25 maio 2014

Final de Sinfonia (e de Humanidade)*

tudo ao mesmo tempo agora
tudo o que já foi
sendo outra vez como não foi
sendo em tons mais abaixo
entrecruzando-se em escalas mais graves
mais graves
mais baixas
a humanidade agora
é todas as humanidades
ao mesmo tempo
e ao mesmo tempo
não é humanidade alguma
é todos os ideais e todas as ideias
e sendo todas não é nenhuma
vê como tudo que foi feito
tende a ser feito outra vez agora
mas não em um após o outro
mas em um sobre o outro
conversões e convivências
feito de forma que se desfaz
para acabar finalmente não sendo

há de tudo hoje pelo humano mundo
mas esse tudo torna-se um nada
que não leva a mundo humano algum

a humanidade é agora todos os seus temas
que foram a sua história
todos os temas
ao mesmo tempo agora
toda a orquestra
tudo o que já foi tocado
tudo foi tocado e nada resta
como o final de uma sinfonia
o final de uma sinfonia
em termos artísticos e humanos
vazia

*Poema reelaborado e republicado.

23 maio 2014

A Coisa Taciturna*

Bêbado de vinho e de noite, outra vez vagava pela madrugada. Mas ao invés do silêncio noturno esperado, alguma coisa perturbadora, algo como um ritmo lento, macabro, hipnotizante, surgia de todos os cantos, sem que eu soubesse exatamente de onde e qual a causa daquelas batidas absurdas.

A princípio, eu ouvia, ou acreditava ouvir, conforme avançava pela sujeira das ruas, sapos que batiam seus pés em uníssono. Delírios de um bêbado com a imaginação exacerbada, pensei. Talvez, se esse fosse o único som que eu escutasse. Havia outros, e eram piores.

Das árvores surgia alguma coisa como batidas de bicos de aves, transmitiam a sensação de que bicavam uns nos outros, ou como se tentassem furar a madeira, e a madeira propagava o som da carne sendo furada. Mas eu não posso dizer se realmente era assim. Para mim era como se fosse. Sei que a sensação era horrível e que o ritmo crescia em velocidade e barulho.

Sons de baques de pedras enormes em açudes, em abismos, em poças surgiam de todos os lados. Ruídos agudos de brigas de punhais, de espadas, antigos gonzos orientais, tudo soava simultaneamente. Ou alguma coisa, alguma força desconhecida, sobre-humana, absurda, fazia-os soar. Aquele barulho infernal findou-se, ou deu uma trégua, após eu ouvir se aproximar um gigantesco galope de cavalos, seguido por pancadas retumbantes, ruídos brutais de machados quebrando crânios e, por fim, uma série de pauladas cuja categoria de som não pude determinar,  mas das quais o ritmo era matematicamente perfeito, que se finalizou de súbito com uma espécie de tiro de canhão muito próximo. E tudo retornou ao silêncio.

Mas o silêncio era tão insuportável quanto os barulhos. Porque parecia anunciar que mais horrores viriam. Eu estava absolutamente certo de que em breve desabaria um temporal, mesmo antes de qualquer sinal de tempestade. De modo que em questão de poucos minutos, relâmpagos apareceram ao longe, e ouvi sons abafados de trovão. A tormenta se intensificava e se aproximava rápido. Pensei em ir para casa, mas não sabia como. Não havia um caminho. Ou melhor, havia um caminho que não era o caminho de volta. E que eu não sabia para onde me levaria. Eu estava perdido.

No escuro completo, aguardando a tempestade, sentei-me desolado sobre uma pedra úmida, intentando me concentrar para lembrar o caminho. Então uma coisa surgiu que parecia chorar. Tive a impressão que estava em algum arbusto próximo a mim. Mas aquele som de choro foi crescendo e percebi que não estava tão perto como imaginei, mas que advinha de longe e não era um choro, era um violino, ou algo como um violino, desesperado e fúnebre.

