A reunião fora marcada para as 18h. Ficou rigorosamente estabelecido que no interior da sala de reuniões somente nós quatro entraríamos. Éramos os chefes das Famílias e discutiríamos os negócios de forma direta, sem nenhum tipo de intermediário. Para a segurança e maior tranquilidade de todos, combinamos que os seguranças, guarda-costas e capangas de toda espécie, inclusive caporegimes e consiglioris, deveriam permanecer pelo lado de fora, sem a mínima interferência no interior da sala. Pelo acordo, deveríamos, naturalmente, entrar na sala absolutamente desarmados.
Há muito eu esperava por esse dia. Minha preparação fora completa. Cheguei cinco minutos antes ao local combinado, acompanhado por três homens de absoluta confiança. Fui o segundo a chegar. Passados dois minutos, chegaram os demais chefes, praticamente ao mesmo tempo. Optei por ser o primeiro a entrar na sala de reuniões, não sem antes passar por uma exaustiva revista por parte dos guarda-costas das Famílias rivais, os quais conferiram também, como não poderia deixar de ser, uma pequena pasta que trazia comigo. Havia nela, conforme foi constatado, alguns documentos não confidenciais, canetas, cigarros, um pequeno copo lacrado com água mineral e uma caixinha com quatro trufas de chocolate. Questionaram-me o porquê das trufas. Respondi que eram para mim. Levar trufas envenenadas numa reunião seria um golpe tão primário que jamais algum chefe cairia. Fui liberado e penetrei no ambiente antecipadamente tenso da sala de reuniões.
Meu primeiro ato dentro da sala foi abrir a pasta, retirar o copo de água mineral e deslacrá-lo com o máximo cuidado. Umedeci minha mão direita com a água. Em seguida, entraram na sala dois dos chefes das Famílias, Bracci e Maschetto. Logo após, foi a vez de Bruniere. Cumprimentei Bracci e Maschetto com um forte e demorado aperto de mão. Da mesma forma o fiz com Bruniere, que, surpreso, comentou:
- Sua mão está úmida, Veracini, estaria um pouco nervoso?
- De forma alguma, Bruniere, você conhece bem a minha frieza. Eu estava bebendo um pouco de água mineral e acabei derramando o líquido em minhas mãos. Como podem ver, o copo está ali sobre a mesa. Os senhores queiram desculpar-me por cumprimentá-los com as mãos úmidas.
- Sem problemas, exclamou Bracci. Vamos sentar-nos e darmos logo início a nossa reunião. Gostaria que não nos prolongássemos em demasia.
- Sou da mesma opinião, completei.
Principiamos a discutir sobre nossos negócios. Nossos diálogos como de costume, eram calmos e pausados, cordiais, diplomáticos, delicados e sinuosos. Intentávamos dissimular ao máximo a tensão e a desconfiança que fervilhava no interior de cada um de nós. Tratando de negócios, nossos diálogos eram direcionados com o intuito aparente de ajeitar as coisas de uma forma que todos nós lucrássemos e deixássemos a reunião total ou parcialmente satisfeitos. Porém, a intenção verdadeira, aquilo que fervia em nossos âmagos era algo integralmente diverso. Desejávamos a morte um do outro.
Eu desejava com ânsia infinita a morte de cada um daqueles mafiosos, daqueles homens desonestos, cínicos, calculistas, dissimulados, mentirosos e assassinos. Exatamente iguais a mim. Aliás, nós não diferimos muito do restante da humanidade. Talvez a nossa diferença esteja no fato de que quando desejamos matar alguém, se for conveniente para os negócios, afinal sangue custa caro, nós o fizemos. Os outros homens não possuem coragem suficiente. Não possuem, provavelmente, porque não têm meios para isso. Se cometerem um assassinato, é quase certo que serão presos. Já nós, devido às nossas relações e influências, estamos seguros de que não iremos para a cadeia. Ninguém conseguiria provas contra nós. Somos sagazes demais para que permitamos o surgimento de provas. Então, afirmo solenemente que eu estava decidido a assassinar aqueles três chefes das Famílias rivais, com quem eu dialogava de forma tão tranquila e educada, mantendo-me frio, não obstante a tensão natural daquele momento.
