Sou conhecido como o senhor Louis Noite. Claro que meu sobrenome não é esse, mas assim tornei-me conhecido devido ao estranho caráter dos impiedosos sintomas de minha enfermidade, os quais me impedem de sair às ruas durante o dia. Não que os raios solares sejam a mim nocivos, o que ocorre é que o sofrimento causado pela desconhecida patologia torna-se inexplicavelmente insuportável durante o dia, amenizando-se pelas horas noturnas.
Outras características e sintomas de minha doença são ainda mais absurdos, frutos de uma inquietante alteração de consciência, que muito se assemelha a uma esquizofrenia, com a diferença essencial de que sempre mantenho-me consciente de tudo o que comigo ocorre. Para exemplificar claramente o comportamento de minha enfermidade, relatarei os acontecimentos daquela terrível noite, da qual julgo desnecessário mencionar sua data.
Realizava eu uma de minhas longas caminhadas noturnas, que é quando intento buscar momentâneo alívio à dor física e psicológica ocasionadas pela doença, e, costumeiramente, meu lobo negro juntou-se a mim. Sim, em minhas caminhadas, sempre tenho a companhia de um imenso lobo de espessa pelagem negra, que comigo dialoga durante toda a noite. Esse é mais um sintoma da enfermidade, a visão de um lobo que conversa como um humano e que, obviamente, não é visto por ninguém mais, e, assim, todos pensam que converso sozinho, mas quem me conhece já está acostumado com minha loucura. Às vezes, subo às costas do lobo, e ele carrega-me por estranhos e magnificentes lugares oníricos, os quais não é meu objetivo descrevê-los agora. Outro sintoma, que ao longo daquela noite encontrava-se um tanto exaltado, consiste no fato de, ao passar por qualquer árvore, invariavelmente, perceber um vulto luminoso ao lado, acima, ou interpenetrado na mesma. Identifico tal vulto como a alma da árvore e com ela mantenho um absurdo diálogo.
Contudo, como ia dizendo, aquela noite foi verdadeiramente terrível. Não diferiu muito das outras em sua essência, mas na intensidade e dramaticidade dos acontecimentos. Talvez por ser lua cheia, dizem que isso afeta os loucos. Passava eu por um grupo de jovens quando, involuntariamente, pude ouvir sobre o que se tratavam os assuntos de suas conversas. Ao fazê-lo, senti um tremendo choque em meu cérebro, uma febre alucinante que me transmitia a insuportável sensação de que meu crânio iria derreter. Atribuo tal choque à imensa quantidade de bobagens e de futilidades contidas nas conversas daqueles jovens, tão agressivas a minha mente enferma que a acometeu de uma febre vulcânica.
Prosseguindo em meu sinistro passeio, avistei em uma esquina um homem alto que muito chamava a atenção. Ele conversava com outros dois homens, e, aproximando-me, percebi que se tratava de um respeitável candidato a deputado. Então, outro sintoma de minha enfermidade principiou a se manifestar, agora na forma de estarrecedores distúrbios visuais. Meus olhos doentes e insanos não viam ali somente um alegre e eloqüente político, mas um ser monstruoso, de cuja boca gotejava uma baba amarelada e purulenta, de cujos olhos brotavam horripilantes ejaculações gangrenosas. E ainda tive a nítida impressão de que ao fundo da boca bestial daquele ser para mim desprezível havia algo como um maligno deboche. Aquele ar perverso e vazio que o político irradiava perturbou sobremaneira minha demente psique, e eu não conseguia entender como que os outros não se davam conta de nada disso, como tudo era tão normal para os outros e tão horrível para mim.
Já durante a madrugada, passei em frente a uma boate e pude captar os sons das músicas que de lá provinham. O resultado foi que percebi aqueles sons tão doentiamente que meus ouvidos gotejaram sangue por várias quadras. Felizmente, tinha sempre ao meu lado meu amigo lobo, que me consolava, contando-me histórias de um mundo muito além do nosso, o que tranqüilizava meu espírito atormentado.
Quando tentava fugir a todas as pessoas, pois já me era intolerável o que o normal comportamento humano sintomaticamente despertava em mim devido à enfermidade, tive a má-sorte de cruzar por um grupo de pessoas eufóricas e muito falantes. Durante arrastados minutos, pude ouvir tudo o que disseram, mesmo que deles me afastasse rapidamente, pois meus tímpanos tornaram-se superexcitados após o sangramento. E essa extrema sensibilidade de meus ouvidos permitiu que eu ouvisse não só as suas frívolas conversas, mas também, e sem dúvida isso é mais uma alucinação de minha doença, algo como uma outra voz simultânea que soava ao fundo das vozes normais e transmitiam a impressão intuitiva de que eram emitidas pelo interior dos falantes. Enquanto aquele grupo comentava sobre diversões e festas, as vozes ao fundo, num tom rouquenho, monstruoso, falavam de dor e desespero, de solidão e vazio. Enquanto eles abordavam suas atividades de seus empregos, as vozes ao fundo se diziam escravas de um trabalho inútil e embrutecedor; e ao falar o grupo sobre dinheiro, as vozes diabólicas grunhiam sobre a total falta de sentido na vida e a maquinização do ser humano; enquanto aquelas pessoas tratavam de suas alegrias e felicidades, as lúgubres vozes interiores rugiam e gemiam infinitas tristezas, desesperanças e fatalidades. E eu, ao ouvir todo aquele infernal espetáculo de horror, senti-me perigosamente asfixiado, e lágrimas infrenes brotaram de meus olhos e uma dor de cabeça lancinante torturou-me ao máximo.
Psiquicamente dilacerado pelos sintomas de minha enfermidade, subi às costas do lobo e saí da cidade. Minutos depois, avistamos uma imensa carruagem de aspecto mitológico, puxada por sete cavalos possantes e imponentes, certamente, outra alucinação oriunda da doença. Sobre o primeiro dos cavalos, estava um homem de longo cabelo, trajando vestes, de vermelho vivo, típicas de um guerreiro nórdico. Sobre a carruagem, avistei uma imensa águia de asas abertas, com o agudo olhar fixo no horizonte. Dentro do carro mitológico havia alguns indivíduos, e, ao lado de cada um, um lobo ou um leopardo. O cavaleiro de trajes vermelhos parou a carruagem e convidou-me a subir. Eu o fiz, juntamente com o lobo. A carruagem prosseguiu até subir um alto monte, onde um frio vento soprava incessante. No cume do monte, olhamos para trás e avistamos ao longe a cidade, envolta em uma fumaça negra e mórbida. Com o vento, um fedor indescritivelmente insuportável foi trazido daquela decadente região urbana. E eu pensei comigo que até então fizera parte daquela completa degeneração...
30 abril 2008
21 abril 2008
Noivado
noivado da noite
com o mundo da lua:
núpcias minhas...
Noite:
eu não quero
que tu me digas coisa nenhuma
não me enchas com filosofias
não me cegues de verdade inútil
te amo porque és silêncio
e o teu mistério só fala de sonho
e eu não quero saber de mais nada
então fecha teus olhos de estrelas
então abre teus lábios de trevas
e beija minha boca de morte
Noite...
deixa que outros discutam a vida
deixa que outros proclamem o que é certo
deixa que outros outorguem saberes...
nós somos tristes
não temos nada com isso...
por isso te digo:
fecha teus lábios de ocultos
abre teus lábios de longes
e beija minha boca de fim
com o mundo da lua:
núpcias minhas...
Noite:
eu não quero
que tu me digas coisa nenhuma
não me enchas com filosofias
não me cegues de verdade inútil
te amo porque és silêncio
e o teu mistério só fala de sonho
e eu não quero saber de mais nada
então fecha teus olhos de estrelas
então abre teus lábios de trevas
e beija minha boca de morte
Noite...
deixa que outros discutam a vida
deixa que outros proclamem o que é certo
deixa que outros outorguem saberes...
nós somos tristes
não temos nada com isso...
por isso te digo:
fecha teus lábios de ocultos
abre teus lábios de longes
e beija minha boca de fim
13 abril 2008
Beijo
cinza antigo da coruja
em toques ao branco em neve lunar
negro da pata de aranha
em toques de rubros ao casto da rosa
treva da capa da noite
em toques de sol à íris que surge
escuro do pêlo de onça
em toques ao claro de água na fonte
cipreste de verde tão triste
em toques ao azul calmo de céus:
meus lábios
nos teus
em toques ao branco em neve lunar
negro da pata de aranha
em toques de rubros ao casto da rosa
treva da capa da noite
em toques de sol à íris que surge
escuro do pêlo de onça
em toques ao claro de água na fonte
cipreste de verde tão triste
em toques ao azul calmo de céus:
meus lábios
nos teus
31 março 2008
O Baque no Fundo do Abismo
Deveria ser mais uma de minhas consoladoras caminhadas noturnas. Como disse Victor Hugo, “Eu sou um poeta. É a melancolia da gente da minha profissão que nos faz andar de noite pelas ruas.” Porém, aquela caminhada não foi como as outras...
A princípio, apenas digo que parti em minha tranqüilidade soturna para perambular solitário pelas ruas obscurecidas de minha cidade. A temperatura reconfortantemente fria do cair da noite e o céu absolutamente límpido, cintilante pela onírica magia de um quase plenilúnio, causaram-me uma agradabilíssima sensação, um bem-estar físico e psicológico quase transcendente. E ocorreu que enquanto tais sensações atingiam o auge no momento em que percorria um trecho belamente arborizado e com algumas casas bastante antigas, carregadas de recordações e impressões, percebi a minha frente o elegante caminhar de uma mulher de longos cabelos castanhos escuros, vestindo um casaco preto com detalhes em lilás. Não pude ver seu rosto, mas algo nela atraiu-me fantasticamente, uma atração que não saberia explicar, que não era meramente física, uma atração quase sobrenatural. E foi essa poderosa sensação que fez com que eu seguisse a desconhecida mulher pelas ruas mergulhadas na noite, não me importando nem um pouco o seu destino...
Seu caminhar era charmoso, porém rápido, e necessitei apertar bastante o passo para acompanhá-la de uma distância relativamente pequena. Minha intenção era conseguir observar seu rosto, o qual, imaginava alucinadamente, deveria ser de uma rara beleza. Nos instantes em que ela olhava para os lados, ao atravessar as ruas, eu podia discernir com dificuldade algo de seu perfil, o que já me transmitia uma vaga idéia de sua fisionomia e confirmava minhas suspeitas sobre sua aparência física: concluí definitivamente que deveria ser de fato uma bela mulher...
No entanto, não conseguia me aproximar da desconhecida moça, seu caminhar era realmente acelerado, e o máximo que lograva manter era a nossa distância constante. Caminhávamos na mesma velocidade, se eu intensificasse meu passo, ela também o fazia, o que me levou a desconfiar que ela tinha conhecimento que eu a seguia e, temendo minha aproximação, decidiu chegar o mais rápido possível ao seu destino. Pelo menos foi o que pensei. Porém, apesar da exagerada velocidade de caminhada para uma mulher de aparência delicada e estatura mediana, não chegávamos a lugar algum. Estávamos atingindo já lugares afastados da cidade, pouco conhecidos por mim, contudo, minha inexplicável atração pela suposta beleza divina da misteriosa desconhecida era tamanha que nem pensei em desistir de minha insana perseguição.
Mas devo confessar que ao passar por aquelas ruas escuras, distantes, sombrias, comecei a recear... Um vago medo invadiu-me e passei a dirigir minha atenção não só para a mulher a minha frente, mas também para o que ocorria ao meu redor. A noite avançava, a lua cintilava intensa pelo empíreo sem nuvens, e um vento frio soprava impiedosamente em meu rosto, o que não chegava a ser para mim um desconforto, pois estava com o corpo já bastante aquecido.
Como disse, principiei a observar com mais atenção os meus arredores e percebi que, mesmo com o cair da temperatura, um sem-número de pessoas começava a abrir portas e janelas de suas residências para observar as ruas. Não entendia absolutamente nada, mas os olhares que aquelas pessoas a mim dardejavam não eram nem um pouco amistosos...
Em um momento, tive a nítida impressão que a mulher que eu seguia voltou seu rosto em minha direção, e julguei contemplar como um relâmpago um rosto feminino irrepreensivelmente angelical, com expressivos olhos escuros e uma boca de tonalidade avermelhada. Pareceu-me ainda que ela esboçou um suave sorriso. Porém, não pude ter certeza de nada, a escuridão naquele trecho impediu-me. E ela prosseguia em sua frenética caminhada, não obstante não perder a graça e a delicadeza jamais. E eu, sempre a seguindo desvairado, não podia deixar de perceber o número crescente de indivíduos, homens e mulheres, que surgiam às portas e janelas, e todos eles me fitavam canhestramente. Pude ver em seus olhos algo como um ódio, uma violência latente dirigida contra mim, um rancor, uma malignidade. Confesso que a partir desse instante um verdadeiro temor assolou meu coração, mas já não podia deixar de seguir aquele magnífico ser feminino, era tarde demais.
