27 fevereiro 2011

Adeus a Scliar

Faleceu hoje, vitimado por falência múltipla dos órgãos, causada por sua vez por um AVC, uma infecção respiratória e um tumor no intestino, um dos maiores escritores gaúchos (e brasileiros) da atualidade: Moacyr Scliar (1937-2011). 

Não posso dizer que sou propriamente um fã de Scliar, mas aprecio sua literatura e reconheço seu imenso valor.  Obras como O Centauro no Jardim e O Exército de Um Homem Só encontram-se entre as melhores páginas de prosa escritas no Brasil. Sem falar nos seus contos, vários de nível universal e que já estão imortalizados em nossa literatura.

Deixo aqui o final de seu genial conto Estado de Coma: "Não consegue levantar-se. Pega os cabelos dele com as mãos trêmulas, leva-os ao rosto. Filho, murmura, vou para o céu, vou pedir por ti... Morre. Não fosse isto - a morte - teria visto Jorge Henrique abrir os olhos, sorrir, espreguiçar-se, dizer numa vozinha fraca de nenê: ai, gente dormi um bocado."

26 fevereiro 2011

Balzac Contra os Jornais -"Um jornal não é feito para esclarecer, mas para lisonjear as opiniões."

O gênio da literatura francesa Honoré de Balzac (1799-1850) dispensa apresentações.  É um dos maiores romancistas de todos os tempos e realizou em sua obra uma profunda e coerente união entre o romantismo e o realismo, sendo um precursor da escola realista. Escreveu quase uma centena de romances. Não conheço todos, mas entre os vários que li destaco como melhor, na minha opinião, o magnífico Ilusões Perdidas. Trata-se de uma obra monumental em todos os sentidos (a edição que possuo tem quase 700 páginas). 

Pois nesse romance, entre outros temas, Balzac realiza uma profunda e devastadora crítica da mídia da época, particularmente dos jornais e seus jornalistas, mídia que se encontrava em definitiva ascensão.  Crítica perfeitamente válida para nossos dias. O próprio jornalista Juremir Machado da Silva em sua coluna no jornal Correio do Povo afirmou, há alguns meses,  que Ilusões Perdidas é a "bíblia da crítica de mídia" e aconselhou todos os estudantes de jornalismo a estudarem a obra de Balzac. Eu aconselho o mesmo. 

Nesse livro, o romancista francês acusa de forma direta, sustentada e impiedosa a mídia jornalística de assassinar os verdadeiros talentos, de tentar impedir o desenvolvimento da genialidade, de manipular os interesses da sociedade para disseminar suas ideias egoístas, de entronizar tudo o que é medíocre, de fazer procriar a hipocrisia e a vaidade, enfim... a verdade é que Balzac odiava os jornalistas. Certamente, deve haver jornalistas bons e maus. Em Ilusões Perdidas, o estudante de jornalismo aprenderá a não ser um dos maus profissionais. Estou certo que a maioria dos jornalistas brasileiros não leu essa obra. A seguir , alguns dos trechos do livro a respeito do jornalismo:

"O jornal, em vez de ser um sacerdócio, tornou-se um meio para os partidos, e de um meio passou a ser um negócio. Não tem fé nem lei. (...) Um jornal não é feito para esclarecer, mas para lisonjear as opiniões. Desse modo, todos os jornais serão, dentro de algum tempo, covardes, hipócritas, infames, mentirosos, assassinos. Matarão as ideias, os sistemas, os homens, e, por isso mesmo, hão de tornar-se florescentes."

"O jornal pode permirtir-se o procedimento mais atroz, ninguém se julga pessoalmente conspurcado com isso. (...) Assim, digamos que o rei faça o bem. Se o jornal for contra ele, tera sido o ministro quem fez tudo, e reciprocamente. Se o jornal inventa uma calúnia infame, foi alguém que lhe sussurrou. (...) E pode, ao fim de algum tempo, fazer acreditar tudo o que quiser às pessoas que o leem todos os dias. Depois, nada que o desgoste será patriótico, e ele não errará jamais. (...) O jornal, governado pelos medíocres, servirá o próprio pai cru, sem mais tempero que o sal de seus gracejos, de preferência a deixar de interessar ou divertir seu público."

E isso é só um minúsculo exemplo do que há no livro. Se relacionarmos tais palavras não só com os jornais propriamente ditos, mas também com as revistas e com as redes de televisão dos dias de hoje não temos aqui a verdade nua e crua? É, o tempo mudou. Essa é a evolução...

