- Bem, mas aí tu estás levando a um ponto extremo...
- E por que não levar ao extremo? Sempre há um extremo em tudo, não? Talvez somente atingindo o extremo é que se poderá sofrer o choque necessário para que tenhamos a noção do estado em que chegamos. Um ponto máximo. Posso vir a ser este ponto máximo. Por que não? Mas não serei muito diferente do restante da humanidade. Observa bem, Renato. A grande maioria das criações humanas dos tempos atuais nos leva à mecanicidade, acaba, de um jeito ou de outro, levando-nos à mecanicidade de forma intencional ou não. Desde os computadores e a internet que nos afastam do convívio social direto, do calor do contato humano, passando pela frieza dos televisores, até atingir a qualidade da arte produzida em nossos dias, músicas mecanizantes, literatura superficial, enfim, tudo nos leva a deixar de sentir, ou, se sentirmos, é na superfície, não passa de um sentimentalismo ridículo, efêmero, que passa sem deixar verdadeiros resultados. Sem que haja qualquer modificação de fundo. Entendes o que digo?
- Sim, eu entendo, teus argumentos são legítimos, mas não acho que devemos aceitar as coisas dessa forma... Por que tu tens que cultivar essa frieza se tu a reconheces como sendo negativa, segundo se depreende do teu discurso? Melhor seria reagir.
- Reagir para quê? E de que maneira? Os que reagem são esmagados pela mecanização da sociedade. Há um padrão a ser seguido. Quem não o segue, é descartado. Mas eu não pretendo simplesmente seguir o padrão. O que eu desejo, como já disse, é extremá-lo, e jogar na cara de todos. Eu quero ser o pior. A criação mais doentia e monstruosa dessa civilização decadente.
- Meu Deus, Vagner, o que houve contigo? Eu simplesmente não sei mais o que te dizer...
- Então não me digas nada, será bem melhor assim! Estou cansado, exausto das pessoas me dizerem coisas, todas elas sempre inúteis, falsas, hipócritas, egoístas, belas palavras disfarçadas em aparentes bondades, mas apenas mais uma expressão sorridente da frieza mecânica, robótica e imbecil que se irradia como um câncer do olhar de cada ser humano. Olha no olhar dessa gente, Renato. O que tu verás lá? Nada, apenas um vazio fétido. Cada vez que toquei na mão de cada pessoa, absorvi dela essa estúpida frieza insípida, essa morte em vida. E agora me torno a própria frieza. Em pessoa. Essa é a minha lição. Essa é a minha obra.
- Não acredito que tu sejas isso...
- Se eu te matasse, acreditarias?
- Tu não farias isso, é meu amigo... claro que não farias...
- Tens razão em uma coisa e te enganas noutra. Sim, eu não faria, mas não porque sou teu amigo, não o sou mais, não mais. Não sou amigo de ninguém, e assumo o fato. Não te mato porque isso não seria inteligente da minha parte. É óbvio que dessa forma eu iria para a cadeia. Só por isso não descarrego minha arma em ti. Mas não que seja pelo motivo de alguma afeição minha com relação a ti.
- Bem, ok, Vagner. Ainda não consigo acreditar em tudo isso, ou é uma brincadeira de mau gosto, ou tu enlouqueceste definitivamente. Mas creio que devo ir embora, acho que já estou incomodando.
- Não, incomodando não. Na verdade, tua presença pouco me importa.
- Sim, entendo. Até mais, Vagner. Só posso dizer que... sinto muito...
- É? Eu não.