Avançava infrene, mesmo me sentindo seriamente ameaçado. E o clima de ameaça tornou-se ainda mais carregado no momento em que verifiquei estarrecido que as fisionomias de todas aquelas pessoas assustadoras pareceram sofrer algum tipo de funesta alteração, uma modificação monstruosa. Aparentavam ter perdido algo de suas características humanas para assumirem outras doentiamente diabólicas. Intensificou-se a perversidade, a malignidade daqueles rostos, e acelerei ainda mais o passo, não só para acompanhar a bela mulher, mas também para fugir daquelas visões pavorosas. Porém aquelas pessoas de expressões demoníacas estavam em todas as casas, em todas as portas, em todas as janelas. E o que mais me assombrava era a impressão de profundo e implacável ódio que a mim, e somente a mim, transmitiam. Intentei compreender o porquê de tamanha maldade ser a mim direcionada e deixei que minha intuição falasse...
Seria somente porque eu perseguia a enigmática mulher? O que haveria de especial nela? Seria algo divino ou diabólico? Ou ambos? Ou os motivos do ódio anormal e monstruoso contra mim possuiriam raízes mais diversas, mais profundas, mais secretas? O que eu via nos olhares ominosos de todos era uma degradante e inexorável miséria. Não uma miséria material (em nossos dias, a humanidade é tão miserável que se julga que a única miséria possível é a ausência de dinheiro e bens materiais), mas uma vergonhosa miséria psíquica e espiritual. E percebi que todo o ódio que me ameaçava tinha como causa o fato de que eu ainda sonhava...
Sonhava romântica e absurdamente ao perseguir alucinado e febrento pela noite invernal e escura aquela mulher supostamente misteriosa. E isso era para eles inadmissível, eu jamais deveria cometer o abominável crime de sonhar insanamente em meio a pessoas que há muito já extirparam e asfixiaram suas próprias almas. E o fizeram, segundo elas, em nome de uma fina intelectualidade e de uma moderna filosofia.
A verdade é que, para eles, seres como eu não deveriam dar-se ao trabalho de existir. Afinal, de acordo com o julgamento daquela gente, uma real existência consistia simplesmente em viver-se como um cadáver ainda com energia vital. Vivo, porém interiormente morto. Percebi de forma definitiva naqueles instantes oníricos, de sonho e pesadelo, que o terrível peso anímico de minha existência anômala recairia com toda sua força sobre minhas costas.
O ódio egóico daquelas pessoas de mefistofélica perversidade desejava esmagar-me, banir a minha diferença do meio delas. Como seria possível aceitar alguém tão diverso das determinações padronizadas? Um lunático, um nefelibata, um homem absurdo como eu, um ser impregnado de ideais e emoções nebulosas, de ânsias de um sublime perdido, deveria ser naturalmente aniquilado. Eu seria tão-somente um mau-exemplo, uma indesejada influência a todos aqueles cadáveres autômatos que não queriam abandonar suas acomodações. Não sei como ocorreu aquela materialização tão ostensível, tão visível de tamanho ódio a mim direcionado. O que sei é que fui escolhido como uma espécie de bode expiatório. Iria pagar o altíssimo preço por ter tido a ousadia de sonhar com o impossível, com o inatingível, com a busca do segredo das almas... O segredo daquela mulher era um segredo de alma. E aqueles cadáveres da miséria do mundo que intentavam massacrar-me com seus olhares mentiam a si mesmos que eles representavam toda a vida possível e estavam certos que as minhas sombras nebulosas e secretas do sonho e do ideal eram símbolos de morte. Eu era um louco e, como tal, era um perigo à ordem geral estabelecida: afinal, todos devemos ser iguais...
Na minha insânia, portanto, eu prosseguia seguindo os passos fantásticos da moça. E a que preço a minha demência me carregaria? O que deve pagar alguém que ainda crê possível encontrar algo mais em uma simples perseguição noturna que uma simples mulher, tão normal e medíocre como todas as outras? Como eu poderia ser tão desvairado a ponto de acreditar que naquela mulher que eu seguia haveria mais que um corpo vulgar desprovido de alma como outorga a regra geral? Porém, por mais absurdo que isso fosse, eu acreditava. Para mim, naquela mulher havia alma, algo me dizia que ela não era como as outras, que valeria a pena segui-la... E prossegui.
Mas também algo mais prosseguiu sobre meus calcanhares: ao voltar rapidamente meu olhar para trás, senti um calafrio percorrer minha medula ao observar todas aquelas pessoas monstruosas correndo em meu encalço com um ódio catastrófico em suas faces cada vez mais disformemente demoníacas. A mulher à minha frente acelerou seu passo, agora para uma corrida desesperada, e, é claro, fiz o mesmo. E essa infernal perseguição manteve-se por um tempo indeterminado, porém relativamente longo, onde fomos paulatinamente deixando as casas e as ruas para trás e penetrando em um local desolado onde nada havia além de um terreno escuro e pedregoso, em um ambiente verdadeiramente insalubre. Nesse instante, dei mais uma olhada à minha retaguarda e percebi que tinha obtido uma considerável vantagem sobre meus perseguidores, mas eles permaneciam em meu encalce.
Foi então que a mulher estancou sua corrida subitamente e voltou-se em minha direção... O que meus olhos vislumbraram nesse momento assombrou-me terrivelmente: diante de mim estava um rosto onde somente se distinguia dois olhos escuros e doces com chamas violetas que me fitavam intensamente, como que escrutando os recônditos de minha alma, e uma boca vermelha como o sangue que me convidava estranhamente a beijá-la. E em seu rosto não havia mais nada, só olhos e boca. Tudo o mais era invisível, transparente, de modo que me era possível divisar os seus belos cabelos caídos sobre seu casaco. Nem mesmo seu pescoço era distinguível. Parecia algo suspenso no ar aqueles seus cabelos. O restante de seu corpo estava coberto por suas roupas, inclusive suas mãos por estranhas luvas brancas.
Após o choque causado pela visão absurda, desviei minha atenção para um ponto à frente da mulher e percebi para meu maior assombro que estávamos a poucos passos de um vasto precipício. Os olhos daquela moça fantástica permaneciam fixos em mim, como se quisessem descobrir-me profundamente. Intentei, atônito, falar-lhe, mas antes que o pudesse fazer, surgiu por entre a escuridão um daqueles monstros que me perseguiam e derrubou-me violentamente no abismo, caindo ele junto comigo. Mas minha queda no precipício também foi insólita: eu caía, muito lentamente, quase que flutuando. Mas caía...
Porém, aquele que me empurrou já havia caído. Ouvi o baque fúnebre de sua queda. E logo depois, discerni caindo todos os outros seres diabólicos que me perseguiam, dezenas deles, pessoas monstruosas que submergiam no mar de trevas com uma velocidade vertiginosa, tanto que rapidamente passaram por mim, que me mantinha em minha queda canhestramente lenta.
Enquanto eu caía pairando, transcorreram alguns segundos, e então ouvi um aterrador baque que me gelou o espírito. Era o som dantesco da queda dos monstros... Porém, estranhamente, mesmo sabendo que cedo ou tarde eu também deveria atingir o fundo daquele báratro, não me desesperei. E simplesmente pelo fato de que dirigindo minha atenção para os escuros olhos violetas daquela que na beira do precipício me observava, percebi que ela sem dúvida faria algo para evitar minha queda... Sim, eu possuía essa certeza, aquele ser feminino não me deixaria cair naquele abismo... Ou deixaria? Bem, seja como for, isso já aconteceu... Ou seja, ou eu caí, ou fui salvo. E este relato foi escrito. Resta saber em que condições? Na escuridão do precipício ou sob a luz dos olhos dela?...
A princípio, apenas digo que parti em minha tranqüilidade soturna para perambular solitário pelas ruas obscurecidas de minha cidade. A temperatura reconfortantemente fria do cair da noite e o céu absolutamente límpido, cintilante pela onírica magia de um quase plenilúnio, causaram-me uma agradabilíssima sensação, um bem-estar físico e psicológico quase transcendente. E ocorreu que enquanto tais sensações atingiam o auge no momento em que percorria um trecho belamente arborizado e com algumas casas bastante antigas, carregadas de recordações e impressões, percebi a minha frente o elegante caminhar de uma mulher de longos cabelos castanhos escuros, vestindo um casaco preto com detalhes em lilás. Não pude ver seu rosto, mas algo nela atraiu-me fantasticamente, uma atração que não saberia explicar, que não era meramente física, uma atração quase sobrenatural. E foi essa poderosa sensação que fez com que eu seguisse a desconhecida mulher pelas ruas mergulhadas na noite, não me importando nem um pouco o seu destino...
Seu caminhar era charmoso, porém rápido, e necessitei apertar bastante o passo para acompanhá-la de uma distância relativamente pequena. Minha intenção era conseguir observar seu rosto, o qual, imaginava alucinadamente, deveria ser de uma rara beleza. Nos instantes em que ela olhava para os lados, ao atravessar as ruas, eu podia discernir com dificuldade algo de seu perfil, o que já me transmitia uma vaga idéia de sua fisionomia e confirmava minhas suspeitas sobre sua aparência física: concluí definitivamente que deveria ser de fato uma bela mulher...
No entanto, não conseguia me aproximar da desconhecida moça, seu caminhar era realmente acelerado, e o máximo que lograva manter era a nossa distância constante. Caminhávamos na mesma velocidade, se eu intensificasse meu passo, ela também o fazia, o que me levou a desconfiar que ela tinha conhecimento que eu a seguia e, temendo minha aproximação, decidiu chegar o mais rápido possível ao seu destino. Pelo menos foi o que pensei. Porém, apesar da exagerada velocidade de caminhada para uma mulher de aparência delicada e estatura mediana, não chegávamos a lugar algum. Estávamos atingindo já lugares afastados da cidade, pouco conhecidos por mim, contudo, minha inexplicável atração pela suposta beleza divina da misteriosa desconhecida era tamanha que nem pensei em desistir de minha insana perseguição.
Mas devo confessar que ao passar por aquelas ruas escuras, distantes, sombrias, comecei a recear... Um vago medo invadiu-me e passei a dirigir minha atenção não só para a mulher a minha frente, mas também para o que ocorria ao meu redor. A noite avançava, a lua cintilava intensa pelo empíreo sem nuvens, e um vento frio soprava impiedosamente em meu rosto, o que não chegava a ser para mim um desconforto, pois estava com o corpo já bastante aquecido.
Como disse, principiei a observar com mais atenção os meus arredores e percebi que, mesmo com o cair da temperatura, um sem-número de pessoas começava a abrir portas e janelas de suas residências para observar as ruas. Não entendia absolutamente nada, mas os olhares que aquelas pessoas a mim dardejavam não eram nem um pouco amistosos...
Em um momento, tive a nítida impressão que a mulher que eu seguia voltou seu rosto em minha direção, e julguei contemplar como um relâmpago um rosto feminino irrepreensivelmente angelical, com expressivos olhos escuros e uma boca de tonalidade avermelhada. Pareceu-me ainda que ela esboçou um suave sorriso. Porém, não pude ter certeza de nada, a escuridão naquele trecho impediu-me. E ela prosseguia em sua frenética caminhada, não obstante não perder a graça e a delicadeza jamais. E eu, sempre a seguindo desvairado, não podia deixar de perceber o número crescente de indivíduos, homens e mulheres, que surgiam às portas e janelas, e todos eles me fitavam canhestramente. Pude ver em seus olhos algo como um ódio, uma violência latente dirigida contra mim, um rancor, uma malignidade. Confesso que a partir desse instante um verdadeiro temor assolou meu coração, mas já não podia deixar de seguir aquele magnífico ser feminino, era tarde demais.
Avançava infrene, mesmo me sentindo seriamente ameaçado. E o clima de ameaça tornou-se ainda mais carregado no momento em que verifiquei estarrecido que as fisionomias de todas aquelas pessoas assustadoras pareceram sofrer algum tipo de funesta alteração, uma modificação monstruosa. Aparentavam ter perdido algo de suas características humanas para assumirem outras doentiamente diabólicas. Intensificou-se a perversidade, a malignidade daqueles rostos, e acelerei ainda mais o passo, não só para acompanhar a bela mulher, mas também para fugir daquelas visões pavorosas. Porém aquelas pessoas de expressões demoníacas estavam em todas as casas, em todas as portas, em todas as janelas. E o que mais me assombrava era a impressão de profundo e implacável ódio que a mim, e somente a mim, transmitiam. Intentei compreender o porquê de tamanha maldade ser a mim direcionada e deixei que minha intuição falasse...