24 fevereiro 2011

Imperceptível

cai lento em sentimento sobre os olhos
óleos do sono imenso e leva embora
ao fecho da hora em véu sanguinolento
olhos do sonho tenso em larga espera
cai como sangue à hora dos avisos
sons de aviso em imensos que tu sentes
cai lento com o sonho impercebido
sangue do que espera entre a hora calma
óleo do sono denso que te tensa
olho que fecha e o sino não percebe
tudo que vem com véu e sangra embora
prenúncio que se vai no que se sina
sono lento que cai no que é humano...

(Nas imagem, o quadro "O Pesadelo", de Füssli)

23 fevereiro 2011

"Eu acredito ter visto o próprio Deus..." Händel

Georg Friedrich Händel (ou Haendel), ou ainda Handel, em sua versão inglesa, nasceu em Halle, Alemanha, em 23 de fevereiro de 1685. Hoje, portanto, o mundo comemora os 326 anos deste que é um dos maiores gênios da música de todos os tempos. Juntamente com Johann Sebastian Bach, Händel é um dos maiores nomes da música barroca, cuja influência foi decisiva para os compositores dos períodos posteriores, principalmente para o Classicismo e para o Romantismo.

Apesar de ter nascido na Alemanha, em 1713, com 28 anos, Händel muda-se para a Inglaterra, onde viveu o resto de sua vida, adotando, inclusive, a nacionalidade inglesa, em 1726. E foi na Inglaterra que desenvolveu a plenitude de seu gênio, criando obras imortais que ainda hoje nos emocionam profundamente. Mesmo não tendo sangue inglês, pelo fato de ter se naturalizado como tal é considerado o maior compositor inglês de todos os tempos. Foi considerado o compositor oficial da corte inglesa.

Sua fama, na Inglaterra, cresceu a níveis estratosféricos, fazendo jus à sua vasta genialidade, à sua inteligência penetrante e à integridade de sua vida.  O que não impediu que Händel enfrentasse uma série de problemas, como endividamentos frequentes, fracassos de algumas obras importantes, a oposição de inimigos e alguns sérios problemas de saúde, como a cegueira, que o vitimou em seus últimos anos. 

Se Bach foi o maior compositor abstracionista do Barroco, Händel pode ser considerado como o mais teatral do período. O seu domínio da teatralidade na música era espantoso, tanto que foi um dos maiores compositores de óperas da época. Marcada pelo perfeccionismo, pela intensa beleza estética e pela ousadia emocional, sua obra  é vastíssima. Händel legou-nos uma imensidade de óperas e oratórios, odes, cantatas, concertos grossos, concertos para instrumentos solos, sonatas, as famosas "Música Aquática" e "Música para os Reais Fogos de Artifício", suítes, árias etc. No entanto, foi nos oratórios que sua genialidade atingiu um nível nunca igualado. 

É possível que algum leitor não tenha um conhecimento sobre Händel, no entanto, todos já ouviram alguma vez o seu assombroso "Aleluia", música famosíssima, incluída em seu supremo oratório O Messias. Trata-se do maior oratório da história, obra fundamental dentro da música erudita, capaz de emocionar até mesmo os céticos com relação a Deus ( e eu tenho provas disso). Se Händel tivesse composto somente essa obra, já poderia ser considerado um gênio. Logo após finalizar a composição de O Messias, o compositor escreveu: "Eu acredito ter visto o Céu diante de mim e o próprio Deus sentado em seu trono, na companhia dos Anjos". 

Esgotado, doente e na solidão, apesar de toda sua fama, Händel faleceu em 1759, aos 74 anos de idade. Beethoven afirmou sobre o compositor de O Messias: "Händel é o maior compositor que já viveu. Eu cairia com a cabeça e os joelhos em seu túmulo." E Haydn disse o seguinte: "Ele é o mestre de todos nós.".

Para finalizar, deixo abaixo um pequeno poema em homenagem a Händel, certamente indigno de toda sua grandeza:

O Teu Nome

Haendel
Händel
Handel
não importa...
o que importa
é que o teu nome
deveria ser também
uma palavra oxítona
para que rimasse
com a imensidão
do Céu...


(Lembro que em alemão céu escreve-se Himmel, palavra paroxítona, como Händel. Rimam, portanto.)

