14 dezembro 2013

Esta é a Tua História Real (ou O Pesadelo)

Esta é a tua história. Tiveste um sono perturbado, acordaste banhado em suor, os lençóis úmidos. Sonhos e pesadelos durante toda a noite, infinitos de desejo. Abriste os olhos com receio. Alguma coisa não estava correta. Mas os teus pesadelos eram demasiado reais. Desespero foi a primeira palavra que ensombreceu a tua mente, quando puseste o pé esquerdo no chão. Talvez tudo não estivesse correto. Fracassaste tão logo acordaste. Mas disso não te deste conta. Para ti e para os outros, vivias a vida dos sonhos de todos. Um homem de sucesso.

Olhaste pela janela. 7 horas da manhã. Raios de sol iluminavam teus olhos. De nada adiantaria. Fazias isso todos os dias, todas as manhãs o mesmo ato. Já estavas anestesiado e mecânico. Passado e futuro digladiavam-se em tudo o que sentias. Nunca o presente. E o presente é extremamente cruel. Sempre o presente é cruel. Tinhas saudade do passado e planos concretos para o futuro. E o futuro chegava, e os planos eram realizados, grandiosos objetivos para ti. Enfim, conseguiste. Mas mesmo conseguindo, o presente era sempre uma merda. Se falasses em público essa palavra, “merda”, o que diriam aqueles que te admiram? Fracassaste em teu presente, por mais que tenhas tido sucesso. Tens tudo. Mas no fundo não queres nada do que tens. O que realmente, ou na ilusão, queres é sempre o que não alcanças. Mas não sabes disso. Não sabes disso.

Abriste a geladeira, e ela estava abarrotada de coisas. Sem tempo para comer. Um suco escorregou sem graça pelo teu esôfago. A garganta continuou seca. A laranja não tinha culpa de nada, pensaste.

A roupa que vestiste era impecável. Hoje precisarias de teu melhor terno. O trabalho dignifica. És um homem digno. As ruas pelas quais passas agora são de uma magnificência encantadora. Muito bem ornadas para o Natal que se aproxima. Todos os dias o mesmo trajeto. Mal as viste. Exausto sem ainda estar, cansado sem cansaço, o cosmos falava pelo canto dos pássaros. Não ouvias. Sem tempo. Sem vontade. Ou nem sabes do que tens vontade.  Já estás atrasado. O salário é alto, bastante alto, como não poderia deixar de ser para alguém inteligente e trabalhador como és. Sempre valia a pena o esforço, o sacrifício e a dedicação extremados. Imensidões de esperança despencavam do céu de irrepreensível azul. Já estavas no escritório. Janelas fechadas.

Cumprimentaram-te de acordo com toda a necessidade do respeito que te é devido. Há muito tempo teus olhos não se enchiam de lágrimas. E assim permaneceram. Mandou que um subordinado abrisse as janelas. Fitaste a imponente figueira filtrada pelos vidros espelhados do escritório. O verde irradiava-se livre pela ascensão triunfante do dia. Fracassaste em teu emprego de sucesso. Porque não querias estar no emprego, mas nos galhos da figueira. Mas não sabias disso. Trabalhaste para ser livre. Mas te tornaste ainda mais escravo. Os homens livres dos sistemas democráticos e capitalistas são os cruéis escravos.

Afogado nos papéis, uma sede insaciável debatia-se na tua alma. Córregos, rios, mares, oceanos cintilavam pelo longínquo sob o crepuscular das estrelas. O olhar da moça que passou dirigiu-se de forma sinuosa aos teus. E tua assinatura era agora imprescindível. Em centenas de documentos que em verdade não diziam nada. Mas eram tudo. E quem poderia se pronunciar contra? Lembras-te que há muito tempo não via olhos como aqueles? Reminiscências espirituais de estrelas que há muito séculos partiram.  Ou mentira. Tanta faz agora. Tristeza, só isso era certo. Um pequeno besouro chocou-se contra a parede envidraçada. E uma gota de tinta manchou o terno impecável.

Ninguém é impecável. Como é da natureza humana, e animal, a fome sempre chega. Ao meio-dia, o sol atinge o seu auge. Mas não há tempo para considerações sobre auges, sobre, por exemplo, a queda do auge da humanidade. Em teu carro de modelo importado colocaste uma música da moda. Não te agradava realmente, mas não havia tempo para encontrar aquela em que pensavas há meses. E, já que era da moda, ninguém acharia ruim tu a estares escutando. Serias incluído no gosto geral, e isso é bom, é agradável e simpático. Em um buraco furaste o pneu. Ficaste tenso. Já não estavas bem. Tens andado nervoso ultimamente, talvez seja devido aos pesadelos. Mas furaste o pneu. O azar e o imprevisto voam sempre tão alto que não dá para avistá-los. Descem suas asas negras sobre os minutos de calmaria. Mas não há tempo para divagações. Trocaste.

O restaurante era belo. E caro. E impregnado dos mais vários e lindos alimentos. Ao longe os pomares em jardins impactantes e comoventes aspergiam o pólen de suas flores pelos ares límpidos e vivos de borboletas. Mas há certa poesia antiga nessa frase. Já ninguém sente assim. Ao longe... O restaurante era o mesmo de todos os dias. Não há nada de novo sobre a terra. Pediste o de sempre. Antes de entrar, porém, um pequeno gato roçou-te a calça. O felino fitou teus olhos. O que fazia um gato naquele restaurante de classe? Animal inconveniente, pensaste. Sim, até são bonitinhos. Mas tu não tinhas tempo para sentimentalismos. E sem tempo para considerações. Comeste. E isso é tudo. É prático. Haveria algo de maior em cada molécula ingerida? Levantaste da mesa, teu terno estava maculado pela tinta da caneta. Aborrecido. O terno manchado maculou tua alma. Pagaste. Dinheiro não é problema.


Problema eram os olhos da moça que entrara no escritório. Ela não trabalhava contigo. Onde estaria agora? Amanhã, tu terás reunião. “Lembras-te disso espírito da terra.” E depois de amanhã também. Quem sabe a moça retorne... Pelo acaso. Voltaste. Passaste pela mesma rua de sempre. A fronde das árvores evaporando-se em sonhos? Não, bobagens. Agora não há como lembrar. Principalmente de sonhos. Principiava a tarde. Era tarde. É sempre tarde. Irritou-te com as infinitas questões do trabalho. Sempre haverá problemas, e se os resolveres, surgirão outros. Esse é o infinito para ti. Porém, vale a pena preocupar-se com eles. Foi isso que te tornaste o grande homem que és. Grande homem para os medíocres. Vale a pena irritar-te e estressar-te. Vale. O estresse está na moda. Vale? Ainda há vales nas distâncias inatingíveis e somente imaginadas, ou contempladas através das ondas da TV ou da internet, vales floridos e verdejantes, onde em pequenas casas simples e rústicas alguém com um violino toca uma melodia de Bach? Talvez lá houvesse cintilantes olhos como os da moça relampejante do escritório. Aquele dinheiro que não te pagam continua te tirando o sono. Teria o fato alguma relação com teu pesadelo recorrente? Sim, agora pensavas no pesadelo... E ele voltará...
(Amanhã, o final do conto.)

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