Seria somente porque eu perseguia a enigmática mulher? O que haveria de especial nela? Seria algo divino ou diabólico? Ou ambos? Ou os motivos do ódio anormal e monstruoso contra mim possuiriam raízes mais diversas, mais profundas, mais secretas? O que eu via nos olhares ominosos de todos era uma degradante e inexorável miséria. Não uma miséria material (em nossos dias, a humanidade é tão miserável que se julga que a única miséria possível é a ausência de dinheiro e bens materiais), mas uma vergonhosa miséria psíquica e espiritual. E percebi que todo o ódio que me ameaçava tinha como causa o fato de que eu ainda sonhava...
Sonhava romântica e absurdamente ao perseguir alucinado e febrento pela noite invernal e escura aquela mulher supostamente misteriosa. E isso era para eles inadmissível, eu jamais deveria cometer o abominável crime de sonhar insanamente em meio a pessoas que há muito já extirparam e asfixiaram suas próprias almas. E o fizeram, segundo elas, em nome de uma fina intelectualidade e de uma moderna filosofia.
A verdade é que, para eles, seres como eu não deveriam dar-se ao trabalho de existir. Afinal, de acordo com o julgamento daquela gente, uma real existência consistia simplesmente em viver-se como um cadáver ainda com energia vital. Vivo, porém interiormente morto. Percebi de forma definitiva naqueles instantes oníricos, de sonho e pesadelo, que o terrível peso anímico de minha existência anômala recairia com toda sua força sobre minhas costas.
O ódio egóico daquelas pessoas de mefistofélica perversidade desejava esmagar-me, banir a minha diferença do meio delas. Como seria possível aceitar alguém tão diverso das determinações padronizadas? Um lunático, um nefelibata, um homem absurdo como eu, um ser impregnado de ideais e emoções nebulosas, de ânsias de um sublime perdido, deveria ser naturalmente aniquilado. Eu seria tão-somente um mau-exemplo, uma indesejada influência a todos aqueles cadáveres autômatos que não queriam abandonar suas acomodações. Não sei como ocorreu aquela materialização tão ostensível, tão visível de tamanho ódio a mim direcionado. O que sei é que fui escolhido como uma espécie de bode expiatório. Iria pagar o altíssimo preço por ter tido a ousadia de sonhar com o impossível, com o inatingível, com a busca do segredo das almas... O segredo daquela mulher era um segredo de alma. E aqueles cadáveres da miséria do mundo que intentavam massacrar-me com seus olhares mentiam a si mesmos que eles representavam toda a vida possível e estavam certos que as minhas sombras nebulosas e secretas do sonho e do ideal eram símbolos de morte. Eu era um louco e, como tal, era um perigo à ordem geral estabelecida: afinal, todos devemos ser iguais...
Na minha insânia, portanto, eu prosseguia seguindo os passos fantásticos da moça. E a que preço a minha demência me carregaria? O que deve pagar alguém que ainda crê possível encontrar algo mais em uma simples perseguição noturna que uma simples mulher, tão normal e medíocre como todas as outras? Como eu poderia ser tão desvairado a ponto de acreditar que naquela mulher que eu seguia haveria mais que um corpo vulgar desprovido de alma como outorga a regra geral? Porém, por mais absurdo que isso fosse, eu acreditava. Para mim, naquela mulher havia alma, algo me dizia que ela não era como as outras, que valeria a pena segui-la... E prossegui.
Mas também algo mais prosseguiu sobre meus calcanhares: ao voltar rapidamente meu olhar para trás, senti um calafrio percorrer minha medula ao observar todas aquelas pessoas monstruosas correndo em meu encalço com um ódio catastrófico em suas faces cada vez mais disformemente demoníacas. A mulher à minha frente acelerou seu passo, agora para uma corrida desesperada, e, é claro, fiz o mesmo. E essa infernal perseguição manteve-se por um tempo indeterminado, porém relativamente longo, onde fomos paulatinamente deixando as casas e as ruas para trás e penetrando em um local desolado onde nada havia além de um terreno escuro e pedregoso, em um ambiente verdadeiramente insalubre. Nesse instante, dei mais uma olhada à minha retaguarda e percebi que tinha obtido uma considerável vantagem sobre meus perseguidores, mas eles permaneciam em meu encalce.
Foi então que a mulher estancou sua corrida subitamente e voltou-se em minha direção... O que meus olhos vislumbraram nesse momento assombrou-me terrivelmente: diante de mim estava um rosto onde somente se distinguia dois olhos escuros e doces com chamas violetas que me fitavam intensamente, como que escrutando os recônditos de minha alma, e uma boca vermelha como o sangue que me convidava estranhamente a beijá-la. E em seu rosto não havia mais nada, só olhos e boca. Tudo o mais era invisível, transparente, de modo que me era possível divisar os seus belos cabelos caídos sobre seu casaco. Nem mesmo seu pescoço era distinguível. Parecia algo suspenso no ar aqueles seus cabelos. O restante de seu corpo estava coberto por suas roupas, inclusive suas mãos por estranhas luvas brancas.
Após o choque causado pela visão absurda, desviei minha atenção para um ponto à frente da mulher e percebi para meu maior assombro que estávamos a poucos passos de um vasto precipício. Os olhos daquela moça fantástica permaneciam fixos em mim, como se quisessem descobrir-me profundamente. Intentei, atônito, falar-lhe, mas antes que o pudesse fazer, surgiu por entre a escuridão um daqueles monstros que me perseguiam e derrubou-me violentamente no abismo, caindo ele junto comigo. Mas minha queda no precipício também foi insólita: eu caía, muito lentamente, quase que flutuando. Mas caía...
Porém, aquele que me empurrou já havia caído. Ouvi o baque fúnebre de sua queda. E logo depois, discerni caindo todos os outros seres diabólicos que me perseguiam, dezenas deles, pessoas monstruosas que submergiam no mar de trevas com uma velocidade vertiginosa, tanto que rapidamente passaram por mim, que me mantinha em minha queda canhestramente lenta.
Enquanto eu caía pairando, transcorreram alguns segundos, e então ouvi um aterrador baque que me gelou o espírito. Era o som dantesco da queda dos monstros... Porém, estranhamente, mesmo sabendo que cedo ou tarde eu também deveria atingir o fundo daquele báratro, não me desesperei. E simplesmente pelo fato de que dirigindo minha atenção para os escuros olhos violetas daquela que na beira do precipício me observava, percebi que ela sem dúvida faria algo para evitar minha queda... Sim, eu possuía essa certeza, aquele ser feminino não me deixaria cair naquele abismo... Ou deixaria? Bem, seja como for, isso já aconteceu... Ou seja, ou eu caí, ou fui salvo. E este relato foi escrito. Resta saber em que condições? Na escuridão do precipício ou sob a luz dos olhos dela?...
06 março 2008
Eu Amo a Humanidade
Estão completamente enganados aqueles que dizem que eu odeio a humanidade. Como poderia odiá-la? Em amo a humanidade infinitamente, meu amor não pode ser maior. Estou certo que a amo mais que vocês todos, afinal, eu amo tudo que não presta. Há muito tenho dito que sou um doente, uma alma enferma que ama o horror, conseqüentemente, amo a humanidade, não cansarei de repetir isso.
Sou realmente apaixonado pelo sangue em suas mais variadas formas, menos dentro dos organismos. Sim, eu adoro ver o sangue derramado, coagulado em lagos cobertos por corvos, o sangue podre fedendo pelas ruas, o sangue de um sapo esmagado a pedradas, todos os tipos de sangue espalhados, seja A, B, O, AB, nos campos de batalha, nas esquinas das grandes cidades, o sangue do assassinato, do estupro, o sangue do trabalhador explorado esvaindo-se por seus poros, o sangue das focas tingindo o gelo do ártico, o sangue com aids, o sangue verde da Amazônia evaporando ao sol, o sangue do petróleo tingindo de negro os mares, sim, eu sou um demente, eu amo todos esses sangues, por isso eu amo a humanidade!
Como não amar a humanidade se é ela que derrama tanto sangue pelo mundo? Se é ela que espalha tanto horror pelas ruas, se é ela que faz as guerras, e das guerras surge muito sangue. Sangue! Eu amo a humanidade porque sou muito cruel, frio e insensível. Adoro ver os animais levando balas nos miolos, de ver os miolos sanguinolentos voarem pelos ares! Esse prazer que sinto é sublime... É a humanidade que estoura esses miolos? Oh sim, é ela, por isso eu amo a humanidade infinitamente, sem ela, como eu iria me divertir? Quando vejo uma criança sendo morta por bala perdida, fico triste quando o sangue dela não respinga (sim, eu disse quando ele NÃO respinga) no meu rosto. Gosto de sentir o sangue no rosto, o sangue quente, e viva a humanidade que mata crianças com balas perdidas! Eu amo a humanidade, não me cansarei de repetir.
Eu adoro campos queimados, matas queimadas, tostadas, devastadas, o chão duro, seco, cinzento, coberto de carcaças de animais tostados, adoro pisar sobre eles, sentir os ossos quebrando, o fedor de carniça, eu amo todo esse horror. Eu sou muito mau, gosto de saber que faço parte da humanidade e que é a humanidade que massacra todos esses seres inocentes. Eu amo tudo que não presta porque eu sou humano e não presto também, por isso eu amo a humanidade. Adoro rios imundos, ares imundos, mares imundos, adoro lixões a céu aberto, adoro valetas fétidas e enfermiças, eu sou mesmo um demônio. Por isso eu amo a humanidade, porque ela suja tudo que vê, a humanidade é formada por porcos, e eu amo porcos também.
Eu amo tudo que é desonesto, injusto e corrupto, eu amo a falsidade e a ganância, a hipocrisia, “ó falso hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”(Baudelaire). Eu vos amo, porque vós sois humanos, e eu amo a humanidade. Amo tudo que chafurda no lodo, amo a miséria, a fome, o medo, amo ver a mãe africana dando terra suja para seu filho comer! Que espetáculo aos meus olhos diabólicos e humanos. Eu sou realmente muito mau, e sinto um deleitoso prazer ao contemplar meia dúzia de políticos enriquecendo às custas de todo um povo de ignorantes retardados fãs de bigbrother. Isso é digno da humanidade. E eu a amo muito e com orgulho.
Eu sou um diabo, e por ser um diabo amo todas as religiões que prometem o céu, porque o homem crendo que tem o céu, não precisa melhorar, e continuam os merdas de sempre. Eu amo isso tudo, essas religiões que são Robin Hood ao inverso: roubam dos pobres pra dar aos ricos. Amo toda essa mentira porque mentir é humano e eu amo a humanidade.
Eu amo tudo onde não há amor, eu odeio o amor, porque o amor não faz parte da humanidade, e eu só amo a humanidade, não cansarei de repetir isso. Amo todos aqueles que não puderem se amar, amo os que não se amaram, os que não deixaram que se amassem, amo os que não souberam ou não quiseram amar, e a humanidade ama não amar, por isso eu amo a humanidade. Amo! Enfim, eu amo o fim deste planeta, de toda vida que há nele, amo a destruição total e absoluta de tudo. E a humanidade está fazendo isso muito bem... Por isso eu amo a humanidade. Eu, definitivamente, não presto.
Sou realmente apaixonado pelo sangue em suas mais variadas formas, menos dentro dos organismos. Sim, eu adoro ver o sangue derramado, coagulado em lagos cobertos por corvos, o sangue podre fedendo pelas ruas, o sangue de um sapo esmagado a pedradas, todos os tipos de sangue espalhados, seja A, B, O, AB, nos campos de batalha, nas esquinas das grandes cidades, o sangue do assassinato, do estupro, o sangue do trabalhador explorado esvaindo-se por seus poros, o sangue das focas tingindo o gelo do ártico, o sangue com aids, o sangue verde da Amazônia evaporando ao sol, o sangue do petróleo tingindo de negro os mares, sim, eu sou um demente, eu amo todos esses sangues, por isso eu amo a humanidade!
Como não amar a humanidade se é ela que derrama tanto sangue pelo mundo? Se é ela que espalha tanto horror pelas ruas, se é ela que faz as guerras, e das guerras surge muito sangue. Sangue! Eu amo a humanidade porque sou muito cruel, frio e insensível. Adoro ver os animais levando balas nos miolos, de ver os miolos sanguinolentos voarem pelos ares! Esse prazer que sinto é sublime... É a humanidade que estoura esses miolos? Oh sim, é ela, por isso eu amo a humanidade infinitamente, sem ela, como eu iria me divertir? Quando vejo uma criança sendo morta por bala perdida, fico triste quando o sangue dela não respinga (sim, eu disse quando ele NÃO respinga) no meu rosto. Gosto de sentir o sangue no rosto, o sangue quente, e viva a humanidade que mata crianças com balas perdidas! Eu amo a humanidade, não me cansarei de repetir.
