13 novembro 2010

O Meu 33º Assassinato (Parte 4)

Como já disse, executava meus assassinatos com extremo sangue frio e sentia um imenso prazer em matar. Mas não matava sem objetivos. Muito pelo contrário, minhas vítimas eram escolhidas com absoluta premeditação, e minhas escolhas tinham como objetivo realizar uma espécie de justiça particular. Primeiramente, eu escolhia aquela pessoa que eu mais odiasse no momento, e especificava para mim mesmo, de forma bastante analítica, os motivos do meu ódio. E tais motivos eram, para mim, perfeitamente justos. Não me preocupava se os demais iriam me condenar pelos meus atos impiedosos de dissimulação e de violência. Então, procurava assassiná-la da melhor forma possível, tirando o máximo proveito.

Mas o que seria esse “tirar o máximo proveito”? Primeiramente, consistia em matar sem deixar a mínima pista, no que sempre obtive êxito completo. Em um segundo momento, a minha vítima deveria sempre saber que eu seria seu assassino, e saber também dos motivos que me levaram a matá-la. Deveria saber que seria uma forma de vingança, de diabólica justiça. E, finalmente, eu deveria obter algum benefício espiritual daquelas pessoas que tirava a vida.

Agora chego a um ponto ainda mais absurdo. O fato é que principiei a estudar profundamente a magia negra. E com meus estudos, descobri que havia uma forma de fazer com que a alma do ser humano que eu matasse se transformasse em algo como uma escrava minha, permanecendo ao meu lado e comunicando-se comigo telepaticamente, alertando-me de perigos, de possíveis armadilhas da polícia e informando-me das prováveis formas de cometer meu próximo homicídio. Essa alma somente deixaria de ser minha escrava, seria liberta, após eu matar outra pessoa, utilizando-me da prática de magia.

Talvez, aqui me acusem de uma completa loucura. Não sei, é possível, não direi que não. No entanto, o que é a loucura? Não seria a inteligência suprema, como diria Poe? Ou, se não é o meu caso, talvez seja simplesmente uma forma extrema de perversidade específica, que tanto se fortaleceu que acabou por tomar o controle da psique de determinado indivíduo. Dessa forma, naquela semente de mal que há em cada um de nós, há também o gérmen da loucura. Qualquer um pode enlouquecer, basta que esse gérmen seja alimentado pelas adequadas circunstâncias exteriores.

Eu, sinceramente, não sei se enlouqueci. Porém, se isso ocorreu, foi-me de uma íntegra utilidade. Sim, utilizei-me da magia negra. Seria magia mesmo, ou eu simplesmente tinha alucinações com as pessoas que matei, imaginando que elas estavam ao meu redor alertando-me de perigos? É possível que tais informações que os supostos espíritos me transmitiam fossem, na verdade, criadas pela minha própria inteligência, e eu, alucinado, enfermo, atribuísse às almas dos mortos. Mas também é possível que fossem elas mesmas, a sensação de realidade era indiscutível. Não sei, e ninguém pode garantir nem uma coisa nem outra. Cada um apenas elaborará a sua limitada teoria.  O que sei, é que, realizando a prática de magia negra, tudo funcionou perfeitamente. Fosse sugestões de minha loucura, fosse realidade, o fato é que, quatro dias após a morte de minha primeira vítima, eu ouvi, ou julguei ouvir, sua voz em tom de submissão em meus ouvidos.

Não irei, obviamente, realizar uma lista de todas as pessoas que assassinei ou esclarecer os motivos e circunstâncias de suas mortes. Limitar-me-ei a falar algo sobre a primeira e a última delas. Tinha 27 anos quando cometi meu primeiro assassinato. Estou hoje com 41 anos. Nesses 14 anos, matei 32 pessoas. Como disse, escolhia minhas vítimas pelo grau de ódio que por elas alimentava. Sempre assassinava quem eu mais odiasse em determinado momento. Realizada a escolha, elaborava um plano praticamente perfeito para levar a cabo minhas intenções. O primeiro passo era, invariavelmente, tornar-me, através de minha insuspeita e extrema dissimulação, amigo de minha futura vítima. E um amigo de absoluta confiança. Depois disso, o resto consistia em estudar o terreno para o assassinato e aguardar o mais adequado momento...