21 fevereiro 2011

O Triunfo das Pragas

bombom deixado sobre  a mesa
cujo recheio foi comido por carunchos...

panela abandonada no fogão
cuja carne infestaram verdes moscas...

livro pelo canto de uma estante
cujas páginas as traças já roeram...

banheira ocultada em escuro quarto
em cujas águas só os ratos se refrescam...

armário esquecido na cozinha
onde dentro as baratas fazem festa...

eis o coração humano.

(Na imagem, detalhe do lado direito do quadro "O Jardim das Delícias", de Hieronymus Bosch.)


18 fevereiro 2011

Uma Pergunta... (baseado em versos de E.A.Poe)

O que vejo, o que sou e suponho
não é mais do que um sonho num sonho.”


quem garante
que tudo não é sonho
e que o real é isso
que se diz que é?
há lagos em que o fundo
nunca alcança a existência de nosso pé...
o que existe existe
ou existe porque eu penso que existe?
dependendo de como se vê
a flor pode ser alegre
ou pode ser triste...

e quem me dirá que pensar é saber
se sempre quando penso
há outro que pensa por mim?...
se eu pensasse certo
sobreviveria no nada do deserto?
só se sente o sonho
quando o sonho chega ao fim...
e ainda quando sinto
não domino o que vem-me a sentir
e o vinho só é tinto
porque os meus olhos o percebem assim...

aceitar as coisas como são
é aceitar o quê?
o que é ser como é
se quando sou nunca é meu ser
e no meu eu há vários
que não eu?...
o que sinto e vejo
é algo que corre em todos
ou é só um desejo meu...?

e isto é um verso
ou é só uma rima esgotada
perdida
em um sonho do universo?...

(Na imagem, o quadro "O Sonho do Pastor", de Füslli)

16 fevereiro 2011

Tudo é Ilusão

pé por pé
como sinal que avança
no dia a dia
e passo a passo
como mal vasto
que em grão em grão
aflige o homem
de sol a sol
olho por olho
o tempo traga
dente por dente
caindo aos poucos
ao lusco-fusco
em um a um
quando se vê
é fogo-fátuo
como o do fósforo
que pouco a pouco
avança ao dedo
na escuridão
deixando só...
da cinza à cinza
do pó ao pó

15 fevereiro 2011

Deputado Aldo Rebelo é Comprado pelo Agronegócio

Já deixei aqui no blog várias postagens sobre a imensa e trágica enganação que é este novo Código Florestal Brasileiro de autoria do deputado Aldo Rebelo, cuja real intenção é permitir o avanço desmedido do agronegócio, ou seja, do lucro sem escrúpulos, sobre o nosso já exaurido meio-ambiente. E mascara-se tal funesta intenção sob a conversa fiada de "desenvolvimento sustentável". Esta é uma das postagens em que trato do assunto: http://artedofim.blogspot.com/2010/04/deputado-aldo-rebelo-quer-desmatar.html

Agora, sobre esse vergonhoso Código Florestal há um excelente texto no blog do conterrâneo Júlio Garcia - http://jcsgarcia.blogspot.com/. Irei apenas transcrever os trechos que julgo mais significativos.


Denúncia: 'Agronegócio' apoiou campanha de Aldo Rebelo

"Setores interessados em flexibilizar o Código Florestal financiaram a campanha de 11 dos 13 deputados que votaram a favor do relatório de Aldo Rebelo (PCdoB-SP), aprovado em 6 de julho por comissão especial da Câmara.

O próprio Rebelo foi um dos beneficiários ao receber neste ano verbas de empresas ligadas ao campo.

Só de cooperativas de produtores de café, cana e laranja, Rebelo recebeu R$ 130 mil. O comitê financeiro de seu partido também recebeu doações de cooperativas do setor, além de R$ 70 mil da Bunge Fertilizantes, mesma quantia doada a deputados ruralistas que integraram a comissão especial.

Os cafeicultores têm interesse direto na alteração da lei sobre florestas. Grande parte do café plantado no sul de Minas e no Paraná está em encostas, áreas de preservação permanente (APPs).

Se o código fosse cumprido à risca, como determina o decreto de 2008 que o regulamentou, a maior parte do café estaria ilegal, e os produtores, sujeitos a multa. O parecer de Rebelo tira encostas e topos de morro da categoria de APP e anistia de multa os desmates até julho de 2008.

A Cooperativa dos Cafeicultores de Guaxupé (MG), porém, sabe muito bem por que doou R$ 50 mil para a campanha do deputado. Foi “justamente” por causa do parecer, disse o seu presidente, Carlos Paulino da Costa.  “CERTAS ONGS” - “Havia uma campanha de certas ONGs que queriam impedir a eleição dele. Como o Código Florestal defende os nosso interesses, era hora de fazermos o contra-ataque.”