Eu adoro campos queimados, matas queimadas, tostadas, devastadas, o chão duro, seco, cinzento, coberto de carcaças de animais tostados, adoro pisar sobre eles, sentir os ossos quebrando, o fedor de carniça, eu amo todo esse horror. Eu sou muito mau, gosto de saber que faço parte da humanidade e que é a humanidade que massacra todos esses seres inocentes. Eu amo tudo que não presta porque eu sou humano e não presto também, por isso eu amo a humanidade. Adoro rios imundos, ares imundos, mares imundos, adoro lixões a céu aberto, adoro valetas fétidas e enfermiças, eu sou mesmo um demônio. Por isso eu amo a humanidade, porque ela suja tudo que vê, a humanidade é formada por porcos, e eu amo porcos também.
Eu amo tudo que é desonesto, injusto e corrupto, eu amo a falsidade e a ganância, a hipocrisia, “ó falso hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”(Baudelaire). Eu vos amo, porque vós sois humanos, e eu amo a humanidade. Amo tudo que chafurda no lodo, amo a miséria, a fome, o medo, amo ver a mãe africana dando terra suja para seu filho comer! Que espetáculo aos meus olhos diabólicos e humanos. Eu sou realmente muito mau, e sinto um deleitoso prazer ao contemplar meia dúzia de políticos enriquecendo às custas de todo um povo de ignorantes retardados fãs de bigbrother. Isso é digno da humanidade. E eu a amo muito e com orgulho.
Eu sou um diabo, e por ser um diabo amo todas as religiões que prometem o céu, porque o homem crendo que tem o céu, não precisa melhorar, e continuam os merdas de sempre. Eu amo isso tudo, essas religiões que são Robin Hood ao inverso: roubam dos pobres pra dar aos ricos. Amo toda essa mentira porque mentir é humano e eu amo a humanidade.
Eu amo tudo onde não há amor, eu odeio o amor, porque o amor não faz parte da humanidade, e eu só amo a humanidade, não cansarei de repetir isso. Amo todos aqueles que não puderem se amar, amo os que não se amaram, os que não deixaram que se amassem, amo os que não souberam ou não quiseram amar, e a humanidade ama não amar, por isso eu amo a humanidade. Amo! Enfim, eu amo o fim deste planeta, de toda vida que há nele, amo a destruição total e absoluta de tudo. E a humanidade está fazendo isso muito bem... Por isso eu amo a humanidade. Eu, definitivamente, não presto.
04 março 2008
Análise de Minha Obra
No link abaixo encontra-se uma magnífica análise feita por Inominável Ser acerca de minha obra: http://covasombriaes.forumeiros.com/os-sombrios-literatos-contemporaneos-f16/alessandro-reiffer-o-escritor-t349.htm#1929
25 fevereiro 2008
Soneto ao Algo
É... até as estrelas um dia se apagam
e a face da lua é sempre fatal,
há um cisne que canta no bem e no mal
e avisos de anjos há muito me vagam...
De sonhos-fins minhas noites se alagam,
nos vales ao longe um selo e um sinal,
sussurram os ventos sentença mortal
e asas de loucas subindo me tragam...
Algo de estranho pousou sobre mim,
que olhos não vêem mas os olhos me sentem
e voa distante partindo enfim...
Mas... irei buscá-la em meu peito doente
antes que caia o derradeiro fim:
terei ainda alma e será suficiente.
e a face da lua é sempre fatal,
há um cisne que canta no bem e no mal
e avisos de anjos há muito me vagam...
De sonhos-fins minhas noites se alagam,
nos vales ao longe um selo e um sinal,
sussurram os ventos sentença mortal
e asas de loucas subindo me tragam...
Algo de estranho pousou sobre mim,
que olhos não vêem mas os olhos me sentem
e voa distante partindo enfim...
Mas... irei buscá-la em meu peito doente
antes que caia o derradeiro fim:
terei ainda alma e será suficiente.
17 fevereiro 2008
Eduardo Guimaraens: um Grande Gaúcho Esquecido
Eduardo Guimaraens. Alguém sabe quem foi ele? Que foi um poeta gaúcho nascido em Porto Alegre em 1892? Que escreveu sete livros e que foi considerado na época nosso maior poeta simbolista? E mais, que chegou a ser considerado uns dos maiores do país, comparado a Cruz e Sousa? Quem lembra dele? E dos que lembram, quem já o leu? Triste saber que um poeta de sua magnitude esteja relegado ao esquecimento até mesmo pelos gaúchos. Mas, quais seriam os motivos? A meu ver, faz parte da discriminação sofrida pelo Simbolismo em nossas terras; a verdade é que ainda hoje os brasileiros não lograram compreender os simbolistas.
O Simbolismo é considerado como o responsável pelo nascimento da poesia moderna, ainda mais se levarmos em conta que Baudelaire, um dos maiores autores simbolistas, foi o pioneiro da modernidade, quando uniu à linguagem sublimada do romantismo o grotesco da realidade humana. Devemos ainda considerar que uma das primícias simbolistas, isto é, sugerir e não afirmar, foi e continua sendo de vital relevância para o desenvolvimento da poesia contemporânea. Sobre o movimento simbolista, afirma Afrânio Coutinho: “Sua contribuição à literatura foi imperecível, havendo quem lhe empreste a categoria de movimento mais importante, pelo seu aspecto positivo e pela herança legada, da poesia moderna”. Se existe a poesia moderna, foi porque antes existiu o Simbolismo.
No entanto, no Brasil, o Simbolismo não atingiu o mesmo nível de relevância que adquiriu na Europa, sofrendo uma negligência e subestimação, onde se entende que o nosso movimento simbolista não chegou a ser devidamente compreendido e assimilado pela sociedade, não estabelecendo bases na mesma. Isso fez com que a grande maioria de seus autores não obtivesse o mesmo grau de divulgação e reconhecimento que escritores de outros movimentos e escolas. Tal fato é possível apreender-se da afirmação de Carollo, ao referir-se sobre os obstáculos ao acesso às fontes bibliográficas dos simbolistas: “...estes obstáculos permitem a proposição de novas indagações quando vistos como índices de preconceitos da crítica na interpretação do movimento...” Na mesma obra, adiante, Carollo observa: “Reconhecidas ainda as dificuldades de aceitação e avaliação do Simbolismo por parte da crítica ‘oficial’ contemporânea, orientada por todo um instrumental metodológico de origem cientificista...”
Sem dúvida, Eduardo Guimaraens também foi vítima desse “preconceito” para com o Simbolismo. Felizmente, grandes críticos, como Massaud Moisés, souberam considerá-lo como “autêntico poeta”, e que “alguns de seus poemas serão suficientes para situá-lo sem favor ao lado de Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens”. Da mesma forma, julgou Andrade Muricy que “a sua arte afastou-se do cunho clássico português e da ingenuidade da temática e da expressão... foi dos mais civilizados dentre todos eles e um dos mais meditativos e delicados”.
Eduardo Guimaraens foi um conhecedor profundo da literatura universal, tradutor de Baudelaire e Dante Alighieri, não por acaso suas maiores influências, sendo que em sua época sua obra foi amplamente valorizada, (ainda que pouco lida) como observa Zilberman, referindo-se a seu principal livro “A Divina Quimera”: “que o consagrou nacionalmente, obtendo reconhecimento de todos que historiam o Simbolismo brasileiro”. No entanto, o poeta que “foi uma das vozes mais altas e mais puras da lírica brasileira”, segundo o jornal Correio do Povo (14/12/1928), constitui-se também, conforme Mansueto Bernardi, em “o menos estudado”. Corroborando Mansueto, verifica-se hoje um escasso número de referências ao poeta gaúcho, imerso, talvez, no relativo ostracismo em que se encontram grande parte de nossos autores simbolistas.
Não obstante, a poesia de Eduardo Guimaraens nos apresenta um âmbito temático de inúmeros desdobramentos. Sua obra nos revela uma profunda sensibilidade e imaginação, uma sutileza e musicalidade da linguagem, um refinamento de emoções repleto de luzes e sombras. Seus poemas são intensamente humanos e espirituais ao mesmo tempo, situando-se entre a veia lúgubre de Alphonsus de Guimaraens e a ascensão vertiginosa de Cruz e Sousa. Eduardo é mais sereno que ambos, menos sombrio que o primeiro, mais terno que o segundo. Sem dúvida, merece que o conheçamos. Para finalizar, nada melhor que alguns de seus versos:
“Não despertes, porém, ainda que surja o dia!
Dorme perpetuamente o sono teu sem termo,
ó forma de vitral, Musa e Melancolia,
que és a quimera de um espírito enfermo!
Não despertes, porém, ainda que surja o dia!”
O Simbolismo é considerado como o responsável pelo nascimento da poesia moderna, ainda mais se levarmos em conta que Baudelaire, um dos maiores autores simbolistas, foi o pioneiro da modernidade, quando uniu à linguagem sublimada do romantismo o grotesco da realidade humana. Devemos ainda considerar que uma das primícias simbolistas, isto é, sugerir e não afirmar, foi e continua sendo de vital relevância para o desenvolvimento da poesia contemporânea. Sobre o movimento simbolista, afirma Afrânio Coutinho: “Sua contribuição à literatura foi imperecível, havendo quem lhe empreste a categoria de movimento mais importante, pelo seu aspecto positivo e pela herança legada, da poesia moderna”. Se existe a poesia moderna, foi porque antes existiu o Simbolismo.
No entanto, no Brasil, o Simbolismo não atingiu o mesmo nível de relevância que adquiriu na Europa, sofrendo uma negligência e subestimação, onde se entende que o nosso movimento simbolista não chegou a ser devidamente compreendido e assimilado pela sociedade, não estabelecendo bases na mesma. Isso fez com que a grande maioria de seus autores não obtivesse o mesmo grau de divulgação e reconhecimento que escritores de outros movimentos e escolas. Tal fato é possível apreender-se da afirmação de Carollo, ao referir-se sobre os obstáculos ao acesso às fontes bibliográficas dos simbolistas: “...estes obstáculos permitem a proposição de novas indagações quando vistos como índices de preconceitos da crítica na interpretação do movimento...” Na mesma obra, adiante, Carollo observa: “Reconhecidas ainda as dificuldades de aceitação e avaliação do Simbolismo por parte da crítica ‘oficial’ contemporânea, orientada por todo um instrumental metodológico de origem cientificista...”
Sem dúvida, Eduardo Guimaraens também foi vítima desse “preconceito” para com o Simbolismo. Felizmente, grandes críticos, como Massaud Moisés, souberam considerá-lo como “autêntico poeta”, e que “alguns de seus poemas serão suficientes para situá-lo sem favor ao lado de Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens”. Da mesma forma, julgou Andrade Muricy que “a sua arte afastou-se do cunho clássico português e da ingenuidade da temática e da expressão... foi dos mais civilizados dentre todos eles e um dos mais meditativos e delicados”.
Eduardo Guimaraens foi um conhecedor profundo da literatura universal, tradutor de Baudelaire e Dante Alighieri, não por acaso suas maiores influências, sendo que em sua época sua obra foi amplamente valorizada, (ainda que pouco lida) como observa Zilberman, referindo-se a seu principal livro “A Divina Quimera”: “que o consagrou nacionalmente, obtendo reconhecimento de todos que historiam o Simbolismo brasileiro”. No entanto, o poeta que “foi uma das vozes mais altas e mais puras da lírica brasileira”, segundo o jornal Correio do Povo (14/12/1928), constitui-se também, conforme Mansueto Bernardi, em “o menos estudado”. Corroborando Mansueto, verifica-se hoje um escasso número de referências ao poeta gaúcho, imerso, talvez, no relativo ostracismo em que se encontram grande parte de nossos autores simbolistas.
Não obstante, a poesia de Eduardo Guimaraens nos apresenta um âmbito temático de inúmeros desdobramentos. Sua obra nos revela uma profunda sensibilidade e imaginação, uma sutileza e musicalidade da linguagem, um refinamento de emoções repleto de luzes e sombras. Seus poemas são intensamente humanos e espirituais ao mesmo tempo, situando-se entre a veia lúgubre de Alphonsus de Guimaraens e a ascensão vertiginosa de Cruz e Sousa. Eduardo é mais sereno que ambos, menos sombrio que o primeiro, mais terno que o segundo. Sem dúvida, merece que o conheçamos. Para finalizar, nada melhor que alguns de seus versos:
“Não despertes, porém, ainda que surja o dia!
Dorme perpetuamente o sono teu sem termo,
ó forma de vitral, Musa e Melancolia,
que és a quimera de um espírito enfermo!
Não despertes, porém, ainda que surja o dia!”
06 fevereiro 2008
É Lógico que a Vida Não Possui Lógica
“...não sei ser humano, conviver
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser cotidiano, ser nítido,
Ter um lugar na vida...”
Fernando Pessoa
Não, não possui. Talvez possua algum Equilíbrio, um equilíbrio sombrio, oculto, incompreensível, inacessível e absoluta e canhestramente ilógico. Mas um equilíbrio. E sempre acima de nossa mão. Por que deveria ser compreensível? Já alguns dirão que esse equilíbrio não existe. Eu não digo nada. Não gosto de dizer as coisas. Gosta de cantá-las. E de gritá-las. Mas não de dizê-las, dizer é tão fraco.