Um som de um violino transtornado, que aumentava de forma incessante seu volume, pairando pesaroso pelos ares densos de tempestade. E logo começou a ser acompanhado por outros violinos, que formavam uma melodia estranha, caótica, dilacerada. E os violinos passaram a ser acompanhados por outros instrumentos de cordas, tais como violoncelos e contrabaixos, formando uma apocalíptica orquestra de cordas cujo ritmo era determinado pelos trovões e relâmpagos da tormenta que já caía sobre mim. Era como se um dependesse do outro para existir, a tempestade da orquestra e vice-versa. Pelo menos essa foi minha impressão. Que se intensificou quando olhei para o alto e vi aquela massa monumental de tormenta assomando-se sobre onde eu estava, ameaçadora, ao mesmo tempo em que os sons das cordas amplificavam-se indefinidamente.

Não havia onde me abrigar da chuva torrencial, e fiquei ali, sentado sobre o temporal e ouvindo os acordes crescentes e magnéticos daquela orquestra alucinada. Porém, transcorrido um curto intervalo de tempo, o som orquestral, ou seja lá o que fosse aquela coisa, sofreu uma substancial modificação.

Os sons emitidos pareciam agora energizados, elétricos, carregados, como se eles próprios fossem raios e era praticamente insustentável continuar os ouvindo. Pensei que iria ensurdecer em definitivo, quando um raio acompanhado pela orquestra elétrica (ou talvez não fosse que um acompanhasse o outro, mas que consistissem em essência a mesma coisa...) caiu a algumas centenas de metros de mim, em um estrondo indescritível, em uma descarga de eletricidade que iluminou quilômetros e quilômetros de horizontes funestos e desolados. E a tempestade e a música caótica cessaram-se de súbito.

Após um breve instante, a chuva retornou, porém era mais uma garoa do que uma chuva, um gotejar lento e monótono. De maneira simultânea, uma densa névoa entranhou-se através das árvores e invadiu todo o ambiente. Principiei a ouvir algo como uma voz ao longe... Sim, agora era realmente uma voz humana, ou, ao menos, um simulacro de uma. Consistia numa voz arrastada e de uma tristeza arrepiante, um lamento desesperado. De início, parecia ser apenas uma voz por entre a cerração, mas em um curto espaço de tempo outras vozes somaram-se à primeira, de modo que formaram um coro de lamentações. Porém, não conseguia entender uma palavra do que pronunciavam, ou cantavam, ou choravam, não sei dizer exatamente o que era aquela coisa.

Caminhei alguns metros em direção às vozes, talvez, pensei, fosse quem fosse que ali estivesse, soubesse um caminho para sair daquele lugar. O que vi, no entanto, foi algo como uma caravana de pessoas com longos palas escuros e encharcados, com botas atoladas na lama. Apesar da escuridão e da névoa, pude distinguir todas essas coisas, porque quando perceberam minha presença, aqueles homens, se é que eram homens, acenderam inúmeros lampiões de uma luz doentia.

Então uma voz que parecia estar à frente do grupo, ainda que quem a emitia eu não pudesse ver, gritou, ou rugiu, com uma violência absolutamente monstruosa e imperativa, que todos nós, inclusive eu, deveríamos seguir aquela coisa que era nosso destino, o destino de todos nós.  Bem, eu não tinha alternativa. Deram-me um pala negro, vesti-o, e me incluí na caravana...

(Na imagem, detalhe de "A Tentação de Santo Antônio", de Hieronymus Bosch.)

*Este conto foi escrito a pedido da banda The Taciturn Thing, e também constitui uma forma de homenagem ao trabalho dos amigos Alan, Luiz Paulo e Marlon.

