Era uma vez um barco, e um maldito sobre ele. Eu estava no barco no centro de um imenso rio, o rio Noite das Almas, em um barco sem remos, sem leme, sem nada, desgraçadamente perdido, desorientado. Foi então que 9 fadas violetas emergiram das águas, ergueram o barco e puseram-me em terra firme. Agradeci, e uma delas, a mais bela, a mais triste, disse:
- Olha! Ali, atrás daquele angico, vive o gnomo que toca violoncelo eternamente. Vai até ele. O elemental tem muito a te dizer. Vai logo, pois é quase tarde.
Imediatamente, fiz o que a fada ordenou e acerquei-me do estranho ser. Junto com ele estavam um silfo e uma ondina. O primeiro tocava violino, e a segunda, piano. Era um fantástico trio de Beethoven, o trio fantasma. Depois tocaram um de Schubert. Escutei e voltei a um gramado de corujas da infância, muito antigo. Mas em seguida, exerceu-se a atmosfera de crepúsculo inevitável no interior das músicas, e tive que questionar o gnomo antes que fosse tarde. O que tens a me dizer, pequeno amigo?
- Nada. Só que no Castelo de Gumercindo, a Donzela Bradante está gritando, gritando como nunca, obscuramente louca, desesperada. Outra vez está na janela da torre emitindo suas absurdas sentenças. Rápido, tu deves encaminhar-se para lá e salvá-la.
Dei um salto por sobre as moitas e como um raio passei a percorrer florestas infindas, enevoadas, sombrias de um verde-negro. Em cada canto desciam das gigantes árvores velhas bruxas decrépitas, bruxas doentes, e sensuais vampiresas que nos ensejam o desejo de ser mordido e sentir o cheiro do sangue e o gosto da vida se esvair pelas veias. Mas não o fiz. As bruxas cochichavam e debochavam expectorando:
- Atirem flechas, dêem tiros de canhões, metralhem, detonem bombas nucleares, não vai dar, é tarde demais, tarde demais. E dispararam numa carreira desabalada pelo meio do mato.
Eu tinha que ir logo, meu Deus, ir logo, violento, desbragado, infrene. Está tudo prestes a tudo. Não tinha tempo de pensar, por isso intuía. Foi então que ante minha fronte febril um nimbo principiou a derramar uma chuva ácida, e vi, por entre as gotículas prismadas em arco-íris, vi Siegfried, o herói do Anel dos Nibelungos, bebendo hidromel com o Deus Wotan, descansando ao lado a espada Nothung e a Lança do Poder. Mas como uma flecha de bestas medievais, dirigiram a mim seus olhos de fogo, empunharam as espadas, berraram:
- O Crepúsculo dos Deuses, as iminências cósmicas, esgotou-se o tempo, a simbologia do derradeiro. Usa tua energia sexual-volitiva e relampejando vai em frente.
E fui, como o vértice de um furacão, o vórtice de um trovão, tufão, de ciclones, de vendavais, de tormentas, de tempestades, temporais. Alucinado, eu “era todas as guerras”.
E o tempo passava implacável, cada minuto, cada segundo escorria e eu não conseguia mantê-los em minhas mãos que notei passar a metamorfosearem-se em mãos de lobo. Calamidades! Agora sou um lobo e corri, corri desesperado, cruzei matos, campos, banhados, açudes e sangas, e cheguei. Mas nunca se chega a tempo. Estou sempre atrasado. Abandonei o lobo e voltei a ser homem, um pouco mais alto e exausto. Cansado, fatigado, esgotado, mas eu prosseguia, tinha que prosseguir, tinha que me sacrificar, mortificar, ainda que todos fossem incompreensivos e injustos. O tempo não parava e tudo estava nas últimas forças definitivas, tudo acabava, morria, findava-se e eu em desabalada carreira atônita e assombrada. Troares de trovões catastróficos de outros planetas holocáusticos que corroíam as luzes ligeiras do sol. Em fuga desceram extraterrestres de Vênus, sacis e curupiras amazônicos, a agourar e abençoar meus caminhos... Então retumbaram as seguintes tragédias:
- Destrói o quanto antes. Sem piedade, arranca do teu interior aquele tumor maligno e acharás a porta do Castelo e a escada para a torre.
E eu parti como uma águia voraz, como um tigre, um jato de cometas explodindo núcleos de hélio, faíscas e incêndios nos cosmos varridos por ventos solares.
Trágico, cheguei até o Castelo onde se encontrava a Donzela Bradante. Situava-se no alto de uma coxilha no vasto pampa roxo-esverdeado. Lá estava ela vociferando. Ao redor da torre, uma imensa multidão se acumulava. Ao observar aquela gente, senti espanto: todos exibiam em seus rostos expressões de horror, medo, desespero... E punham as mãos nas faces e na cabeça e arrancavam os cabelos, rangiam os dentes, piscavam nervosos os olhos e irradiavam ódio e desdém e cerravam as sobrancelhas e vomitavam sentindo dores intestinais e suavam frio sangue gelado e gritavam com ânsias com nojo e tédio e cortavam-se com sofreguidão e oravam erguendo as mãos aos céus e curvavam-se e encolhiam-se e atiravam-se no chão batendo as mãos na terra e... Tentei saber o porquê de todo aquele horror e foi então que dirigi minha atenção aos gritos da Donzela na torre. Eram os seguintes berros que desesperavam a população:
- E quando chegar a morte? O que vocês vão fazer? E quando chegar a morte? De onde vocês vieram? Por que estão aqui? Por que vivem? E quando chegar a morte? Por que não querem falar na morte? E quando vier a tormenta? Por que não querem falar na tormenta? E as coisas que ninguém sabe? O que é aquilo que não se explica? E quando chegar a tormenta? E a morte? Por que não querem falar na morte?
E ao finalizar de falar, ou melhor, de berrar desesperada, a Donzela sentou-se, e toda a multidão permaneceu imóvel, estarrecida em absoluto silêncio aterrador. Então eu subi até a torre por uma escada de trovões, e eu já estava sangrando. Ao chegar à torre, a Donzela Bradante também expelia sangue pela boca. Golfejando juntos um sangue absurdamente vermelho, fomos até a beira da janela e nos atiramos sanguinosos sobre a multidão que agonizava. E fomos felizes para sempre...