A Lua estava anômala ontem. Foi necessário que eu saísse às ruas naquele estado de sono que não era o sono. Era um sono em um estado alterado de consciência. Saí caminhando pelo dia não-diurno, sim, porque eu sentia um sono profundo e vertiginoso, algo como um desejo não-terráqueo nem fictício, mas dominado por todas as cores de beijos. Não, não sou sonâmbulo. Naquela praça, vi 4 homens lendo jornais. Jamais conseguiria defini-los, mas os defino: horríveis, todos eles: olhos esbugalhados, descabelados, tossindo, boca escorrendo sangue como um churrasco mal-assado, não falavam uns com os outros, não se movimentavam. Não sei se andei ou flutuei até eles, aliás, eu não sei nada. E pedi um jornal emprestado e li todas as manchetes. Horríveis, todas elas.
Como era mágico e salutar meu sono... Com as manchetes dos jornais fiz um poema, sem modificar uma só palavra. O poema mais trágico da história da humanidade. Sonhei... Não sei com o que sonhei, mas vivi o mais fundo possível o que sonhei. Que mais se pode fazer? E como saí das florestas felinas sem ter uma só palavra a dizer a ninguém, isso é que é de se admirar! E como senti os vapores nunca-vistos de tudo que tu me disseste aquele dia sem que me olhasses uma só vez nos olhos... E como olhei nos teus olhos com cheiros de músicas sem que tu me dissesses um só verbo divino ou caído.
Amanhã vai chover... Assim, percebi que a humanidade não vale a pena... Vale a pena aquele rio que nunca correu, aquela flor que nunca nasceu, aquela árvore que nunca cresceu, aquela música que nunca tocaram, aquele céu que nunca brilhou, aquele beijo que nunca se deram... Por isso voam aves de verde pelas ânsias perfumadas daquele inverno que nunca apagou sua luz. Nem a minha. Porém, o mais absurdo de tudo, algo realmente ilógico e que nunca me foi permitido entender é que a sociedade no fundo odeia os professores. Deve ser por que eles são os únicos capazes de melhorar seus filhos. Se o homem quisesse ser melhorado, eu não estaria aqui dormindo, sonhando e escrevendo.
Quantas estrelas caíram aquele dia do céu... Uma delas abriu ao meio minha cabeça, literalmente, e uns uivos-desejo flutuavam tensos ao longe, e perto de mim. Era uma noite sombria, mas tu não estavas sobre os altares. Como se iluminou todo o luar, como uma treva santa chocou-se contra os versos que uma águia largou do bico sobre a morte... Três mãos alucinadas ergueram-se de dentro de meu peito, e vi uma chuva de olhos com chifres brancos perfurarem todo meu coração, o sangue não-meu que lacrimejava ao espaço doente formou uma nuvem que aceleradamente ascendeu ao sonho onde eu dormia. Não esqueçam que eu estava dormindo, por favor, não percam o fio da meada. Corri. Tu não estavas lá. Tudo não estava lá.
E no Brasil odeia-se ainda mais os professores, e estou certo que isso é uma das principais características de nossa cultura, talvez a principal, aquela que define definitivamente o que é ser brasileiro, odiar um professor, afinal, sem isso o Brasil não seria Brasil. Mas um canto e um grito titânicos ergueram-se majestosos daquele planeta de luz que não vejo. Como soou apaixonado um violino de Brahms aos meus ouvidos, e todas as coisas se angustiavam de forma tão ciclonicamente sublime que um furacão passou pela minha cidade e arrasou com tudo, inclusive comigo. Por isso durmo e elevo meu coração na ponta de uma espada flamígera e atiro-o ao relâmpago que me beija... O fim é como o começo: “Sim, está tudo certo./Está tudo perfeitamente certo./O pior é que está tudo errado.” É do Álvaro de Campos, que nunca existiu e valeu a pena. E eu me acordei.
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser cotidiano, ser nítido,
Ter um lugar na vida...”
Fernando Pessoa
Não, não possui. Talvez possua algum Equilíbrio, um equilíbrio sombrio, oculto, incompreensível, inacessível e absoluta e canhestramente ilógico. Mas um equilíbrio. E sempre acima de nossa mão. Por que deveria ser compreensível? Já alguns dirão que esse equilíbrio não existe. Eu não digo nada. Não gosto de dizer as coisas. Gosta de cantá-las. E de gritá-las. Mas não de dizê-las, dizer é tão fraco.
A Lua estava anômala ontem. Foi necessário que eu saísse às ruas naquele estado de sono que não era o sono. Era um sono em um estado alterado de consciência. Saí caminhando pelo dia não-diurno, sim, porque eu sentia um sono profundo e vertiginoso, algo como um desejo não-terráqueo nem fictício, mas dominado por todas as cores de beijos. Não, não sou sonâmbulo. Naquela praça, vi 4 homens lendo jornais. Jamais conseguiria defini-los, mas os defino: horríveis, todos eles: olhos esbugalhados, descabelados, tossindo, boca escorrendo sangue como um churrasco mal-assado, não falavam uns com os outros, não se movimentavam. Não sei se andei ou flutuei até eles, aliás, eu não sei nada. E pedi um jornal emprestado e li todas as manchetes. Horríveis, todas elas.
Como era mágico e salutar meu sono... Com as manchetes dos jornais fiz um poema, sem modificar uma só palavra. O poema mais trágico da história da humanidade. Sonhei... Não sei com o que sonhei, mas vivi o mais fundo possível o que sonhei. Que mais se pode fazer? E como saí das florestas felinas sem ter uma só palavra a dizer a ninguém, isso é que é de se admirar! E como senti os vapores nunca-vistos de tudo que tu me disseste aquele dia sem que me olhasses uma só vez nos olhos... E como olhei nos teus olhos com cheiros de músicas sem que tu me dissesses um só verbo divino ou caído.
Amanhã vai chover... Assim, percebi que a humanidade não vale a pena... Vale a pena aquele rio que nunca correu, aquela flor que nunca nasceu, aquela árvore que nunca cresceu, aquela música que nunca tocaram, aquele céu que nunca brilhou, aquele beijo que nunca se deram... Por isso voam aves de verde pelas ânsias perfumadas daquele inverno que nunca apagou sua luz. Nem a minha. Porém, o mais absurdo de tudo, algo realmente ilógico e que nunca me foi permitido entender é que a sociedade no fundo odeia os professores. Deve ser por que eles são os únicos capazes de melhorar seus filhos. Se o homem quisesse ser melhorado, eu não estaria aqui dormindo, sonhando e escrevendo.
Quantas estrelas caíram aquele dia do céu... Uma delas abriu ao meio minha cabeça, literalmente, e uns uivos-desejo flutuavam tensos ao longe, e perto de mim. Era uma noite sombria, mas tu não estavas sobre os altares. Como se iluminou todo o luar, como uma treva santa chocou-se contra os versos que uma águia largou do bico sobre a morte... Três mãos alucinadas ergueram-se de dentro de meu peito, e vi uma chuva de olhos com chifres brancos perfurarem todo meu coração, o sangue não-meu que lacrimejava ao espaço doente formou uma nuvem que aceleradamente ascendeu ao sonho onde eu dormia. Não esqueçam que eu estava dormindo, por favor, não percam o fio da meada. Corri. Tu não estavas lá. Tudo não estava lá.
E no Brasil odeia-se ainda mais os professores, e estou certo que isso é uma das principais características de nossa cultura, talvez a principal, aquela que define definitivamente o que é ser brasileiro, odiar um professor, afinal, sem isso o Brasil não seria Brasil. Mas um canto e um grito titânicos ergueram-se majestosos daquele planeta de luz que não vejo. Como soou apaixonado um violino de Brahms aos meus ouvidos, e todas as coisas se angustiavam de forma tão ciclonicamente sublime que um furacão passou pela minha cidade e arrasou com tudo, inclusive comigo. Por isso durmo e elevo meu coração na ponta de uma espada flamígera e atiro-o ao relâmpago que me beija... O fim é como o começo: “Sim, está tudo certo./Está tudo perfeitamente certo./O pior é que está tudo errado.” É do Álvaro de Campos, que nunca existiu e valeu a pena. E eu me acordei.
20 janeiro 2008
Desejo de Sombra
desejo
de tudo que é noite e chora
de lago que é triste e canta
de canto oculto
na solidão da mata
de pesadelo-inferno
de negra serenata
de pio de coruja e medo
de sombra nuvem e inverno
do mais absurdo segredo
de lua em tormenta quente
de sol que se põe na guerra
de conto de Poe estranho
e doente
desejo
do perverso humano sangue
espalhado pela terra
de fêmea morta e langue
de marcha fúnebre
do roxo crepuscular
de loucura no céu
e horror no mar
desejo de sombra
de urubus que pousam na sorte
enfim
desejo de Fim
e de Morte
de tudo que é noite e chora
de lago que é triste e canta
de canto oculto
na solidão da mata
de pesadelo-inferno
de negra serenata
de pio de coruja e medo
de sombra nuvem e inverno
do mais absurdo segredo
de lua em tormenta quente
de sol que se põe na guerra
de conto de Poe estranho
e doente
desejo
do perverso humano sangue
espalhado pela terra
de fêmea morta e langue
de marcha fúnebre
do roxo crepuscular
de loucura no céu
e horror no mar
desejo de sombra
de urubus que pousam na sorte
enfim
desejo de Fim
e de Morte
08 janeiro 2008
Agouro no Céu
dez astros de trevas
dez artes-desgraça
dez feitas-catástrofes
esta arte se mata
dez graças de nada
deserto de tudo
desastro dos séculos
desfeitos em décadas
desartes de morte
dez astros Desastres!
dez artes-desgraça
dez feitas-catástrofes
esta arte se mata
dez graças de nada
deserto de tudo
desastro dos séculos
desfeitos em décadas
desartes de morte
dez astros Desastres!
22 dezembro 2007
Poema Distante
no horizonte longínquo
do infinito
da minha desgraça
um claro sol que me acena
se põe ao longe distante
e a noite completa me existe
onde caio como flecha maldita
e cada vez mais longe distante
tuas asas infindas se perdem de mim
teus olhos divinos encantam luares
teus adejos de anjo elevam no cosmos
teu sopro de vida renasce as estrelas
sempre tão longe de mim...
morcegos ciclonam em minha mente
os corvos serenatam em meu sono
nos meus sonhos...
enforcou-se a paz!
e cai da minha boca a gota de sangue...
se uma asa tocou-me nos lábios
foi a de Satanás...
distantes eu ouço teus cantos
longínquos eu sinto teus olhos
sublimes infindos eternos
sempre tão longe daqui...
mas... algo me voa na alma
sempre tão perto de mim...
lá do infinito de tudo que morre
bateram-me sempre tão perto
as asas da Morte e do Fim...
do infinito
da minha desgraça
um claro sol que me acena
se põe ao longe distante
e a noite completa me existe
onde caio como flecha maldita
e cada vez mais longe distante
tuas asas infindas se perdem de mim
teus olhos divinos encantam luares
teus adejos de anjo elevam no cosmos
teu sopro de vida renasce as estrelas
sempre tão longe de mim...
morcegos ciclonam em minha mente
os corvos serenatam em meu sono
nos meus sonhos...
enforcou-se a paz!
e cai da minha boca a gota de sangue...
se uma asa tocou-me nos lábios
foi a de Satanás...
distantes eu ouço teus cantos
longínquos eu sinto teus olhos
sublimes infindos eternos
sempre tão longe daqui...
mas... algo me voa na alma
sempre tão perto de mim...
lá do infinito de tudo que morre
bateram-me sempre tão perto
as asas da Morte e do Fim...
10 dezembro 2007
Absurdas Reflexões-Pesadelo Sobre um Ano Sentencioso
Sentei-me naquela pedra. Pântanos anômalos me cercavam. E só. Ao longe, uma nuvem sem água se formava. Carregava-se com as armas mais radioativas já criadas pelo saber humano. Há outro saber além do humano? Cada vez mais densa e escura, mas de uma escuridão bendita. Eu me consumia. Absolutamente normal o fato de levantarem-se demônios poeanos ao meu redor, afinal eu estava em meio ao mais vaporoso e mefítico pântano já sugerido pelos simbolistas que Poe prenunciou. Todos eles me dardejavam os olhos. Os demônios, não os simbolistas, ou vice-versa. Eu refletia em todas as coisas passadas. Por isso me consumia. Eu era o responsável por todas elas. Passadas atrás de mim. Era a nuvem à frente que se aproximava...
