Mal prestava atenção ao barulho incessante das metralhadoras. Lembro-me que era noite. Ou talvez não fosse, tudo continua vago e difuso. Mas a impressão que sempre trago comigo é de uma noite profunda, densa e anômala. Algo de extremamente inquietante pairava no ar. E tudo surgira de forma súbita. Nem sei quanto tempo estive ali presenciando a matança. Corpos de seres humanos amontoavam-se aos milhares. Eu já me acostumara ao barulho das metralhadoras, com o cheiro nauseabundo do sangue espalhado por todo lado, com as cenas de enforcamento, com o estertorar dos envenenados e com os corpos, corpos aos montes sob um céu negro, cinza e avermelhado.
Eu nunca sentira tanto medo. Não o medo comum e corrente do dia a dia, mas o medo ancestral, do âmago humano, o medo de se saber impotente, de se saber que tudo o que mais temíamos sempre foi verdade, e que a hora havia chegado. O medo de se estar diante de algo que é infinitamente maior do que nós, em todos os sentidos, e que não se pode enfrentar, que está acima de tudo o que somos, de todas as nossas possibilidades, de qualquer meio que tenhamos de reagir ou de buscar uma indefinida forma de salvação.
Eu simplesmente estava ali, como muitos outros, ao dispor do que eles iriam me dizer, se é que me diriam algo, do que iriam querer de mim, do que fariam comigo. E o mais grave é que eu sabia que eles estavam com toda a razão e que o errado era eu. Nunca me esquecerei daqueles olhos sentenciosos perscrutando tudo o que havia em mim. Saber-se culpado, encontrar-se diante da culpa e nada poder fazer é uma sensação arrasadora. E o pior de tudo era ter que suportar a sensação que aqueles olhares me transmitiam, aquele “está vendo, nós avisamos...” E não ter a condição de mencionar uma só palavra em protesto. Permanecer mortalmente calado numa angústia dilacerante era tudo o que eu podia fazer. Desnecessário mencionar a suprema tensão em que me encontrava.
Mas o medo foi algo que surgiu um momento depois. Antes disso, anoitecia (creio que anoitecia). O clima de ocaso iminente... Palavras que jamais esquecerei. Surgiram como que sopradas no meu espírito. Houve então uma reviravolta no tempo, até então sereno, mas de uma calma estranha. A calma que precede as tempestades. Eu jamais imaginei que aquilo fosse acontecer. Não naquele momento. Embora acreditasse, parecia sempre soar como impossível. Aqueles momentos esperados ou temidos que deixam a impressão que nunca chegarão. Mas aquele chegou. Quando eu menos esperava. Dois brilhos gigantescos ao fundo do horizonte. Amarelos, em tons laranja, avermelhados. Antes ainda um vento intenso, profundo, luminoso, mas sem ser violento. Sobrenatural, apenas. Porém, aquele vento trazia consigo uma reviravolta, uma transformação em todas as coisas como eu nunca antes presenciara. Metamorfoseou-se o céu em um infindo campo incendiado. De uma hora para outra.
E um dos dois orbes gigantescos que brilhavam ao fundo do horizonte assomou-se triunfante e ameaçador diante de mim, monumental, supremo, devastador. Reconheci-o imediatamente. Meu coração, naquele instante, sentiu uma felicidade tão intensa quanto passageira. Senti que triunfava ao lado daquele orbe impávido e invencível. A cor marcial, fulva, avassaladoramente rubra dominava todo aquele ambiente transformado. Olhei para minhas mãos, elas sangravam.
Foi então que dirigi minha atenção a uma escuridão densa e palpável que ao meu derredor principiou a se formar. Avistei uma fila absurda de pessoas, centenas, milhares delas, ou talvez ainda mais, que se perdiam nos horizontes cinzento-avermelhados. Não me era, obviamente, possível divisar o final da fila. De um outro lado, eu contemplava estarrecido as montanhas de seres humanos mortos, que aparentavam tocar a treva espessa do céu. Uma doentia luminosidade funérea, cinzenta, parecia cair sobre os cadáveres em intervalos semelhantes às luzes de um relâmpago. Mas eu não via relâmpago algum, muito embora a atmosfera estivesse febrilmente carregada. Nem escutava som de trovões. Talvez estivessem abafados pelos gritos dos miseráveis. As rajadas de metralhadoras, os envenenamentos, os carrascos executando o seu dever nas forcas nunca cessavam. A fila interminável era para a morte. Cada um esperava seu fim com uma resignação suprema, em uma desolação absoluta. Nada poderia ser feito. Agora eles compreendiam. Nada poderia ser feito. Nem fugir, nem protestar, nem lutar, nem argumentar, nem mesmo cometer o suicídio. Só se podia aguardar na fila a sua vez de morrer.
Amanhã, o final do conto. (Na imagem, o quadro "Medo", de Edvard Munch.)