles? Reminiscências espirituais de
estrelas que há muito séculos partiram. Ou mentira. Tanta faz agora. Tristeza, só isso
era certo. Um pequeno besouro chocou-se contra a parede envidraçada. E uma gota
de tinta manchou o terno impecável.
Ninguém é impecável. Como é da natureza humana, e animal, a fome sempre
chega. Ao meio-dia, o sol atinge o seu auge. Mas não há tempo para
considerações sobre auges, sobre, por exemplo, a queda do auge da humanidade.
Em teu carro de modelo importado colocaste uma música da moda. Não te agradava
realmente, mas não havia tempo para encontrar aquela em que pensavas há meses. E,
já que era da moda, ninguém acharia ruim tu a estares escutando. Serias
incluído no gosto geral, e isso é bom, é agradável e simpático. Em um buraco
furaste o pneu. Ficaste tenso. Já não estavas bem. Tens andado nervoso
ultimamente, talvez seja devido aos pesadelos. Mas furaste o pneu. O azar e o
imprevisto voam sempre tão alto que não dá para avistá-los. Descem suas asas
negras sobre os minutos de calmaria. Mas não há tempo para divagações.
Trocaste.
O restaurante era belo. E caro. E impregnado dos mais vários e lindos
alimentos. Ao longe os pomares em jardins impactantes e comoventes aspergiam o
pólen de suas flores pelos ares límpidos e vivos de borboletas. Mas há certa
poesia antiga nessa frase. Já ninguém sente assim. Ao longe... O restaurante
era o mesmo de todos os dias. Não há nada de novo sobre a terra. Pediste o de
sempre. Antes de entrar, porém, um pequeno gato roçou-te a calça. O felino
fitou teus olhos. O que fazia um gato naquele restaurante de classe? Animal
inconveniente, pensaste. Sim, até são bonitinhos. Mas tu não tinhas tempo para
sentimentalismos. E sem tempo para considerações. Comeste. E isso é tudo. É
prático. Haveria algo de maior em cada molécula ingerida? Levantaste da mesa,
teu terno estava maculado pela tinta da caneta. Aborrecido. O terno manchado maculou
tua alma. Pagaste. Dinheiro não é problema.
Problema eram os olhos da moça que entrara no escritório. Ela não
trabalhava contigo. Onde estaria agora? Amanhã, tu terás reunião. “Lembras-te
disso espírito da terra.” E depois de amanhã também. Quem sabe a moça
retorne... Pelo acaso. Voltaste. Passaste pela mesma rua de sempre. A fronde
das árvores evaporando-se em sonhos? Não, bobagens. Agora não há como lembrar.
Principalmente de sonhos. Principiava a tarde. Era tarde. É sempre tarde.
Irritou-te com as infinitas questões do trabalho. Sempre haverá problemas, e se
os resolveres, surgirão outros. Esse é o infinito para ti. Porém, vale a pena
preocupar-se com eles. Foi isso que te tornaste o grande homem que és. Grande
homem para os medíocres. Vale a pena irritar-te e estressar-te. Vale. O
estresse está na moda. Vale? Ainda há vales nas distâncias inatingíveis e
somente imaginadas, ou contempladas através das ondas da TV ou da internet,
vales floridos e verdejantes, onde em pequenas casas simples e rústicas alguém
com um violino toca uma melodia de Bach? Talvez lá houvesse cintilantes olhos
como os da moça relampejante do escritório. Aquele dinheiro que não te pagam
continua te tirando o sono. Teria o fato alguma relação com teu pesadelo
recorrente? Sim, agora pensavas no pesadelo... E ele voltará...
(Amanhã, o final do conto.)