A Bunge também estreou como doadora do PCdoB.

A multinacional nega que tenha sido motivada pelo projeto do código. “As contribuições são baseadas em posturas amplas de busca permanente da promoção do desenvolvimento sustentável”, afirmou am nota.

Luis Carlos Heinze (PP-RS), Paulo Piau (PMDB-MG), Homero Pereira (PR-MT), Reinhold Stephanes (PMDB-PR) e Duarte Nogueira (PSDB-SP) não condicionam as doações à atuação na comissão. Dizem receber tradicionalmente doações do agronegócio por terem uma atuação ligada à agricultura."

Desnecessário o meu comentário, o texto fala por si. Limito-me a lembrar que o Rebelo é um "comunista" financiado pelo capitalismo. Essa é a política. Para finalizar, deixo o poema abaixo, já publicado aqui no blog e feito em homenagem ao novo Código Florestal:

Como se Eu não Soubesse... 

como se houvesse tempo
estão lá com sede de progresso
como se evoluíssem
ceifando paraísos
para semear infernos
como se fossem eternos
como se fossem espertos
em transformar os campos
em desertos
como se não bastasse...

contando como se fosse
para matar a fome
como se dessa forma
distribuíssem renda
como se fosse em nome
do que fosse justo
como seu eu acreditasse
e como se a Terra
aguentasse

como se não fosse
para colher ganâncias
como se fossem heróis
e não tivessem ânsias
de se enriquecer à custa
do que tenha vida...
como se não houvesse morte

como se tivessem pena
do que canta e voa
do que sente e corre
como se tudo o que tenha vida
fosse só nada quando se morre
como se não viesse a volta
como se não tivesse preço
e como se não viesse o Tempo
bater em nosso endereço...

fazem tudo
como se o tudo fosse só assim
e como se não houvesse o Fim.

14 fevereiro 2011

A Humanidade e uma afirmação de Juremir Machado da Silva

O jornalista e escritor Juremir Machado da Silva, em sua coluna no jornal Correio do Povo, de ontem, dia 13/02, escreve o seguinte:

“Toda vez que ouço as sonatas de Beethoven, o que faço com frequência, tenho certeza que a humanidade vale a pena. Desacreditar dela é um clichê tratado com ironia por alguns filósofos deliciosamente rabugentos e com rabugice por algumas pessoas com preguiça de pensar na complexidade do ser.”

Creio ser oportuno deixar algumas considerações aqui no blog sobre a afirmação do escritor. Eu posso concordar ou discordar dela. De que humanidade Juremir fala? Da humanidade no sentido da existência do ser humano na Terra, ou desta humanidade atual como aí está, de nossa atual civilização? Nesta humanidade, da forma como vive o atual ser humano, eu não acredito definitivamente. Mas acredito nas possibilidades humanas. Sejam elas mentais ou espirituais. No Ser que reside em cada ser humano, e quase sempre é por nós mesmos negligenciado.

Alguns pensam, devido a uma leitura desatenta de meus textos, que eu julgo que a humanidade será varrida da face da Terra dentro em breve. Na verdade, o que acredito é que surgirá uma nova humanidade após o fim desta civilização atual. Que está condenada ao fracasso. Não é uma questão de “moda de falar mal dos homens”, ou de “clichês de desacreditar na humanidade”, como afirma o Juremir. Creio que a questão é muito mais complexa. Os homens falam mal dos humanos porque estão percebendo consciente ou inconscientemente que como está não pode continuar. Os fatos estão aí para demonstrar. Não são clichês, são fatos. Tudo isso pulula em nosso inconsciente coletivo. Sabemos de forma velada, não devidamente manifesta, que algo está por terminar, sentimos isso, embora muitas vezes não sabemos ou não queremos deixar esse “sentimento” de forma expressa.

Nada se mantém eternamente. Isso é algo óbvio, mas a mente racional parece não se dar conta e está certa que pode manter todas as coisas pelo tempo que desejar, assim como cada um de nós tem em mente que viverá para sempre, muito embora saibamos que vamos morrer. Temos a ilusão de eternidade física. Há o dia é há a noite. Um sempre regride em favor do outro. Há a evolução e a involução, e nada evolui ou involui para sempre. Acredito que a humanidade está involuindo no atual momento, principalmente no aspecto psíquico-espiritual. Isso não significa que ela vai acabar. A todo fim sucede um princípio. Outros podem pensar que a humanidade está melhorando. Para tal pensamento, o tempo e os fatos se encarregarão de responder. Estamos como aqueles sapos na panela de água fervente, que não percebem a temperatura subindo lentamente, até que são cozinhados.

