Eu sempre fora uma pessoa serena e pacífica, de caráter sensato e cordial. Meus familiares, parentes e amigos, enfim, toda e qualquer pessoa que me conhecesse, invariavelmente, aludia com entusiasmo à afabilidade e educação de meu comportamento, à minha simpatia e paciência no trato com as pessoas, à pureza de meu sorriso, à ternura de meu olhar. Era conhecida de todos a bondade de meu coração, a minha índole luminosa, a minha boa-vontade para ajudar os demais. E assim realmente eu era. Ou, pelo menos, acreditava ser.
Porém, em todo ser humano, por melhor e mais claro que seja seu espírito, oculta-se uma desconhecida e terrível sombra negra. Em alguns, tal sombra sempre se manifesta, consciente ou inconscientemente, de forma relativa e controlada, aceitável pela sociedade. Em outros, a sombra torna-se tão monstruosa que domina completamente o indivíduo e o transforma em um execrável criminoso. Há pessoas que jamais percebem ou identificam seu lado negro em ação. Imaginam , talvez, que não o possuem, que são santos, os melhores seres possíveis, incapazes de cair em qualquer tipo de contradição. Talvez por orgulho (que faz parte da própria sombra, é uma forma de sua manifestação), talvez porque jamais se auto-observaram verdadeiramente. Ou sabem de seu lado negro e não admitem (nem para si mesmos), ou simplesmente desconhecem que ele está presente, provavelmente por uma falta de sagacidade observativa e/ou introspecção.
Eu fui um desses. Acreditava-me quase um santo. Se alguém dissesse que havia maldade em meu interior, seria para mim como um sacrilégio. Deixado todo esse preâmbulo, torna-se óbvio o ponto onde pretendo chegar. Sim, transformei-me em um homem mau, e mau ao ponto de matar uma pessoa. Ou melhor, várias. E sem arrependimento. Matar por ódio e pelo simples gosto de matar, com um incoercível sangue frio.
Porém, é ostensível que nenhuma pessoa torna-se má da noite para o dia. O mal é uma doença insidiosa, que vai corroendo aos poucos a nossa alma. Mas antes de corroer a alma, corrói a mente. E antes de corroer a mente, corrói o coração. E então, a maldade que naturalmente habita, latente ou não, o interior de cada ser humano, vai lentamente se erguendo de seu berço, vai se alimentando das circunstâncias da vida, pelos fatos inexoráveis, por uma série fatal de acontecimentos exteriores que, ferindo nosso coração e nossa mente, fazem despertar, a partir deles, o mal que dormia ou apenas se manifestava subrepticiamente.
(Amanhã, a parte 2. Na imagem, o quadro "Judite e a Decapitação de Holofernes", de Gentileschi.)
12 comentários:
A sombra escura latente comum a todos e mais ou menos desenvolvida em alguns. Realidade pura.
Aguardo o prosseguimento
Um bj
Todos temos um lado obscuro...Cabe a nós deixar que a luz o ofusque.
Bjos achocolatados
Fiquei louca por texto e ilustração: essa e a verdade!
Ah, a escuridão do subterrãneo da alma...
É preciso , sempre, abrir uma fresta, estreita que seja, por onde passe a luz...
Belíssimo escrito, amigo!
Imenso abraço.
A ele tem que estar atento e não se julgar imune para não ser surpreendido pelo lado"B". Gostei do texto, vamos aguardar a continuidade.
beijos
Eu nunca simpatizei com os bonzinhos...
Com admiração,
Que genioso texto, em algumas passagens lembrou-me o conto Black Cat, do Edgar Allan Poe.
A dualidade da alma humana é uma seurpresa. Ancioso pela parte 2!
Reiffer!
Você escreve bem demais! Agora vou prestar mais atenção nesse lado latente. Tomara que dê tempo !
E a televisão instiga isso. Basta mostrar uma criança sendo molestada e/ou assassinada e vem uma chuva de crimes iguais.
Fantástico!
Ficarei atenta!
Beijos, poeta!
Mirze
a construção de um personagem. aguardo pra ver essa sequencia. a reviravolta em seu modo de ver o a vida, ou o mal em si.
http://terza-rima.blogspot.com/
Amanhã, às 7h30 da manhã, encontro marcano no PQP Bach.
Dã, marcaDo.
A maldade tem seus encantos...
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