20 maio 2014

Eu Não me Explico

não me explico
ponto.

por que deveria dar um motivo
para perder ou não o meu siso?

reservo-me o inexplicável direito
(com o que faço
só eu devo estar satisfeito)
de dizer-me ou não
e se assim desejo
se for pelo dizer mais alto
(ou sonho que me tomou de assalto)
de meu eu eu me desdigo
ou nunca falo do meu falo
e não sou meu próprio umbigo

a minha palavra vai
e isso basta:
vai por um longo longe de  mim
e por outra maior estrada

se eu tivesse que explicar tudo
melhor seria não dizer nada

18 maio 2014

Quatro Chutes na Bunda da Civilização, por Bukowski

o Velho Bukowski sabia o que dizer para esta humanidade, confiram:

Chute 1:  “Como, diabos, pode um homem gostar de ser acordado às 6h30 da manhã por um despertador, sair da cama, vestir-se, alimentar-se à força, cagar, mijar, escovar os dentes e os cabelos, enfrentar o tráfego para chegar a um lugar onde essencialmente o que fará é encher de dinheiro os bolsos de outro sujeito e ainda por cima ser obrigado a mostrar gratidão por receber essa oportunidade?”

Do romance "Factótum"

Chute 2: "Havia alguns turistas, velhos, determinados a aproveitar suas férias. Espiavam ferozmente as vitrines das lojas e caminhavam, batendo os pés contra o pavimento, emitindo raios que anunciavam: tenho dinheiro, temos muito dinheiro, temos mais dinheiro do que vocês, somos melhores do que vocês , nada nos preocupa, tudo está uma merda, mas nós estamos bem e sabemos como funcionam as coisas, olhem para nós.

Com suas camisas rosas e verdes e azuis e corpos brancos e simétricos apodrecendo e calções listrados, olhos esvaziados de olhar, bocas desbocadas, caminhavam por aí, cheio de cores, como se cores pudessem ressuscitar a morte e transformá-la em vida. Eles eram uma espécie de carnaval da decadência americana, um desfile, e não faziam ideia da atrocidade que infligiam a si mesmo."

Do conto "Sem pescoço e ruim como o inferno"

Chute 3: "Como qualquer um pode lhe dizer, não sou um homem muito bom. Sempre admirei o vilão, o fora da lei, o filho da puta. Não gosto dos garotos bem-barbeados com gravatas e bons empregos. Gostos dos homens desesperados, homens com dentes rotos e mentes arruinadas e caminhos perdidos. São os que me interessam, cheios de surpresa e explosões. (...) Posso relaxar com os imprestáveis, porque sou um imprestável. Não gosto de leis, morais, religiões, regras. Não gosto de ser moldado pela sociedade."

Do conto "Colhões"

Chute 4: "Big Bart era o melhor e ele sabia disso.(...) Encontraram uma carroça que fazia sozinha o caminho pela pradaria. Um garoto magricelo de aproximadamente 16 anos com um caso sério de acne estava nas rédeas. Big Bart se aproximou e conduziram lado a lado: 

- Qual é, garoto? - ele disse.
O garoto não respondeu.
- Estou falando com você, garoto...
- Vai tomar no cu - disse o garoto.
- Eu sou Big Bart
- Tá, vai tomar no cu, Big Bart - disse o garoto.

Do conto "Pare de olhar para minhas tetas, senhor"

16 maio 2014

A Ti, Sanguinário*

no que há mais força
que na determinação do mosquito?
ele sabe o que há de fazer
e o faz
e nisso se basta

em noites matas chuvas
ares solos grutas
morte caos horror
no fim do humano
será o mosquito ainda senhor

quem o venceu?
quem o subjugou?
quem dobrou sua espinha
e o fez desistir
de aspirar ao teu sangue
e ir repousar a se rir...?

um exército de mosquitos
(o que há de mais firme?
de mais implacável?)
invadiria todas as terras
venceria todas as guerras
e tornaria este mundo
incivilizável

a Ti, Mosquito
minúsculo sanguinário
e às hostes dos insetos deste planeta
a vós
símbolos-deuses do Horror
deixo meu verso miserável
minha amizade inútil
e minha imperturbável dor

*Poema reelaborado e republicado

15 maio 2014

Depois de não querer pagar o básico de R$1100,00 para os técnicos em enfermagem, o HCS, de fachada nova, fica sem pediatra