O ritmo de degradação ambiental é absurdo. O planeta já não está suportando a população humana que nele vive com seus hábitos de vida baseados em um nível de consumo irrefreável e devastador. População que não cessa de crescer e de consumir cada vez mais. É uma questão clara, exata, matemática. Um dia não haverá possibilidades físicas de nos sustentarmos. As nações ricas somente são ricas graças ao consumismo desenfreado de todos em todas as partes do mundo. Aí estão as multinacionais para provar, que ajudam a enriquecer seus países de origem servindo-se de nosso consumismo que não dá sinais reais de que irá regredir. Também não podemos esquecer que muitos dos países ricos conseguiram firmar seu desenvolvimento através, também, do colonialismo dos séculos passados (que ainda não acabou, diga-se de passagem).

Por tais motivos, não creio NESTA humanidade, na forma como está edificada, nas “pedras” em que se assentam suas bases. Mas é claro que acredito no ser humano, eu sou um deles, acredito em mim. Acredito em Beethoven, em Bach, em Goethe, em Da Vinci, em Bosch, em Dante, em Victor Hugo. Acredito principalmente na arte. Ela é, na minha opinião, a melhor criação humana. Somente a arte leva o homem além do homem. É isso do que precisamos. Ir além de nós mesmos. E os artistas são os que melhor percebem a nossa decadência psíquica. Alguns gênios o fizeram com inacreditável antecedência, como é o caso de Bosch, de Poe, de Baudelaire. Os artistas são a antena da humanidade. Eles sabem perfeitamente o que está acontecendo. E o expressam, sem que sejam, no entanto, na maior parte das vezes, devidamente compreendidos. E a maior prova de que o homem involui está na qualidade da arte de nossos dias. Ou daquilo a que se chama “arte”.

Para finalizar, não hesito em deixar esta afirmação: a maior parte da humanidade deverá ser destruída pelas próprias mãos humanas e pelas forças naturais nas próximas décadas.  O universo sempre mantém o seu equilíbrio. Como disse o próprio Juremir, não somos o centro do universo, apenas fazemos parte dele e 
estamos sujeitos às suas leis.

(Na imagem, detalhe do quadro "O Julgamento Final" de Hieronymus Bosch.)

13 fevereiro 2011

"Há Algo de Podre..." (Final)

Lá onde deixei minha espera, sobem as nuvens dos mortos, oscilam por alguns momentos, parecem dançar entre si e com as outras fumaças do céu, do espaço, do invisível, para, finalmente, formarem uma capa de névoa esverdeada e purulenta sob a infinitude impassível da noite. E um sangue começa a gotejar sobre meus cabelos, sobre minha pele, sobre todo o chão diante de mim. Bebo daquele sangue vinagroso para saciar minha sede insaciável. Minha sede e o sangue que a sacia evaporam-se lentamente. O calor é absurdo como todos os absurdos.

            “Ó Lua, Lua triste, amargurada!” onde estás agora que não mais te vejo? Caminho como quem se destina à forca. Mereceria se o fosse. Sou culpado e admito. Mas talvez a névoa que me cerca e cerca a todos não deixa que minha culpa seja percebida. Porém, há outros com mais culpa do que eu comendo belas mariposas sob as árvores ressecadas. 

Direciono meus olhos para todas as casas por onde passo e vejo que delas saem, enlouquecidos, caóticos, vorazes, e num fedor alucinante, bandos e mais bandos de ratos e baratas infeccionados. Suas inflamações evaporam sob aquele calor e espalham-se lugubremente pelo ar carregado de podridões e enfermidades. Os ratos e as baratas saem pelas portas, pelas janelas, pelos telhados, observados atentamente por abutres exaustos no alto das torres carcomidas pelas chuvas ácidas. E o fedor daquelas casas fez-me vomitar o sangue que bebera.

E os abutres arrotam incessantemente, seus abdomens estão medonhamente dilatados. E a névoa dos seus hálitos envolve os olhos de umas bonitas meninas esqueléticas que vejo passar.  Deve haver algum problema, devem sofrer de alguma grave moléstia, pois não conseguem fechar a boca, aquelas mulheres... Sinto agora o mau-cheiro do sangue coagulado de corações extirpados. As pessoas mesmas fazem isso com si próprias às vezes, é algo bastante comum em nossos dias.