Nunca fui o que pensei que fosse. Dizia o demônio do mundo nos meus ouvidos cegados. “Cercavam-me planícies sem beleza”(Fagundes Varela). Mas o que mais me chamava a atenção tuberculosa que me expelia catarros com sangue era a nuvem radioativa à frente, belíssimos vapores multicoloridos, incensos intelectuais, jasmins de hidrogênio e plutônio degenerados. Como ela era lenta e imensa para padrões pós-pós-modernistas. Eu sonhava em meio a minha culpa. E uma boca vermelha e sensual, vermelha de cânceres, proferia emocionada a verdade. Ela me beijou na língua e eu me consumia. Chove. Derrete meu pé na branquidez da chuva.
Sentei-me naquela pedra. Cercavam-me demônios sem beleza. O Tempo. Como é belo o olho de Satã. “Tem piedade, Satã, desta longa miséria”(Charles Baudelaire). Dos horizontes pantanosos o horror evaporava para unir-se em núpcias científicas com a nuvem que se agigantava ante meus olhos ensurdecidos. E como desciam sobre meu ser sanguinolento todos aqueles pesares sem-sentido que já não sentem mais nada. Meu coração flutuava corvíneo penetrado por barbeiros da doença de chagas que matou o Cristo. Eu detesto refletir. Nunca leva a lugar nenhum. Por isso que reflito, quero me consumir, ademais, só o Nada me interessa. “Quero me consumir!” O lema mais alto e sublime de toda uma civilização. Humanos, vamos conjugar o verbo consumir, mas reflexivamente: eu me consumo; tu te consomes; ele se consome; nós nos consumimos; vós vos consumis; eles se consomem. Muito bem, crianças! agora arranquem suas gargantas inúteis e joguem também no meio da nuvem. Ali está a Verdade. Sem gargantas! Suas vozes não servem pra nada. Quem vai ouvir? Ou melhor: só servem.
Cada vez mais perto. Eu não tenho medo. Que venha a Nuvem(letra maiúscula de agora em diante, vamos respeitá-la), ela é uma parte de mim. Até já posso ver alguns olhos e bocas na formação nebulosa sobre o pântano. De uma boca cospe-se sêmen sem espermatozóides; de um olho derrama-se um pus de rato infeccionado. “Acostuma-te com a lama que te espera”(Augusto dos Anjos). Por que ter nojo dessas coisas que em breve serão toda a nossa vida. Afinal, estamos cercados de ratos, não é mesmo? Eles que transmitem a peste bubônica. Ou seria bo? O ato mais idiota da vida é refletir. Melhor é não pensar em nada, deixar que a boca sangrenta de aids caia sobre nossos olhos mal-abertos. Tudo por um beijo. E a nuvem é perfeitamente justa.
Lá vem ela pelos ares românticos. Numa esfera de anjos eu vi passar o Amor. Tentei tocá-la, mas uma espada de tigres cortou todos os meus dedos. Lá estão eles sendo bebidos por urubus. Todos meus treze dedos das mãos. Sentei-me no pântano. O demônio sorriu. Eu também. Sou assim mesmo, sem dedos, eu fico sorrindo, como toda a humanidade. A humanidade sorri sem olhos. Mas só sorrio para demônios. Oh, a Nuvem já está sobre mim, nada mais posso ver além da Nuvem de horrores. Está tudo ali. Uma velha sem boca, escarrando, arrancou meus cabelos. Já sem pés, derretidos pela chuva, tive que disputar minhas pernas com os lobos. Eu venci.
E chega o navio sobre o pântano. Está todo mundo nele. Vou-me também. Canto III do Inferno da Divina Comédia de Dante. Essa tuberculose ainda vai me matar. É, sou doente do peito. Sinto perfumes de primavera. Paolo e Francesca de Rímini(Canto V). Eu sabia que isso me mataria. A Nuvem faz parte de mim, eu ajudei a criá-la. Pus alguns remendos de erros. Vem o navio, escuto suas trombetas desesperadas. Agora principiou a chuva da Nuvem de monstros. Eles se alimentam de veias. Tudo é Nuvem. Um relâmpago derrubou o meu dente. E ainda reflito. Passadas ameaçadoras atrás de mim. São minhas. Transformei-me num dragão. Ali está o navio. Não vejo homens, só fantasmas. “O Navio-Fantasma”, de Wagner. Sou um dragão, Siegfried cortará minha cabeça. Tudo por culpa da Nuvem. Mea culpa. Neste ano apontou a Nuvem. Ela é nossa. Viram? “Então os meus versos têm sentido e o universo não há-de ter sentido?”(Fernando Pessoa).
Nunca fui o que pensei que fosse. Dizia o demônio do mundo nos meus ouvidos cegados. “Cercavam-me planícies sem beleza”(Fagundes Varela). Mas o que mais me chamava a atenção tuberculosa que me expelia catarros com sangue era a nuvem radioativa à frente, belíssimos vapores multicoloridos, incensos intelectuais, jasmins de hidrogênio e plutônio degenerados. Como ela era lenta e imensa para padrões pós-pós-modernistas. Eu sonhava em meio a minha culpa. E uma boca vermelha e sensual, vermelha de cânceres, proferia emocionada a verdade. Ela me beijou na língua e eu me consumia. Chove. Derrete meu pé na branquidez da chuva.
Sentei-me naquela pedra. Cercavam-me demônios sem beleza. O Tempo. Como é belo o olho de Satã. “Tem piedade, Satã, desta longa miséria”(Charles Baudelaire). Dos horizontes pantanosos o horror evaporava para unir-se em núpcias científicas com a nuvem que se agigantava ante meus olhos ensurdecidos. E como desciam sobre meu ser sanguinolento todos aqueles pesares sem-sentido que já não sentem mais nada. Meu coração flutuava corvíneo penetrado por barbeiros da doença de chagas que matou o Cristo. Eu detesto refletir. Nunca leva a lugar nenhum. Por isso que reflito, quero me consumir, ademais, só o Nada me interessa. “Quero me consumir!” O lema mais alto e sublime de toda uma civilização. Humanos, vamos conjugar o verbo consumir, mas reflexivamente: eu me consumo; tu te consomes; ele se consome; nós nos consumimos; vós vos consumis; eles se consomem. Muito bem, crianças! agora arranquem suas gargantas inúteis e joguem também no meio da nuvem. Ali está a Verdade. Sem gargantas! Suas vozes não servem pra nada. Quem vai ouvir? Ou melhor: só servem.
Cada vez mais perto. Eu não tenho medo. Que venha a Nuvem(letra maiúscula de agora em diante, vamos respeitá-la), ela é uma parte de mim. Até já posso ver alguns olhos e bocas na formação nebulosa sobre o pântano. De uma boca cospe-se sêmen sem espermatozóides; de um olho derrama-se um pus de rato infeccionado. “Acostuma-te com a lama que te espera”(Augusto dos Anjos). Por que ter nojo dessas coisas que em breve serão toda a nossa vida. Afinal, estamos cercados de ratos, não é mesmo? Eles que transmitem a peste bubônica. Ou seria bo? O ato mais idiota da vida é refletir. Melhor é não pensar em nada, deixar que a boca sangrenta de aids caia sobre nossos olhos mal-abertos. Tudo por um beijo. E a nuvem é perfeitamente justa.
Lá vem ela pelos ares românticos. Numa esfera de anjos eu vi passar o Amor. Tentei tocá-la, mas uma espada de tigres cortou todos os meus dedos. Lá estão eles sendo bebidos por urubus. Todos meus treze dedos das mãos. Sentei-me no pântano. O demônio sorriu. Eu também. Sou assim mesmo, sem dedos, eu fico sorrindo, como toda a humanidade. A humanidade sorri sem olhos. Mas só sorrio para demônios. Oh, a Nuvem já está sobre mim, nada mais posso ver além da Nuvem de horrores. Está tudo ali. Uma velha sem boca, escarrando, arrancou meus cabelos. Já sem pés, derretidos pela chuva, tive que disputar minhas pernas com os lobos. Eu venci.
E chega o navio sobre o pântano. Está todo mundo nele. Vou-me também. Canto III do Inferno da Divina Comédia de Dante. Essa tuberculose ainda vai me matar. É, sou doente do peito. Sinto perfumes de primavera. Paolo e Francesca de Rímini(Canto V). Eu sabia que isso me mataria. A Nuvem faz parte de mim, eu ajudei a criá-la. Pus alguns remendos de erros. Vem o navio, escuto suas trombetas desesperadas. Agora principiou a chuva da Nuvem de monstros. Eles se alimentam de veias. Tudo é Nuvem. Um relâmpago derrubou o meu dente. E ainda reflito. Passadas ameaçadoras atrás de mim. São minhas. Transformei-me num dragão. Ali está o navio. Não vejo homens, só fantasmas. “O Navio-Fantasma”, de Wagner. Sou um dragão, Siegfried cortará minha cabeça. Tudo por culpa da Nuvem. Mea culpa. Neste ano apontou a Nuvem. Ela é nossa. Viram? “Então os meus versos têm sentido e o universo não há-de ter sentido?”(Fernando Pessoa).
22 novembro 2007
Minha Absurda Lira
minha lírica de adeus e crepúsculo
vê sóis naufragando nas torres
das torres partem olhos e pios
de corujas com asas de sangue
que gotejam nas luas de fel
como beijos que sonham e morreram
altas mortes de tudo que foi
tu não vieste nas asas das íris
tu não viste minha alma de fim
gritos da noite caídos de luz
ciclones de anjos rezando desgraças
a roxo navio que afunda no céu
céu de tormenta que canta em tua boca
tudo que vai que se perde se finda
dança um azar no lábio no mundo
fogo em promessas de três Prometeus...
quando tua face olhará no meu sono
e na minha lira de ocaso e adeus?
vê sóis naufragando nas torres
das torres partem olhos e pios
de corujas com asas de sangue
que gotejam nas luas de fel
como beijos que sonham e morreram
altas mortes de tudo que foi
tu não vieste nas asas das íris
tu não viste minha alma de fim
gritos da noite caídos de luz
ciclones de anjos rezando desgraças
a roxo navio que afunda no céu
céu de tormenta que canta em tua boca
tudo que vai que se perde se finda
dança um azar no lábio no mundo
fogo em promessas de três Prometeus...
quando tua face olhará no meu sono
e na minha lira de ocaso e adeus?
12 novembro 2007
A Molécula da Última Lágrima
A menina Aloncier sentara-se em meio a um magnífico e intensamente verde descampado, de um verde estranho e irradiante de estranhas sensações, nas planícies de Samoth, uma das mais belas de seu planeta. Alta, com uma tonalidade de pele moreno-avermelhada, possuía longos cabelos ondulados, também de tons rubros, e olhos de íris tenuemente lilases. Se alguém pudesse contemplar sua face naquele momento, perceberia que a menina, em seu rosto belo mas insólito para nossos padrões, exibia uma fisionomia de alguém que está imerso em profundas meditações...
O ambiente em que Aloncier se encontrava, que transmitia inquietantes impressões de infinitude e de cósmica liberdade, era de uma serenidade absoluta; nenhum tipo de construção artificial ali se apresentava, e contemplava-se os horizontes de um vivo azul-purpúreo, sob um céu tão veementemente azul que parecia quase palpável, tamanha era a sensação de vida que dele emanava. Em tal céu, não se avistava nenhuma espécie de nuvem e, além da luz solar, estranhas e intensamente brilhantes luzes fulguravam por todos os cantos, tanto na atmosfera como próximas ao solo, embaixo de algumas árvores gigantes que por ali havia esparsamente.
E todas as coisas existentes aparentavam não formar sombras, pelo menos não como nós as conhecemos. Nos céus, avistava-se uma esquisita diversidade de seres, aves imensas de gritos ultra-sônicos, seres alados muito semelhantes àqueles descritos em vetustas mitologias esquecidas. Outros seres, com um venerável aspecto humanóide, que nós, pela aparência, até mesmo poderíamos classificar como anjos, planavam com suas imensas asas inauditas, ao lado de algumas coisas etéreo-transparentes, formações espirituais indefiníveis, que flutuavam de maneira enigmática pelos ares, dirigindo olhares elétricos para algum ponto não perceptível acima deles.
Toda essa profusão de coisas insólitas e misteriosas causava a sensação de uma harmonia e de um equilíbrio naturais comoventes. E a menina Aloncier ali permanecia em plena tranqüilidade, entre aquelas estranhezas absolutamente normais em seu planeta, ouvindo a música das esferas e o intrigante canto dos pássaros que lá viviam. Era inacreditável a melodia do gorjeio daquelas aves de múltiplas cores cintilantes, verdadeiramente puras e emocionais, lembrando de um modo assombroso músicas de Bach e Mozart. Igualmente assombrosa era a invulgaridade de alguns animais que por ali passavam, aparentemente mamíferos, e que... dialogavam... com Aloncier, em uma linguagem inteiramente desconhecida para qualquer um de nós.