Retiro do grupo do Facebook "Manifestação Santiaguense" algumas graves informações sobre a falta de pediatras no Hospital de Caridade de Santiago, o que é, no mínimo, um absurdo revoltante, quando se considera que o HCS constrói uma nova fachada e uma clínica, mas deixa a população sem atendimento de pediatras e, há bem pouco tempo, quase causou uma greve entre os técnicos de enfermagem, ao inicialmente se recusar a negociar com o sindicato e pagar o salário básico da categoria, de míseros R$1100,00. Seria ridículo se não fosse trágico estarmos vivenciando tal situação em Santiago.

Textos retirados do Facebook:

"...o hospital de caridade esta sem atendimento de pediatra no hospital, as gestantes estão tendo que se deslocar até Santa Maria para fazer o parto, as crianças que necessitam de internação também estão sendo levadas pela ambulância da saúde, minha filha de 1 ano 9 meses necessitou de uma internação, mas tem um bilhete na parede dizendo que o hospital não tem pediatra ela passou a noite não observação esperando que tivesse alguma melhora para não precisar ir para Santa Maria, ainda bem que reagiu a medicação e vai fazer medicação injetavél em casa, mas pensa as pessoas que não tem condições de se manterem em outra cidade. Gostaria de ver sua atitude em relação a isso. Grata Andréia.
Meus amigos peço que curtam ou compartilhem essa mensagem pois já enviei ela ao senhor Rafael Nemitz e aguardo saber o que ele fará a respeito"

Andreia Renata Almeida

"Pessoal fiquei sabendo que estamos sem pediatra no pronto socorro, meu priminho teve que ir de ambulância para Santa-Maria, uma grávida teve que ir fazer seu parto lá também, fiquei sabendo disso ontem à tarde pela minha tia, parece que os médicos estão tendo um impasse com a direção do hospital, mas como a prefeitura não toma uma atitude e deixa isso acontecer, isso é uma vergonha, não podemos ficar sem pediatra atendendo, se alguém tiver mais informações se manifeste. Obrigada."

Alessandra e Mauro Soares

A Humanidade está Acabada - Caderno Pragmatha

Clique na imagem para ampliar:


12 maio 2014

A Época da Aparência III – A Bunda Suja

e a humanidade afunda

porque as pessoas
não se  responsabilizam:
ninguém assume seu próprio peso
ninguém se olha no próprio poço

todos querem uma vida leve
com suco sorriso e sombra
sem preço retorno ou culpa
com tudo sem pagar nada
naquela existência fashion
e descolada
onde pensar tornou-se um saco
e sentir tornou-se piada

querem uma vida leve
onde se possa se ter de tudo
e não se paga por nenhum ato
com os lábios até as orelhas
e amputada a mão da consciência

como se não houvesse voltas
nem consequências

enfim
aquela coisa
em que todo mundo caga
e ninguém lava a bunda...

e a humanidade afunda

10 maio 2014

Uma Advertência

há que cuidado
com a sede de vida
que o que se sedia
na sede da alma
tem sede
em maior medida:

sede cauteloso
não se pode saciar ambas
pois que a vida é cordas bambas
entre um lado e outro do poço
e quem morde a carne
com muita ânsia
pode quebrar os dentes
em algum osso

nem tudo é eu posso:
às vezes fica tarde
e noutras – tempestade 
e pode (m)olhar  granizo ou seca
sobre o jardim...

pois nem tudo é simples assim
nem sempre se colhe tulipas
para desfolhar nas trilhas
e aparentar aquela imagem
de mil maravilhas

a vida não é só soprar
e fazer espuma:

por trás do arbusto
com a alegria das flores
se oculta o silêncio
do bote do puma...