Era óbvio que eu não iria matar aqueles senhores apenas porque isso era conveniente, lucrativo para os negócios. Há sempre algo de pessoal em qualquer assassinato. Eu os odiava profundamente. Mas não com aquele ódio de ferver o sangue, desesperado, explosivo. Tal categoria de ódio leva tudo a perder, sempre. Somente os tolos deixam seu ódio transparecer. Meu ódio era um ódio sereno, frio e perfeitamente controlado. Um ódio paciente, como a agressividade da cobra que se enrodilha e aguarda o momento certo de dar o bote.
Mas o certo era que os odiava. Eles já haviam assassinado pessoas intimamente ligadas a mim, amigos de confiança, parentes pelos quais eu nutria um sincero afeto, mulheres que eu amara. De modo que eu desejava a vingança. E poucas coisas na vida nos transmitem uma sensação tão deleitosa e reconfortante quanto o ato de vingar-se. Aquece o coração. Um homem com o sangue latino sabe muito bem disso. Sangue se lava com sangue. Quem tem sede de sangue não pode se satisfazer simplesmente com um mero copo d’água. De modo que eu queria sangue. Os outros não matam porque não podem. Porque não possuem a segurança interior e exterior e/ou a inteligência para tanto. Como eu possuo as duas as coisas, eu o faço.
Estou certo de que os outros chefes das Famílias também pretendiam acabar comigo. Porém, também estou certo de que não possuíam um plano infalível como o meu. E todas as minhas ações foram perfeitamente calculadas para que meu plano fosse concluído com êxito. De forma que logo no início de nossas negociações retirei de minha pasta a caixinha com as quatro trufas e as ofereci aos outros chefes, argumentando que isso simbolizaria uma confraternização de paz entre nós. Naturalmente, todos ficaram desconfiados, de modo que Bracci questionou-me com uma sombria ironia:
- É claro que as trufas não estão envenenadas, não é mesmo, Veracini?
Sorri e retruquei:
- E eu seria assim tão óbvio? Mas se desejarem, para tranquilizá-los, comerei por primeiro uma das trufas.
Maschetto, fumando seu charuto, concordou e acrescentou:
- É claro, mas nós escolheremos uma delas para você.
- De acordo! exclamei.
Maschetto mesmo indicou a trufa que eu deveria retirar e comer. E eu o fiz. Em seguida, tranquilizados, os demais chefes retiraram as suas e logo as saborearam. Em um momento tenso como aquele, em que o ar parecia denso e carregado de vibrações psíquicas um tanto negativas, saborear uma fina e deliciosa trufa de chocolate era algo que transmitia um agradável prazer tranquilizador.
E a conversa sobre nossos negócios foi se desenrolando de maneira cordial, cínica e hipócrita, como sempre acontece, sem deixar de ser séria e regada de tensas desconfianças mútuas. Vários assuntos foram teoricamente resolvidos durante a reunião, porém a mim isso já não despertava o menor interesse, eu apenas fingia concordar com tudo. Afinal, aqueles homens eram homens mortos.
Cerca de 2h depois, a reunião finalizou-se, e todos saímos satisfeitos com as resoluções tomadas e com os acordos pactuados. Os outros chefes das Famílias pareciam estar muito contentes com a minha boa vontade em aceitar todos os termos do acordo, tanto que até desconfiaram da relativa facilidade de minha aceitação. De forma que em alguns momentos tive que agir de maneira dissimuladamente mais dura, para que fossem amenizadas as desconfianças.
(Amanhã, a parte final)
4 comentários:
Caramba! Até aqui a coisa está deveras intrigante. As trufas de chocolate... ôh! as trufas, as trufas! Eu aposto!
Abraço, Reiffer.
Amanhã tô aqui pra conferir o restante.
godfather
Ah, deliciosas trufas, será???
humm... mas tem a... não, não deve ser. Confesso que estou curiosa, volto para conferir...
"Meu ódio era um ódio sereno, frio e perfeitamente controlado"- adorei isso! Nada mais letal que um ódio tão bem manejado...
Aguardo ansiosoa o final !!! õ/
Postar um comentário