 (Amanhã, a parte 5)

12 novembro 2010

O Meu 33º Assassinato (Parte 3)

A inteligência, a sagacidade, a perspicácia, em si, não são virtudes. São armas. E como armas, elas ajudaram-me a atingir meus objetivos. Antes disso, minha inteligência me demonstrou que por mais bem que façamos em meio a esta sociedade, sempre será tudo completamente inútil para atingirmos o que chamamos de felicidade. Ninguém dará valor para o que exista de realmente bom em nós. 

Demonstrou-me também que tudo aquilo de mais belo que sonhei em minha existência, meus anseios mais sublimes, meus ideais, minhas esperanças, enfim, estão condenadas ao fracasso. Porque não posso me imaginar feliz em um mundo onde exista só eu. E como as outras pessoas não estão interessadas nem em meus sonhos, nem em meus anseios, ideais ou esperanças, mas apenas nos seus, que invariavelmente diferem substancialmente dos meus, não posso esperar que elas venham ajudar a concretizar o que desejo. Por que querer que o mundo atenda ao que a ele pedimos? O mundo, a humanidade, não se importam nem um pouco conosco. Não há sentido nisso. De modo que, em meio a um mundo e a uma vida sem sentido, acabei também por perder o sentido da minha existência. E procurei outro sentido em viver: o de matar.

E para matar da melhor forma possível, fiz uso da minha grande inteligência, dessa arma que pode ser usada tanto para o bem quanto para o mal. Einstein usou sua inteligência superior para o bem. Hitler, para o mal. Pelo menos, é o que conta a história. No entanto, mesmo sem Einstein desejar, ele contribuiu para a bomba atômica. E Hitler, antes de cometer suas atrocidades, reergueu a Alemanha e encheu de força o seu povo. De modo que há uma fronteira muito tênue entre o bem e o mal. Eu, irão dizer as pessoas, escolhi o caminho do mal. No entanto, para mim, o meu mal era uma forma de justiça.

Seja como for, a verdade é que me tornei um assassino frio e cruel. Mas que matava me utilizando de cuidados e critérios absolutamente refletidos com larga antecedência. A minha capacidade de premeditação para que meus crimes jamais fossem descobertos era realmente espantosa, devo confessar. Dizem que a astúcia é a maior virtude do diabo... Talvez, seja.

Os assombrosos desgostos de minha existência foram encharcando da mais negra amargura o meu coração. E vendo a vida com esses olhos congestionados de funesta amargura, transformei-me em um poço fatal de ódio. Contudo, não foi aquele ódio irracional, de fazer ferver o sangue, de agir impensadamente apenas para satisfazer-se de forma intempestiva. Meu ódio era um ódio perfeitamente frio, racional, calculado, controlado pela força de minha mente. Em nenhum momento eu deixei transparecer a profunda malignidade que se ocultava em minha psique.

O demônio não seria demônio se fosse sincero. De forma que criei para mim a mais perfeita das máscaras. Estou aqui confessando que modifiquei minha psique integralmente. De um indivíduo originariamente bom, tornei-me um assassino em série. Porém, ninguém nunca soube disso. Sim, para todos, absolutamente todos, eu continuava sendo aquele jovem bondoso, terno e inocente. Nunca ninguém desconfiou de mim, ainda que muitos suspeitassem que eu não fosse tão bondoso quanto aparentava, conforme já explicitei. Mas daí a imaginar que eu pudesse ser um assassino, seria um absurdo que jamais passou pela cabeça de ninguém. E assim, aquilo que antes em mim era sincero, a minha bondade, passou a ser o melhor disfarce para manter-me incólume enquanto matava sem levantar a mínima suspeita.