07 maio 2014

Brahms e a 4ª Sinfonia

Brahms completa hoje 181 anos. Não posso deixar, como sempre faço, de prestar minha homenagem. Johannes Brahms compôs apenas 4 sinfonias. Mas todas elas absolutamente magistrais e estão no ápice da música sinfônica romântica. Brahms foi um exímio sinfonista. Dos maiores. Não é à toa que sua 1ª sinfonia foi considerada como sendo a 10ª de Beethoven. E todos sabem que Beethoven foi o maior de todos os sinfonistas.

Porém, entre as quatro sinfonias de Brahms, a última, a 4ª, Opus 98, é a minha preferida, juntamente com a primeira. É a mais madura, a mais bem acabada e a que melhor expressa a alma de Brahms. É uma das sinfonias mais trágicas e melancólicas já criadas. Estreou em 1885, em Meiningen, sendo acolhida com muito entusiasmo por toda a Europa.

Os acordes iniciais de seu primeiro movimento já carregam o ar de uma densidade emocional escura e apaixonada. É música pesada, tensa, sem, no entanto, perder por um instante sequer o seu obstinado lirismo, a sua poesia introspectiva. O movimento desenvolve-se com absoluta perfeição melódica e estrutural, em um total domínio da forma sonata, para desaguar em uma verdadeira catástrofe sonora, em um clímax furioso, marcial, devastador, que nos deixa a impressão de que o teto vai desabar sobre nossas cabeças.

O segundo movimento, dominado por um sentimento de outono, de inverno, é, ao mesmo tempo, lírico e solene, melodioso e taciturno, terno e misterioso. Passando pela vivacidade ensolarada e enérgica do 3º movimento, atingimos o 4º, onde a dilaceração emocional atinge o extremo, em notas carregadas de força e de tragédia. O breve instante de sol do movimento anterior dá lugar às sentenças sombrias do final da sinfonia, onde se percebe uma forte influência de Bach.

O 4º movimento, desenvolvido a partir de uma passacaglia, afirma de forma indubitável o caráter sombrio e pessimista da obra, ao mesmo tempo que é uma lição de orquestração. Ergue-se imenso, imponente, majestoso, como uma montanha castigada entre a tempestade. Que se mantém firme. É uma obra de ocaso, o sol se põe ao final da sinfonia em um horizonte avermelhado... Brahms dá adeus às sinfonias deixando um legado definitivo às gerações vindouras.

06 maio 2014

de uma Vida mais Alta

o que cansa no que se vive
é essa mania de ter que viver
no sentido de se viver
de alguma forma determinada
como a sendo a fôrma da vida

o que cansa é essa coisa
de se ter que fazer alguma coisa
mas só dentro do que já estado
e de que aquilo que se faz
ter de ser considerado
como algo feito
ou tido como aceito

o que cansa é esse algo
de ter de fazer algo na vida
mas não qualquer algo
mas só naquela regra
já por outros definida

o que cansa
é esse ter de cansar-se
sem sentido
sem nem entender-se o motivo
a não ser o de ter de cansar-se
até sentir-se morto
para sentir-se vivo

04 maio 2014

A Época da Aparência II - Os Homens Ocos

“Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada.”

T.S.Eliot

nós somos os homens ocos
em cujas cucas
há um caldo análogo
a uma água de coco
que escorre pelos buracos
que ao menor toque do cosmos
se faz em cacos

os nossos crânios
foram esmagados por tacos
pelas pauladas
da vida mecânica
e pelos socos
do mundo vácuo

antes fôssemos loucos
mas apenas
nos acocoramos diante do caos
como os porcos
curvam as fuças diante dos céus

não valemos nem para troco
nada mais que macacos
e ainda mais tolos
pois nem os símios
transformam suas matas
em tocos

os homens ocos
chocos botando ovos
e mascarando a miséria
com miserável reboco

(na imagem, o quadro "Concerto em um Ovo", de Hieronymus Bosch)

02 maio 2014

A Época da Aparência I

aquele sorriso
sem siso
salivando seus sisos
dentes alvos e calvos
no sereno de à mostra
lábios largos e vastos
já tocando nas costas

aquele sorriso
distribuído nas ruas
de graça e bordas nuas
noticiado em jornais
em progressos governamentais
sublimado em cientistas
sempre dando nas vistas
telas de TV e capas de revista

aquele sorriso
da alegria da vida
do que se nunca duvida
e que a todos afaga
do ideal alcançado
e da esperança elevada...