Aliás, é notório que se diga que a menina de olhos lilases não somente dialogava com aqueles insondáveis mamíferos, como também com outros animais e seres visíveis e invisíveis, até mesmo com as plantas que a cercavam, com algumas árvores distantes e com arbustos mais próximos, em uma misteriosa linguagem que deixava a impressão de ser ultra-universal, falada por todos os seres das mais diversas e inauditas espécies. Tais diálogos aparentavam tornar-se possíveis graças às meditações efetuadas por Aloncier.
A menina encontrava-se em um estado de exultante expectativa, pois no dia seguinte completaria 14 anos e, finalmente, seria a ela revelado, por seus pais, o segredo da origem de seu povo. Este, que era formado, em todo o planeta, por alguns milhares de habitantes (essa era toda a população planetária), vivia em perfeita integração e harmonia com a natureza, poder-se-ia dizer até mesmo que faziam mais que isso, que o povo era a própria natureza, assim como o são as plantas e os animais. Aloncier, no entanto, desejava conhecer a origem de sua espécie, de onde e como teriam vindo, o que havia ocorrido em seu planeta antes de seu nascimento, antes do surgimento da sua luminosa humanidade. Como seria seu planeta há milhões de anos atrás? Que seres teriam anteriormente existido? Isso tudo seria revelado integralmente no dia seguinte, e Aloncier aguardava em júbilo o decisivo instante....
E refletindo em todas essas coisas e contemplando em êxtase o fulgurante horizonte, Aloncier chorou, e suas lágrimas caíram na grama, e da grama passaram ao solo... E uma de suas lágrimas, a última que havia chorado, lágrimas que eram formadas por uma substância bem mais penetrante que as que conhecemos, foi muito longe terra adentro. Até que uma das moléculas dessa lágrima, penetrando incrivelmente no chão absorvente daquele planeta, entrou em contato com uma outra molécula que ali jazia há muitos milênios. A molécula da lagrima de Aloncier tocara uma outra molécula, que fora, em um tempo muito remoto, de uma estátua, qual seja, a estátua do “Laçador” da cidade de Porto Alegre.
O ambiente em que Aloncier se encontrava, que transmitia inquietantes impressões de infinitude e de cósmica liberdade, era de uma serenidade absoluta; nenhum tipo de construção artificial ali se apresentava, e contemplava-se os horizontes de um vivo azul-purpúreo, sob um céu tão veementemente azul que parecia quase palpável, tamanha era a sensação de vida que dele emanava. Em tal céu, não se avistava nenhuma espécie de nuvem e, além da luz solar, estranhas e intensamente brilhantes luzes fulguravam por todos os cantos, tanto na atmosfera como próximas ao solo, embaixo de algumas árvores gigantes que por ali havia esparsamente.
E todas as coisas existentes aparentavam não formar sombras, pelo menos não como nós as conhecemos. Nos céus, avistava-se uma esquisita diversidade de seres, aves imensas de gritos ultra-sônicos, seres alados muito semelhantes àqueles descritos em vetustas mitologias esquecidas. Outros seres, com um venerável aspecto humanóide, que nós, pela aparência, até mesmo poderíamos classificar como anjos, planavam com suas imensas asas inauditas, ao lado de algumas coisas etéreo-transparentes, formações espirituais indefiníveis, que flutuavam de maneira enigmática pelos ares, dirigindo olhares elétricos para algum ponto não perceptível acima deles.
Toda essa profusão de coisas insólitas e misteriosas causava a sensação de uma harmonia e de um equilíbrio naturais comoventes. E a menina Aloncier ali permanecia em plena tranqüilidade, entre aquelas estranhezas absolutamente normais em seu planeta, ouvindo a música das esferas e o intrigante canto dos pássaros que lá viviam. Era inacreditável a melodia do gorjeio daquelas aves de múltiplas cores cintilantes, verdadeiramente puras e emocionais, lembrando de um modo assombroso músicas de Bach e Mozart. Igualmente assombrosa era a invulgaridade de alguns animais que por ali passavam, aparentemente mamíferos, e que... dialogavam... com Aloncier, em uma linguagem inteiramente desconhecida para qualquer um de nós.
Aliás, é notório que se diga que a menina de olhos lilases não somente dialogava com aqueles insondáveis mamíferos, como também com outros animais e seres visíveis e invisíveis, até mesmo com as plantas que a cercavam, com algumas árvores distantes e com arbustos mais próximos, em uma misteriosa linguagem que deixava a impressão de ser ultra-universal, falada por todos os seres das mais diversas e inauditas espécies. Tais diálogos aparentavam tornar-se possíveis graças às meditações efetuadas por Aloncier.
A menina encontrava-se em um estado de exultante expectativa, pois no dia seguinte completaria 14 anos e, finalmente, seria a ela revelado, por seus pais, o segredo da origem de seu povo. Este, que era formado, em todo o planeta, por alguns milhares de habitantes (essa era toda a população planetária), vivia em perfeita integração e harmonia com a natureza, poder-se-ia dizer até mesmo que faziam mais que isso, que o povo era a própria natureza, assim como o são as plantas e os animais. Aloncier, no entanto, desejava conhecer a origem de sua espécie, de onde e como teriam vindo, o que havia ocorrido em seu planeta antes de seu nascimento, antes do surgimento da sua luminosa humanidade. Como seria seu planeta há milhões de anos atrás? Que seres teriam anteriormente existido? Isso tudo seria revelado integralmente no dia seguinte, e Aloncier aguardava em júbilo o decisivo instante....
E refletindo em todas essas coisas e contemplando em êxtase o fulgurante horizonte, Aloncier chorou, e suas lágrimas caíram na grama, e da grama passaram ao solo... E uma de suas lágrimas, a última que havia chorado, lágrimas que eram formadas por uma substância bem mais penetrante que as que conhecemos, foi muito longe terra adentro. Até que uma das moléculas dessa lágrima, penetrando incrivelmente no chão absorvente daquele planeta, entrou em contato com uma outra molécula que ali jazia há muitos milênios. A molécula da lagrima de Aloncier tocara uma outra molécula, que fora, em um tempo muito remoto, de uma estátua, qual seja, a estátua do “Laçador” da cidade de Porto Alegre.
04 novembro 2007
Ao Alto
dá-me tua alma
e tua bela mão etérea
vamos às alturas aéreas
pairar sobre as auras claras
do teu sono em sombra e sonho
sair à noite como aves
aves alvas sobre os mares
com tuas fadas em alta lua
a valsar por sobre as árvores
como silfos aos luares
mais ao alto com o vento
vento astral de branca estrela
a banhar tua face pálida
em teus lábios voam arcanjos
celestiais na luz dos raios
vamos!
aos largos astros do universo
com as asas
com as asas destes versos
e tua bela mão etérea
vamos às alturas aéreas
pairar sobre as auras claras
do teu sono em sombra e sonho
sair à noite como aves
aves alvas sobre os mares
com tuas fadas em alta lua
a valsar por sobre as árvores
como silfos aos luares
mais ao alto com o vento
vento astral de branca estrela
a banhar tua face pálida
em teus lábios voam arcanjos
celestiais na luz dos raios
vamos!
aos largos astros do universo
com as asas
com as asas destes versos
29 outubro 2007
24 outubro 2007
Soneto de Um Maldito
Ninguém vê a lava que me mata o sangue,
ninguém vê as asas que me encobre um corvo,
nem no lábio o beijo de um anjo torvo,
nem a cruz de erros de meu corpo langue...
Minha fada morre em um lago exangue,
minha estrela urra por um céu que é torto,
nos pulsos sinto um sonho grande e morto,
como querer que meu sangrar se estanque?
Sinto a tristeza de tudo que vejo,
trago em meus ombros um grave prejuízo,
das trevas do céu me caem os desejos...
Meus olhos te deixam escuros avisos,
horrores sussurram em todos meus beijos,
e chora um inferno em cada sorriso.
ninguém vê as asas que me encobre um corvo,
nem no lábio o beijo de um anjo torvo,
nem a cruz de erros de meu corpo langue...
Minha fada morre em um lago exangue,
minha estrela urra por um céu que é torto,
nos pulsos sinto um sonho grande e morto,
como querer que meu sangrar se estanque?
Sinto a tristeza de tudo que vejo,
trago em meus ombros um grave prejuízo,
das trevas do céu me caem os desejos...
Meus olhos te deixam escuros avisos,
horrores sussurram em todos meus beijos,
e chora um inferno em cada sorriso.
04 outubro 2007
A Noite Sobre as Casas
Eu retornava tranqüilo para minha casa sob aquela esplêndida noite de inverno, contemplando em elevada inspiração o esplendor constelado da abóboda celeste possuída pelas trevas santas do infinito. Como era bela, sugestiva e inquietante a visão microcósmica da infinitude do universo proporcionada pela soturna serenidade da madrugada. Que espetáculo aos espíritos sensíveis e mergulhados no mistério inefável do cosmos, com a insatisfação típica daqueles seres fartos da vida vulgar do cotidiano.
Tal era meu estado emocional, quando cheguei à frente de minha casa e avistei, sentado sobre a calçada da rua, Gustav, o meu gato de estimação. Percebi que o negro felino fitava com seus imensos olhos amarelo-esverdeados, com negras pupilas dilatadas, o espaço vazio acima dele. Aproximei-me, agachei-me ao lado do animal e tentei identificar o que é que ele olhava tão fixamente. Confesso que por mais que insistisse, não consegui perceber absolutamente nada. Não obstante, Gustav permanecia olhando acima, como que para o céu, aparentemente direcionando sua visão para algum ponto sobre a residência de um de meus vizinhos. Em seguida, passou a girar seu pescoço rapidamente de um lado para outro, dando a entender que acompanhava algum movimento oculto e frenético. Seria algum inseto, algum morcego, alguma ave noturna que meus olhos humanos não conseguiam discernir por entre a escuridão?
Fixei intensamente minha visão, tentando obter o máximo de concordância com a direção do olhar do gato, mas prosseguia sem perceber nenhum tipo de movimentação na densa atmosfera da noite. Talvez o leitor considere muito esquisita essa minha insistência em desejar saber o que o gato olhava, porém, se soubesse e entendesse o meu estranho caráter, bem como meu estado de espírito naquele instante, a minha doentia fascinação por tudo o que é misterioso e desconhecido, mudaria rapidamente de opinião.
Estava, portanto, decidido a perceber, a ver a mesma coisa que Gustav. Este, de repente, levantou-se e disparou para o fundo do pátio de minha casa. Fui atrás do bichano. Lá, ele novamente sentou-se e manteve sua fixação em algum ponto sobre o telhado dos vizinhos do lado esquerdo. Sentei-me ao seu lado e também direcionei meu olhar ao aparente vazio em questão. No princípio, nada divisei, porém, conforme os minutos passavam, fui entrando lentamente em uma espécie de letargia, mantendo, no entanto, minha consciência direcionada ao espaço noturno sobre a casa dos vizinhos. Minha concentração intensificava-se mais e mais, a um nível aterrador eu diria, a um nível de suprema perturbação psíquica... Iniciei a ser invadido por uma sensação de aflita expectativa, por um inexplicável medo do desconhecido, todavia, era uma sensação deleitosa ao mesmo tempo, ou seja, sentir medo causava um imenso prazer em minhas emoções anormais.
Enquanto permanecia naquele estranho estado, acompanhado por meu amigo gato, em uma terrível concentração, percebi que as trevas noturnas sobre a casa dos vizinhos começavam a apresentar certas luminosidades como raios que tenuemente desciam e subiam aos céus. Aos poucos, aumentou o diâmetro daqueles raios, formando então algo como colunas de uma luz esbranquiçada e cintilante que se intensificava cada vez mais. Acredito que estava visualizando um intercâmbio de determinado tipo de energia espiritual entre a casa, ou entre os moradores dela, e certa região ou dimensão ignota do cosmos. Em seguida, ao lado das fosforescentes colunas de luz, vislumbrei o canhestro surgimento de vórtices igualmente luminosos, redemoinhos energéticos que cresciam em vários pontos da escuridão da noite sobre aquela residência, até atingir a circunferência aproximada de uma bola de futebol. Logo, naqueles vórtices, identifiquei uma espécie de claridade diversa, de pequenas descargas elétricas que os atravessavam incessantemente, como algum campo energético.
Para meu maior assombro, verifiquei que as colunas luminosas e os vórtices elétricos também principiaram a surgir na noite sobre outras casas das imediações, inclusive na minha. Em menos de uma hora, creio, em uma noção puramente psicológica, eu contemplava extático uma constelação, não de estrelas, mas de enigmáticos redemoinhos de uma eletricidade perturbadora e de um sem-número de colunas etéreas que subiam e desciam em uma estarrecedora e incompreensível comunicação cósmica.