Tornei-me a mais hipócrita e dissimulada das pessoas e aniquilei com toda a minha espontaneidade e naturalidade. Toda e qualquer palavra que eu dissesse em meio a outras pessoas era perfeitamente refletida antes. Não ia a qualquer lugar sem prever antecipadamente o que lá poderia ocorrer. Não me relacionava com nenhuma pessoa sem ter algum interesse em vista. As expressões do meu rosto eram sempre calculadas, assim como meus gestos, como meus olhares, como minhas ações.  Nenhum acontecimento externo era capaz de me abalar aos olhos dos outros, procurava ao máximo manter uma calma gélida, ainda que por dentro eu me sentisse profundamente perturbado. Nada do que eu sentia verdadeiramente eu deixava transparecer, absolutamente nada. E assim, executando esse sórdido papel com maestria, permaneci sempre acima de qualquer suspeita. Eu não era aquela pessoa bondosa e ingênua? Pois bem, então que assim todos continuassem pensando a meu respeito...

(Amanhã, a parte 4)

11 novembro 2010

O Meu 33º Assassinato (Parte 2)

Não saberia dizer com exatidão quando o mal principiou a virar o jogo em minha psique, quando comecei a abandonar minha bondade para gerar em meu interior um demônio assassino. Mas passei a perceber alterações em meu comportamento, no que eu sentia e pensava, alguns poucos anos depois do final de minha adolescência. Foi quando iniciei a me dar conta de que o mundo era bem pior do que eu até então imaginava, e que o ser humano está muito mais próximo dos demônios do que dos anjos... Fui, aos poucos, percebendo que todo o bem que vivia em minha alma era inútil quando se tratava da relação com outras pessoas.

Eu era julgado um ingênuo, um bobo, era ridicularizado, às minhas costas, por pessoas das quais jamais suspeitaria. Até mesmo alguns de meus amigos, amigos em quem eu confiava, em quem depositei toda a sinceridade de meu ser, diziam (pelas minhas costas, e imaginando que eu nunca ficaria sabendo) que toda a minha bondade era somente aparência, era disfarce, hipocrisia, fingimento. Eu não poderia ser tão bom quanto aparentava, era impossível, era desumano. Aqueles hipócritas acusavam-me de hipocrisia. Sim, talvez eles tivessem razão, pois me tornei um verdadeiro diabo. Porém, naquela época, tudo em mim era absolutamente sincero, e eu não pude suportar a dor advinda de saber o que meus próprios amigos pensavam de mim. Se os amigos assim pensavam e agiam por traição, o que esperar dos demais?

Mas é claro que não foi apenas esse fato o responsável por minha hedionda transformação. Foram muitos outros, que se acumularam lentamente, somando-se a tudo o que feria os meus sentimentos, desde decepções amorosas até humilhações por parte daqueles que se consideravam superiores a mim por estarem em melhor condição econômica, melhor posição social, pelo seu prestígio vazio dentro da sociedade, enfim... Junte-se a tudo isso a minha solidão e isolamento, o meu abandono, a incompreensão de minhas boas intenções por parte de quase todos aqueles que conviviam comigo.

Assim, fui conhecendo a realidade do homem e da humanidade. E a decepção foi a mais cruel possível. Olhando para o mundo com novos olhos, com olhos frios e desiludidos, compreendi que o amor, em seu verdadeiro sentido, não habitava o coração de praticamente ninguém. Por isso, não acreditavam que pudesse haver verdadeira bondade em mim. Porque me viam através de si mesmos. Sentindo na pele as traições e humilhações, aprendi definitivamente que não se podia confiar em ninguém, nem na sinceridade dos amigos, nem nos amores das mulheres.

