- Então pretendes te matar?
- Não, não pretendo nada, não tenho pretensão de coisa alguma, cansa-me ter qualquer tipo de pretensão. E também não faz sentido pretender alguma coisa. Eu simplesmente encontrei esta arma e pensei que poderia a usar para me matar. Mas não, não vou utilizá-la. Não comigo... Até porque não haveria nenhum significado em meu ato, eu simplesmente me mataria. E que tem isso para o mundo? Viver ou morrer, não faz diferença alguma.
- Não entendo por que tu estás dizendo isso, o que aconteceu contigo, Vagner? Tu não eras assim... Estás com algum problema?
- Não, problema nenhum, já passei da fase de ter problemas. Ter problemas é tentar solucioná-los. Quando se vê que nenhum deles tem uma solução verdadeira, eles deixam ser problemas, passam a não ser nada, mais um peso que a gente carrega, eternamente, repleto de indiferença.
- Esquecer os problemas seria a solução?
- Quem falou em esquecê-los? Eu não os esqueço, apenas não dou atenção mais a eles. Tanto faz ter um problema ou outro, ou ter mais um. Todos continuaremos sempre na mesma condição, se formos parar para analisar a questão de maneira profunda. Não faz sentido se preocupar com os problemas. Aliás, nada faz sentido na vida. Sou um homem do século XXI. O que é que faz realmente sentido para alguém hoje em dia?
- Não, assim tu também já estás exagerando. Acho que tu não estás bem. O que te levou a pensar que nada tem sentido nenhum?
- O mundo. A vida. A humanidade. Vocês. Tu mesmo. Olhem só para este mundo, olhem para vocês todos. Que coisa mais desprezível. Não acredito em nada do que vocês possam me dizer sobre qualquer coisa de vida, de sentimento, de amor. Sim, acho que não estou bem, acho que enlouqueci, depois de tentar tudo e não conseguir nada. Restou-me a descrença e a frieza totais e absolutas. Nada mais me comove. Sim, isso mesmo, como não pensei nisso antes?... Nada mais me comove. O que há de mais pós-moderno que isso? Sim, eu posso ser o espelho, não, mais que o espelho, posso ser o homem-modelo... não, melhor ainda! Posso ser o espécime máximo, o auge da evolução da espécie humana, o seu mais bem acabado e adaptado membro para os dias de hoje. Sim, não irei me matar. Vou viver, para ser o homem que não sente absolutamente nada.
- Haha! Desculpa, cara, mas isso chega a ser engraçado. Tu estás ficando louco mesmo, isso que tu estás dizendo... isso sim, não tem sentido nenhum. Um homem que não sente nada? Impossível, todos nós sentimos alguma coisa, psicologicamente falando. Temos as nossas sensações, as nossas comoções. Claro que isso difere de pessoa para pessoa, alguns sentem mais, outros menos, mas todos sentem. E tu sempre foste muito sensível.
- Isso mesmo, Renato, eu fui muito sensível. Já não sou mais. Sentir, sensiblizar-me com o que quer que seja, seja com o sofrimento de alguém, de qualquer homem ou de qualquer ser vivo, já não tem nenhum sentido para mim. Quantos aos homens, todos são maus, até mesmo as crianças, já estão cheias, repletas, transbordante de maldade e egoísmo, merecem sofrer, portanto. Por que eu faria alguma coisa para evitar ou aliviar o sofrimento delas? Que sofram, que paguem. Elas também não se importariam comigo. E presta atenção no que eu disse: eu VOU SER o espécime máximo, eu IREI representar o auge da evolução humana, SEREI o símbolo maior de nosso tempo. Isso significa que ainda não sou. Mas que posso ser, tenho tudo para ser. Pois sei que já sou quase que um completo insensível. Irei, aos poucos, deixar de sentir a mínima emoção com qualquer música, com qualquer livro, com qualquer arte, filme, com qualquer acontecimento trágico ou belo, com qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo.
- Meu Deus, tu estás doente mesmo Vagner... Não posso acreditar que estejas falando sério...
- Sim, podes até rir, mas eu sei... Eu sou, ou serei, aquilo que a sociedade, que esta civilização sempre buscou, consciente ou inconscientemente. Eu fui, eu estou sendo construído, estou sendo moldado. O homem sem coração, sem alma, sem emoções, robotizado, o homem- máquina, o homem mecânico. O homem do século XXI.
Amanhã, o final do conto.
(Na imagem, o quadro "Desespero" de Edvard Munch)