Entretanto, poderia ainda dizer que sentia real prazer em contemplar aquela mirífica visão, o que iniciou a deixar de ocorrer, quando vi alguma coisa, ou algumas coisas, saírem de dentro das casas, pelo telhado. Eram almas, creio eu, as almas dos meus vizinhos adormecidos. Vi seus espectros, idênticos aos físicos, flutuarem na noite, ligados, acredito, pelo famoso Cordão de Prata, que se alongava em infinita elasticidade etérea, pois vi uma fantástica linha branca e brilhante conectada aos espíritos de meus vizinhos.
Logo, após saírem das residências, algumas almas desapareceram nas colunas de luz, e outras penetraram em alguns daqueles vórtices assombrosos, igualmente desaparecendo. Outras almas ainda, a maioria delas aliás, desciam no escuro da noite. Olhando com mais atenção, identifiquei abaixo, próximo ao solo, uma outra categoria de redemoinhos elétricos, com descargas de uma eletricidade de um rubro-amarelo mórbido, lugubremente doentia. Nesses sinistros vórtices penetrou a maioria dos espíritos que eu havia avistado. Aflito pela maligna sensação que aqueles vórtices de luz sangüínea tinham-me suscitado, refletia no destino que aquelas almas poderiam ter tomado.
Meu singular assombro tornava-se mais denso a cada minuto que transcorria, e creio ter chegado ao ápice quando vi aquele ser negro sair de dentro de um dos vórtices bem acima da casa de meus vizinhos do lado esquerdo. Não era, no entanto, um dos vórtices sanguinolentos, mas um dos luminosos de correntes elétricas fosforescentes. O ser que dele surgiu assemelhava-se a um anjo, a um anjo sombrio porém, possuindo imensas asas negras e ameaçadoras. Seu rosto, de traços belos e graves, esbranquiçado e com grandes olhos negros, tinha algo de feminino e de melancólico, transmitindo uma profunda e triste serenidade, uma impassibilidade inalterável que assustava e suscitava um profundo respeito. Havia algo de implacável, de inexorável naqueles fundos e gélidos olhos... O ser pairou pela noite adejando suas longas e arrepiantes asas. Trazia em sua mão direita um instrumento que não pude identificar. Em seguida, atravessando etereamente o telhado da casa dos vizinhos, desapareceu, entrando em alguma peça da residência.
Instantes depois, o sombrio ser reapareceu nos ares noturnos, agora acompanhado por alguma alma. Percebi que esta era a senhora Valquíria, mãe de meu vizinho, uma senhora já idosa e que há vários meses sofria de uma incurável enfermidade. Fixando ainda mais minha atenção, verifiquei que a senhora não apresentava o Cordão de Prata como os outros espíritos que vira. Concluí, portanto, que estava morta. Então pude identificar o objeto que o anjo negro portava: era uma foice. Aquele ser sombrio era a Morte. Ambos entraram em um dos vórtices fosforescentes e desapareceram de minha visão.
Depois disso, um verdadeiro medo apossou-se de meu coração. Por instantes, ainda mais uma vez, refleti sobre qual seria o destino de todas aquelas almas que penetravam ou nos vórtices luminosos ou nos redemoinhos sanguinolentos, ou ainda nas colunas de luz que ascendiam e desciam irrefreavelmente entre o céu e a terra.
Foi nesse momento que pressenti algo de estranho, ainda mais estranho, ao meu redor... algo como uma presença muito próxima... Mas uma presença profundamente consoladora e reconfortante, irradiante de um sentimento... maternal! O medo que de mim se apossara foi gradativamente se dispersando, mas não ousava olhar para o lado, estando certo que ao fazê-lo enxergaria algo absolutamente insólito... Foi então que uma terna e delicada voz celestial soou suave em meus ouvidos, dizendo:
- Por que, meu filho, tens medo de olhar para tua Mãe, não tua mãe física, mas a Mãe da tua Alma, que está e estará eternamente contigo? Tenho infinidades de maravilhas para dizer-te e mostrar-te, mas, por enquanto, deixo somente esta verdade, que sei que saberás compreender além da mente: não esqueces que um dia deverás morrer.
Nisso, a voz calou-se, e senti que a feminina e carinhosa presença desapareceu, não sem antes deixar-me em um profundo estado de paz e serenidade que jamais olvidei... E assim, abandonei o estado letárgico, voltando à vigília convencional. Não mais divisava nem vórtices nem colunas luminosas. Gustav já não estava o meu lado. Fui, então, deitar-me. Adormeci refletindo e sonhando com aquele ser maternal e com as coisas que ela teria a mostrar-me... compreendendo sua mensagem... deveria ir até Ela... E quantos segredos e mistérios, naquele preciso instante, pululavam na noite sobre as casas de todo o planeta...
Tal era meu estado emocional, quando cheguei à frente de minha casa e avistei, sentado sobre a calçada da rua, Gustav, o meu gato de estimação. Percebi que o negro felino fitava com seus imensos olhos amarelo-esverdeados, com negras pupilas dilatadas, o espaço vazio acima dele. Aproximei-me, agachei-me ao lado do animal e tentei identificar o que é que ele olhava tão fixamente. Confesso que por mais que insistisse, não consegui perceber absolutamente nada. Não obstante, Gustav permanecia olhando acima, como que para o céu, aparentemente direcionando sua visão para algum ponto sobre a residência de um de meus vizinhos. Em seguida, passou a girar seu pescoço rapidamente de um lado para outro, dando a entender que acompanhava algum movimento oculto e frenético. Seria algum inseto, algum morcego, alguma ave noturna que meus olhos humanos não conseguiam discernir por entre a escuridão?
Fixei intensamente minha visão, tentando obter o máximo de concordância com a direção do olhar do gato, mas prosseguia sem perceber nenhum tipo de movimentação na densa atmosfera da noite. Talvez o leitor considere muito esquisita essa minha insistência em desejar saber o que o gato olhava, porém, se soubesse e entendesse o meu estranho caráter, bem como meu estado de espírito naquele instante, a minha doentia fascinação por tudo o que é misterioso e desconhecido, mudaria rapidamente de opinião.
Estava, portanto, decidido a perceber, a ver a mesma coisa que Gustav. Este, de repente, levantou-se e disparou para o fundo do pátio de minha casa. Fui atrás do bichano. Lá, ele novamente sentou-se e manteve sua fixação em algum ponto sobre o telhado dos vizinhos do lado esquerdo. Sentei-me ao seu lado e também direcionei meu olhar ao aparente vazio em questão. No princípio, nada divisei, porém, conforme os minutos passavam, fui entrando lentamente em uma espécie de letargia, mantendo, no entanto, minha consciência direcionada ao espaço noturno sobre a casa dos vizinhos. Minha concentração intensificava-se mais e mais, a um nível aterrador eu diria, a um nível de suprema perturbação psíquica... Iniciei a ser invadido por uma sensação de aflita expectativa, por um inexplicável medo do desconhecido, todavia, era uma sensação deleitosa ao mesmo tempo, ou seja, sentir medo causava um imenso prazer em minhas emoções anormais.
Enquanto permanecia naquele estranho estado, acompanhado por meu amigo gato, em uma terrível concentração, percebi que as trevas noturnas sobre a casa dos vizinhos começavam a apresentar certas luminosidades como raios que tenuemente desciam e subiam aos céus. Aos poucos, aumentou o diâmetro daqueles raios, formando então algo como colunas de uma luz esbranquiçada e cintilante que se intensificava cada vez mais. Acredito que estava visualizando um intercâmbio de determinado tipo de energia espiritual entre a casa, ou entre os moradores dela, e certa região ou dimensão ignota do cosmos. Em seguida, ao lado das fosforescentes colunas de luz, vislumbrei o canhestro surgimento de vórtices igualmente luminosos, redemoinhos energéticos que cresciam em vários pontos da escuridão da noite sobre aquela residência, até atingir a circunferência aproximada de uma bola de futebol. Logo, naqueles vórtices, identifiquei uma espécie de claridade diversa, de pequenas descargas elétricas que os atravessavam incessantemente, como algum campo energético.
Para meu maior assombro, verifiquei que as colunas luminosas e os vórtices elétricos também principiaram a surgir na noite sobre outras casas das imediações, inclusive na minha. Em menos de uma hora, creio, em uma noção puramente psicológica, eu contemplava extático uma constelação, não de estrelas, mas de enigmáticos redemoinhos de uma eletricidade perturbadora e de um sem-número de colunas etéreas que subiam e desciam em uma estarrecedora e incompreensível comunicação cósmica.
Entretanto, poderia ainda dizer que sentia real prazer em contemplar aquela mirífica visão, o que iniciou a deixar de ocorrer, quando vi alguma coisa, ou algumas coisas, saírem de dentro das casas, pelo telhado. Eram almas, creio eu, as almas dos meus vizinhos adormecidos. Vi seus espectros, idênticos aos físicos, flutuarem na noite, ligados, acredito, pelo famoso Cordão de Prata, que se alongava em infinita elasticidade etérea, pois vi uma fantástica linha branca e brilhante conectada aos espíritos de meus vizinhos.
Logo, após saírem das residências, algumas almas desapareceram nas colunas de luz, e outras penetraram em alguns daqueles vórtices assombrosos, igualmente desaparecendo. Outras almas ainda, a maioria delas aliás, desciam no escuro da noite. Olhando com mais atenção, identifiquei abaixo, próximo ao solo, uma outra categoria de redemoinhos elétricos, com descargas de uma eletricidade de um rubro-amarelo mórbido, lugubremente doentia. Nesses sinistros vórtices penetrou a maioria dos espíritos que eu havia avistado. Aflito pela maligna sensação que aqueles vórtices de luz sangüínea tinham-me suscitado, refletia no destino que aquelas almas poderiam ter tomado.
Meu singular assombro tornava-se mais denso a cada minuto que transcorria, e creio ter chegado ao ápice quando vi aquele ser negro sair de dentro de um dos vórtices bem acima da casa de meus vizinhos do lado esquerdo. Não era, no entanto, um dos vórtices sanguinolentos, mas um dos luminosos de correntes elétricas fosforescentes. O ser que dele surgiu assemelhava-se a um anjo, a um anjo sombrio porém, possuindo imensas asas negras e ameaçadoras. Seu rosto, de traços belos e graves, esbranquiçado e com grandes olhos negros, tinha algo de feminino e de melancólico, transmitindo uma profunda e triste serenidade, uma impassibilidade inalterável que assustava e suscitava um profundo respeito. Havia algo de implacável, de inexorável naqueles fundos e gélidos olhos... O ser pairou pela noite adejando suas longas e arrepiantes asas. Trazia em sua mão direita um instrumento que não pude identificar. Em seguida, atravessando etereamente o telhado da casa dos vizinhos, desapareceu, entrando em alguma peça da residência.
Instantes depois, o sombrio ser reapareceu nos ares noturnos, agora acompanhado por alguma alma. Percebi que esta era a senhora Valquíria, mãe de meu vizinho, uma senhora já idosa e que há vários meses sofria de uma incurável enfermidade. Fixando ainda mais minha atenção, verifiquei que a senhora não apresentava o Cordão de Prata como os outros espíritos que vira. Concluí, portanto, que estava morta. Então pude identificar o objeto que o anjo negro portava: era uma foice. Aquele ser sombrio era a Morte. Ambos entraram em um dos vórtices fosforescentes e desapareceram de minha visão.
Depois disso, um verdadeiro medo apossou-se de meu coração. Por instantes, ainda mais uma vez, refleti sobre qual seria o destino de todas aquelas almas que penetravam ou nos vórtices luminosos ou nos redemoinhos sanguinolentos, ou ainda nas colunas de luz que ascendiam e desciam irrefreavelmente entre o céu e a terra.
Foi nesse momento que pressenti algo de estranho, ainda mais estranho, ao meu redor... algo como uma presença muito próxima... Mas uma presença profundamente consoladora e reconfortante, irradiante de um sentimento... maternal! O medo que de mim se apossara foi gradativamente se dispersando, mas não ousava olhar para o lado, estando certo que ao fazê-lo enxergaria algo absolutamente insólito... Foi então que uma terna e delicada voz celestial soou suave em meus ouvidos, dizendo:
- Por que, meu filho, tens medo de olhar para tua Mãe, não tua mãe física, mas a Mãe da tua Alma, que está e estará eternamente contigo? Tenho infinidades de maravilhas para dizer-te e mostrar-te, mas, por enquanto, deixo somente esta verdade, que sei que saberás compreender além da mente: não esqueces que um dia deverás morrer.
Nisso, a voz calou-se, e senti que a feminina e carinhosa presença desapareceu, não sem antes deixar-me em um profundo estado de paz e serenidade que jamais olvidei... E assim, abandonei o estado letárgico, voltando à vigília convencional. Não mais divisava nem vórtices nem colunas luminosas. Gustav já não estava o meu lado. Fui, então, deitar-me. Adormeci refletindo e sonhando com aquele ser maternal e com as coisas que ela teria a mostrar-me... compreendendo sua mensagem... deveria ir até Ela... E quantos segredos e mistérios, naquele preciso instante, pululavam na noite sobre as casas de todo o planeta...
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