Eu, que sempre confiara na justiça humana, caí em abatimento quando verifiquei o império da injustiça por todos os cantos. Vi, estupefato, a entronização da mediocridade, a vitória na sociedade daqueles que mereciam ser jogados no mar com uma pedra atada no pescoço. Conheci o maior dos méritos: o obtido pelo dinheiro, pelo apadrinhamento, pelas influências ilegais. Contemplei, abismado, o triunfo da imbecilidade, de tudo o que é fútil e vazio, das frívolas aparências enganosas, das “artes” mais desprezíveis, das degenerações psíquicas mais rasteiras, dos sentimentos mais baixos, dos pensamentos mais inúteis, da perversidade, do mau-caratismo, da corrupção em todos os sentidos, da aniquilação impiedosa de todo um planeta... Bom, já basta.

Sentindo em minha alma todo esse horror, não pude mais manter a bondade e a nobreza em meu coração. Os meus sentimentos foram se modificando sombriamente, e com eles a minha mente. Eu sempre fora uma pessoa de grande inteligência. Apesar de alguns me julgarem ingênuo, eu não o era. Inocente, talvez, mas nunca ingênuo. E essa minha assombrosa inteligência fez de mim um assassino que jamais deixou pistas...
(Amanhã, a parte 3.)

10 novembro 2010

O Meu 33º Assassinato (Parte 1)

Eu sempre fora uma pessoa serena e pacífica, de caráter sensato e cordial. Meus familiares, parentes e amigos, enfim, toda e qualquer pessoa que me conhecesse, invariavelmente, aludia com entusiasmo à afabilidade e educação de meu comportamento, à minha simpatia e paciência no trato com as pessoas, à pureza de meu sorriso, à ternura de meu olhar. Era conhecida de todos a bondade de meu coração, a minha índole luminosa, a minha boa-vontade para ajudar os demais. E assim realmente eu era. Ou, pelo menos, acreditava ser.

            Porém, em todo ser humano, por melhor e mais claro que seja seu espírito, oculta-se uma desconhecida e terrível sombra negra. Em alguns, tal sombra sempre se manifesta, consciente ou inconscientemente, de forma relativa e controlada, aceitável pela sociedade. Em outros, a sombra torna-se tão monstruosa que domina completamente o indivíduo e o transforma em um execrável criminoso. Há pessoas que jamais percebem ou identificam seu lado negro em ação. Imaginam, talvez, que não o possuem, que são santos, os melhores seres possíveis, incapazes de cair em qualquer tipo de contradição. Talvez por orgulho (que faz parte da própria sombra, é uma forma de sua manifestação), talvez porque jamais se auto-observaram verdadeiramente. Ou sabem de seu lado negro e não admitem (nem para si mesmos), ou simplesmente desconhecem que ele está presente, provavelmente por uma falta de sagacidade observativa e/ou introspecção.

            Eu fui um desses. Acreditava-me quase um santo. Se alguém dissesse que havia maldade em meu interior, seria para mim como um sacrilégio. Deixado todo esse preâmbulo, torna-se óbvio o ponto onde pretendo chegar. Sim, transformei-me em um homem mau, e mau ao ponto de matar uma pessoa. Ou melhor, várias. E sem arrependimento. Matar por ódio e pelo simples gosto de matar, com um incoercível sangue frio.

 Porém, é ostensível que nenhuma pessoa torna-se má da noite para o dia. O mal é uma doença insidiosa, que vai corroendo aos poucos a nossa alma. Mas antes de corroer a alma, corrói a mente. E antes de corroer a mente, corrói o coração. E então, a maldade que naturalmente habita, latente ou não, o interior de cada ser humano, vai lentamente se erguendo de seu berço, vai se alimentando das circunstâncias da vida, pelos fatos inexoráveis, por uma série fatal de acontecimentos exteriores que, ferindo nosso coração e nossa mente, fazem despertar, a partir deles, o mal que dormia ou apenas se manifestava subrepticiamente. 

(Amanhã, a parte 2. Na imagem, o quadro "Judite e a Decapitação de Holofernes", de Gentileschi.) 