aquele sorriso:
a máscara
do que se degrada

30 abril 2014

Ao Nada

aquilo que não
que não o quê?
que não tudo
desde o lá ao agora
que não está
aquilo que ser
sem que seja como sendo
o longínquo de um algo de dentro
o que nunca em nunca momento
sonho que sonha o meu real
o outro lado do que não o outro
além-me-ar estando aqui
pelo sono do teu quintal

flor que cheirou o meu gesto
sem tocar a minha mão
fuga invisível de um verso
ao voo do que não me fui
em estares de imaginação
o  mas do que me distância
e longos pelos teus cabelos
olhos  no éter sem sê-los
que terminam em um nada
e começam em um fim...

e tem também o outro lado
que é aquilo que sim

28 abril 2014

Um Conto (de Horror)

o meu conto
é rápido:

conta a história de um homem
um coitado
que só com o que contava na vida
era o ato de contar seus contos
de réis
irreais
em moedas sem conta
e o tudo mais
não era da sua conta...

e contando convicto
nem se deu conta
de que em contra do que cria
lhe tomava conta
um corvo com seu canto
a lhe tomar sua cota
e lhe fazer sua compra
de um pé na cova

agora o cara
que contava seus contos
está se contorcendo num canto
pendurado por uma corda
e pelas suas costas
uma cobra
vem cobrar sua conta

26 abril 2014

Sobre umas Tripas

eu pouco fiz que me tornasse lido
tudo que digo não pretende o mundo
um vale sujo não me importa tê-lo
então meu selo é como um vinho extinto
sonho já ido com estas lentas mortes
que de tão fortes nem nos dizem nada
como na estrada aquele bucho aberto
que de tão perto nem nos é mais visto:

gato-mourisco atropelado a um canto,
o humano pranto é bem mais podre e findo


(Obs.: Claro que o gato-mourisco na imagem acima não está com o "bucho aberto" como digo no poema, mas poderia, afinal foi atropelado e morto. Os atropelamentos de animais selvagens nas estradas é algo que me preocupa e me entristece, mas as pessoas em geral não estão nem aí, pois não se preocupam nem com suas vidas e com as demais vidas humanas, quem dirá com as dos animais... O ser humano prefere "mostrar que seu carro corre e tem motor" do que respeitar a vida humana e a vida dos animais selvagens.)

23 abril 2014

das Artes

só há compreensão
de alma para alma:
quem não a tem em si
não a percebe no que é outro
nem nos seres
nem nas coisas
nem nas artes

nem no todo
nem nas partes

somente o que tem alma
capta o que de alma
há no que é
(para quem não a tem
não há nada)

alguns questionarão:
“mas...
de que tipo de alma ele fala?”

para quem a tem
não é preciso que se diga
já se entende
com o que se cala

21 abril 2014

O Seio

a Noite
é uma flâmula do Fim:
um símbolo do que se finda
com o  brasão do que retorna

há na noite
o sonho  dos românticos
a dúvida dos barrocos
o mistério dos simbolistas
e o corrosivo dos pós-modernos:
a noite e seus medos são eternos

não se pode impedir
que a noite sempre seja
e nem se pode ver além
do que ela traz em seu (v)entre

por mais sol
que brilhe nos olhos da bela
seu olhares hão de sempre fechar
que anoitece a vida
o ideal anoitece
e anoitece amar

em tudo e em todos
a mão da noite (re)pousa:
das alegrias desbotam as camisas
dos sorrisos despencam os dentes
e do poder brocha o cetro

o adeus aguarda
no trono do tempo
e o seu aceno de réquiem
nos sempre alcança:
tudo se cansa...

a própria Luz
foi da Noite que veio
que a noite é a origem e o destino
e tudo descansa
em seu fêmino seio