09 novembro 2010

Viver, de Mário Quintana

 Mário Quintana (1906 - 1994), um dos maiores poetas gaúchos, talvez o maior, é também um dos maiores poetas brasileiros. Ainda bem que nunca foi eleito para essa palhaçada intitulada "Academia Brasileira de Letras", o que concede ao nosso Quintana ainda mais honra e valor.  Nascido em Alegrete, em meio ao pampa, como eu, viveu, no entanto,  a maior parte de sua vida em Porto Alegre e amou intensamente a capital gaúcha.  Sua poesia, de uma simplicidade profunda e expressiva, percorre com naturalidade desde a mais aguda ironia até um singelo lirismo que nos fascina e comove. Sua sensibilidade e criatividade poética, sua capacidade de síntese, seu despojamento de linguagem, sua preocupação com o mundo e o homem moderno o colocam como um dos pontos mais altos da poesia contemporânea brasileira. Abaixo, um de seus poemas. (Na imagem, o quadro "A Morte de Ophelia", de Millais.)

Viver
Quem nunca quis morrer
Não sabe o que é viver
Não sabe que viver é abrir uma janela
E pássaros pássaros sairão por ela
E hipocampos fosforescentes
Medusas translúcidas
Radiadas
Estrelas-do-mar...  Ah,
Viver é sair de repente
Do fundo do mar
E voar...
         e voar...
                 cada vez para mais alto
Como depois de se morrer!



Mário Quintana

07 novembro 2010

O Tornado

...o tornado que retorna eterno à minha torre
planeja pelo eterno o teu olhar em torno
e a tua (re)volta sopra em trovão nos nervos
que nada volta para valsar em sempre
mas para tornear como vertigem turva
em torvelinhos-ar do que revolto venta
fugaz tormenta em que tornei de novo
e no momento que me atormenta o tempo
sinto ternura no maior tormento
e a outra vez que em volta vieres torno
à torre de retorno eterno que me hei tornado...


05 novembro 2010

Palavras ao Sol

Sol
és um traidor
prometeste-me tanto ser com os teus dias
mas tostaste minhas esperanças
com o fogo injusto das tuas auroras...
bastou o teu amanhecer ilusório
para que os sonhos me presenteados
pela materna Lua
(“Ó Lua, Lua triste, amargurada...”)*
se dissolvessem na indiferença da tua luz...
quando eu mais precisei de ti
me viraste a face
por entre as nuvens
da tempestade...

ah se eu pudesse
impedir que viesse o teu verão
asfixiá-lo com a minha névoa
enegrecê-lo com a minha noite
e congelá-lo com a minha geada
para não ter que ver
com o cansaço dos meus olhos
pelas ruas degradantes de calor
o desfilar patético em todos os sentidos
da fútil frívola supérflua
desta imbecil alegria estúpida
da humanidade sem nenhum sentido

mas o que digo?
sim, agora eu recordo:
devo estar contigo...
Sol, és meu alento último
és o Fim
Tu acabarás com esta humanidade:
perdoa-me, sou teu amigo.

* verso de Cruz e Sousa



04 novembro 2010

Os Teus Olhos Noturnos...

talvez seja com a insana
palavra de sombra
que se sana
e se aclara a verdade...
o que ilumina melhor a noite
do que a mais relampejante tempestade?

graças aos teus agouros
ah coruja amiga
eu não me iludo...
ah os teus olhos imensos noturnos
que alertantemente
veem tudo...

somente um olho escuro
conhece o segredo que há
entre esta estrofe
e uma revoada de urubus...
só a sombra
percebe os mínimos detalhes
da luz...

02 novembro 2010

Cantiga para não morrer

Ferreira Gullar é um dos mais importantes poetas brasileiros da atualidade. Nascido em 1930, em São Luís do Maranhão, ainda vive e escreve, e sua poesia é conhecida internacionalmente. Sua obra é vastíssima e adentra-se em diversos estilos e nas mas variadas temáticas. Vai do Concretismo ao Romantismo. Na imagem, o quadro "O Canto da Sereia", de Waterhouse. No Dia de Finados, não falarei em Fim. Pelo contrário, deixo uma "Cantiga para não morrer", de Ferreira Gullar. Que pena que não é minha...


Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Ferreira Gullar

01 novembro 2010

Cuidado! Poeta à Vista!

é grande o perigo em ser poeta
(ah quem dera
fosse só perigo...)
há que se andar sobre o fio da navalha
(ah quem dera
fosse um sol comigo...)
a que me destino
e a voz rouca do infortúnio mudo
há que virar um hino...
para chegar aonde me esperam
de minhas esperanças
tornei-me o assassino
perdi-me
encontrando para outros
tornei-me príncipe escravo
dos versos livres
em que me imagino...

lá nos confins do que se perde
em busca do que não estava
“vim, vi e venci”
e o deixei
sobre o macio granizo
da tua mão...
e parto com os dedos em sangue
sem nem sequer pedir um não
de gratidão...

30 outubro 2010

Poema Catastrófico nº3 – Amazonas sem Lágrimas

(Poema para a seca recorde na Amazônia, a maior já constatada.)


eu
o maior rio do mundo
sou talvez o leito planetário
das lágrimas divinas
Deus emocionado com sua criação
derramou nos meus caminhos
suas cósmicas lágrimas...

mas agora Deus parou de chorar
e seco como o suco da desgraça
abandona-me como o eco
do voo endurecido de uma garça...

Deus não chora mais
é frio e indiferente
secaram suas esperanças
e compreendeu:
agora tudo é seco:
seca é a vida
seca é a alma
seco
é o sorriso das crianças

mais seco que o meu leito
é a terra seca
do humano peito

e como sempre
ninguém dará atenção
às minhas palavras insanas...
mas sei que as minhas correntezas
sem lágrimas divinas
serão de lágrimas humanas...

29 outubro 2010

Não se pode esquecê-Lo...

O grande, o imenso, o gigante Fernando Pessoa... não se pode esquecê-Lo. É por isso que deixo três pequenos-enormes poemas do maior gênio da literatura de língua portuguesa. Nada mais a declarar. (Na imagem,  a escultura "Anjo da Tristeza", de William Wetmore Story.)

Deve chamar-se tristeza

Deve chamar-se tristeza
Isto que não sei que seja
Que me inquieta sem surpresa
Saudade que não deseja.

Sim, tristeza - mas aquela
Que nasce de conhecer
Que ao longe está uma estrela
E ao perto está não a Ter.

Seja o que for, é o que tenho.
Tudo mais é tudo só.
E eu deixo ir o pó que apanho
De entre as mãos ricas de pó.


Bem, hoje...

Bem, hoje que estou só e posso ver
Com o poder de ver do coração
Quanto não sou, quanto não posso ser,
Quanto, se o for, serei em vão.

Hoje, vou confessar, quero sentir-me
Definitivamente ser ninguém,
E de mim mesmo, altivo, demitir-me
Por não ter procedido bem.

Falhei a tudo, mas sem galhardias,
Nada fui, nada ousei e nada fiz,
Nem colhi nas urtigas dos meus dias
A flor de parecer feliz.

Mas fica sempre, porque o pobre é rico
Em qualquer coisa, se procurar bem,
A grande indiferença com que fico.
Escrevo-o para o lembrar bem.


Sonho

Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.

Fernando Pessoa

27 outubro 2010

Poema Catastrófico nº2 - Mares Mortos

(poema para o novo Tsunami que devastou a costa da ilha de Sumatra, na Indonésia, e já deixou centenas de mortos. E também levando em conta a recente constatação de que cerca de um terço das formas de vida dos oceanos ou já se extinguiu ou está à beira da extinção.)

7,7
na escala richter...
dizem que o 7 é um número sagrado
mas eu não sei o que digo
com a minha boca asfixiada
com o sangue da água:
para mim o 7 é sangrado

os tímpanos da orquestra em terremoto
da percussão dos sismos
cismaram com meus tímpanos
por mais que me ensinassem
a não me abalar com pessimismos...
e com abalos sísmicos?

arrastou-me os rastos dos rastejos
dos silvos das serpentes asiáticas...
surgem quando menos se espera:
pode se extinguir o Tigre de Sumatra
mas a Natureza é sempre fera...

agora estou lá
morto pelos maremotos
entre os maresmortos...

Um Pouco de Autopromoção

Já disse aqui que os artistas devem fazer às vezes uma autopromoçãozinha, principalmente quando não têm a divulgação da grande mídia, como é o meu caso. Assim, de vez em quando eu me autopromovo. Afinal, os políticos passam se autopromovendo, mentindo muitas vezes, por que então eu não poderei me autopromover? O texto abaixo foi escrito em seu blog pela blogueira paulista Katia Martins  - www.literaturamundana.blogspot.com.  Ela escreveu o seguinte:

"Eu já estou há muito tempo por aí.
Já li muitos clássicos, muito lixo, e estava meio inconformada com a literatura atual.
Mas, descobri uma luz no fim do túnel: A.REIFFER
Não sei se ele vai ficar zangado comigo, mas eu gostaria que todos conhecessem esse "menino" com alma nobre e escrita primorosa.
Digo isso vindo de uma universidade federal, onde muitos se denominam especiais, mas não são.
Muitos acreditam ser, mas esse garoto - para mim que sou anciã - realmente é.
Morram de inveja!
Leiam."

Obrigado, Katia.

25 outubro 2010

Poema Suicida (sobre Palavras de Brahms)

“Na capa (da partitura) deverá ser colocada a imagem de uma cabeça com uma pistola apontada para ela. Creio que isso dará uma ideia dessa música. Tratarei de enviar uma foto minha”. (Comentário de Johannes Brahms sobre seu Quarteto para piano e cordas nº3, Op.60)

ah quem me dera
poder isso dizer de uma arte de mim vinda...

ser o alto da expressão máxima
do último adejo de asa
que faltou para o derradeiro degrau
um olho que sempre esteve ali chamando
e que a um passo da visão extrema
perdeu no voo uma pena
e não deu sinal...
o ciclone que arrastava do vulcão ao abismo
a catedral que o sol sangrava
despencada por um sismo
e a tênue teia entre o amor e o fatal...
o que se ergueu e que depois se foi expulso
o sonho o nunca o nada o pulso
e coisa e tal...

apesar do sem-fim do sentimento
que me alarma
eu não passo de um sublime fracasso
que me alarma...
meu amado amigo Brahms:
empresta-me a tua Arte
ou a tua Arma...

22 outubro 2010

...e vi que havia Sangue em minha Espera

tateei no vinho em treva
o Prenúncio
e vi que havia Sangue em minha Espera
colerizavam nos meus olhos
congestionados de ler sinais vermelhos
em Lao-Tsé e em Confúcio
os sintomas rubros de uma fera...

a culpa fulva
lacrimejou nos cortes dos meu dedos
e vi que havia Sangue em minha Espera
um sabiá golfejou da laranjeira
entre cantos das cortes dos meus medos
uma envenenada amarela...

degolei a laranjeira no auge
da sua menstruação
e vi que havia Sangue em minha Espera
semeei seus ovários pelos horizontes
com a espada em zodíaco da minha mão
furiando aquele incêndio com uma vela

sonhei que um sapo e um cavalo
urinavam líquidos escarlates pelas águas
do poço em que ceifei das tulipas a mais linda
que era Ela
e o pulso do meu coração se vinagrava
ainda
e vi que havia Sangue em minha Esfera...

21 outubro 2010

Uma Sentença

morre o sol e nasce a lua
e o Fim em tudo flutua...
já há tão pouco a ser dito
que não há por que falar de amor
ao que é finito.

para deixar um verso que fique
é mister que eu não fique em nada
e o mistério da minha vida inútil
não passe de um passo a uma palavra
(que não disse)
suicidada...

para deixar um verso que fique
perde-se a rima do coração...

tudo o mais é ilusão.

20 outubro 2010

Dilma ou Serra?

Não direi o óbvio de que tanto a Dilma quanto o Serra têm mais contras do que prós. São dois maus candidatos. Não aprecio nenhum dos dois. Tanto é que no primeiro turno fiquei na dúvida entre Marina e Plínio, e fiquei com o último.

Porém, por trás de Dilma e de Serra está algo mais importante na hora de governar do que a pessoa do presidente. No fundo, não é a pessoa que governa, é o seu partido. E a sua intrínseca ideologia. O PT de Dilma é um partido de esquerda, ainda que tenha se aproximado do centro nos últimos anos. O PSDB de Serra é um partido de direita, ainda que também tenha se aproximado do centro. Porém, ainda é esquerda contra direita.

E eu jamais votarei na direita. Nunca. Já disse isso aqui no blog. Repito. Portanto, vou de Dilma. E seja o que tiver de ser. O que é a direita? É o governo de e para as classes dominantes, sempre foi assim, por mais que se esforcem em dizer que não. A ditadura militar brasileira foi um governo de direita. A Alemanha nazista era de direita. O fascismo de Mussolini na Itália era de direita. Apenas para ficar com os exemplos mais conhecidos.

Para mim já são motivos suficientes para não votar no Serra. Mas como se esses ainda não fossem suficientes, recebi um e-mail defendendo Serra que me forneceu ainda mais motivos para nele não votar. Transcrevo um trecho do e-mail:


"Se Arnaldo Jabor, o crítico e comentarista do Jornal Nacional e do Jornal da Globo também está pedindo pra não votar na Dilma - Temer

Se a Marília Gabriela também está pedindo pra não votar na Dilma - Temer

Se a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil está pedindo pra não votar na Dilma - Temer

Se Pastores de todo o Brasil estão se mobilizando contra a candidatura da Dilma - Temer"

Então, se o Arnaldo Jabor apoia Serra, é porque a Globo também apoia, aliás isso é óbvio, é só olhar os seus noticiários, e se a Globo é a favor, eu sou contra. A chata da Marília Gabriela vai de Serra? Ainda bem. E os padres e os pastores querem Serra? Deus o livre,então, votar no Serra. Deus defenda uma coisa dessas!

18 outubro 2010

Oração – Alerta

Tu
cujo Nome não me é dado distinguir
nem dizer-me mesmo a mim
faz que eu esteja sempre atento...

ao não e ao sim
além do máximo que me for possível
faz que me seja óbvio o que é óbvio
e uma antena oculta ainda que trágica
além do trágico do que é invisível...

faz que não me escape nem o nada
nem o mínimo movimento que se esconde
e que eu sinta o todo o onde o cada
o que não pode o que não há o que não veja
como a presa percebe a cobra
como a cobra pressente a presa

que eu esteja
em cada pulsar de veia
em todo sinal que vibre
como o tigre persegue a presa
como a presa se esquiva ao tigre

faz que eu capte o gesto e a íris
o dilatar-denúncia da pupila
o sonho o vago o sem-saída
o sorriso amarelo da esperança
o falso sol em ouro que me brilha...

faz que eu esteja sempre atento
ao sangrar do crepúsculo do tempo
ao que está aqui fora
e mais ainda
ao que está lá dentro...

16 outubro 2010

da Rebeldia

rebeldes com causa
rebeldes sem causa
ou rebeldes com cauda
de rato?

rebeldes com calda
de leite
de saco...

rebeldes com causa?
rebeldes com calça
bem frouxa
bem frouxos
engolindo os reais
(que dizem ser o real)
dos outros...
rebeldes arcados
alcaides
com o peso do desprezo
do preço...

rebeldes sem calça
com o saco
coçando
e com o saco dos outros
puxando