Tenho saudade do tempo que as florestas queimavam. Agora não há o que ser queimado. Como seria belo fitar novamente aquelas magníficas ondas e colunas negras de fumaça ascendendo a um céu ainda azul. Mas há os que queimam flores. Rosas, camélias, tulipas, gerânios, violetas, lírios, agora as mulheres carcomidas as queimam sorrindo. É o único perfume possível de ser sentido, a névoa da queima das flores. Lamento que sejam tão passageiras... As flores passam tão rápido. E partem mais rápidas ainda em suas nebulosas de saudade e amor extinto, lá vão elas, cinzentas para os ouvidos dos anjos.

Devo agora descansar um pouco. Sento-me na escadaria de um bar. O fedor é insuportável. Mas já estou acostumado. Sim, agora me resigno ao auge. A fétida névoa miasmática nessas horas finais da noite sempre envolve tudo. Torna-se densa, úmida, pesada, quase pegajosa. Parece que a névoa é exalada até mesmo pelas luzes doentias da cidade agonizando em seu sono suarento. Creio que também sinto sono. E febre.

Enquanto todo o sentimento da humanidade apodrece ao meu redor, a névoa formada pelo sentimento putrefacto compõe, lentamente, a imagem do teu rosto diante dos meus olhos fechados...

(Na imagem, o quadro "Os Comedores de Batatas", de Van Gogh.) 


11 fevereiro 2011

“Há Algo de Podre...” (Parte 1)

Como a música que um dia desceu das esferas inatingíveis, o desastre absoluto da era pós-tudo agora cai sobre mim. A fumaça do meu cigarro forma um halo de santidade ao meu redor. Quatro loucas sem olhos acendem incensos a três passos da minha miséria. Contemplo, resignado há muito, a névoa do cigarro e dos incensos subirem aos céus. Aqueles incensos exalavam um odor nausebundo.

Um vapor sai agora de um orifício no centro do meu peito. E ferve esse vapor, deixando minha carne sanguinolenta. Com ardência nos olhos, consigo debilmente distinguir ao longe a fumaça negra das indústrias partirem como redemoinhos endemoniados para o espaço. Sinto o mau-cheiro com o qual não consigo me adaptar, mesmo após séculos.
 
É necessário que o desenvolvimento nunca cesse. Embora eu sempre tivesse como um de meus lemas nunca dizer nunca. Um rio que diviso a minha esquerda proporciona-me um autêntico show. De suas águas espumantes vapores evanescentes brilham pela escuridão espessa. São névoas roxas, esverdeadas, amareladas, escarlates, algumas vezes prateadas, que bailam como fantasmas acima de suas águas nervosas, tensas, formadas por um visco negro de líquidos seminais, de toda espécie de vísceras liquefeitas, de gangrenas, de corrimentos vaginais, de soros sanguíneos, que unidos naquele horror apodrecem espargindo pela desgraça das atmosferas um mau-cheiro fatal.

A alguma distância de meu desespero há um banhado, ou um pântano, se preferirem. Uma névoa esverdeada se evola aos céus, florescente, bela, intensamente bela, lembra uma aparição fantástica. Mas o seu fedor é insuportável, miasmático. Aproximei-me, mesmo sabendo que vomitaria. Ainda que esteja sem comer nada há dias. Não confio nos alimentos que me dão na escola. Há semanas a escola está envolta em uma névoa fétida. Não sei por que ainda nos educam. Ou melhor, tentam nos educar. Não há nenhum sentido nisso.

Nada mais faz sentido.

Estou agora ao lado do pântano. Cadáveres até onde a vista pode alcançar. De animais e de humanos. Principalmente crianças e velhos. As crianças haviam se suicidado. Os velhos foram trazidos dos asilos e ali jogados. Ainda vivos, mas muito doentes. Não havia motivos para cuidar deles. Perda de tempo, de dinheiro e de diversão. Vomitei. Um líquido seco esbranquiçado. Evaporou-se rapidamente na forma de uma fumaça pestilenta. Os cadáveres apodrecem de forma espetacular. Aquela névoa dos miasmas de sua putrefação é uma das coisas mais lindas que vejo há anos. A névoa imunda, mas bela, parte dos órgãos corrompidos dos cadáveres, como bafos de vermes, ascendem aos céus ameaçadoramente nublados, enevoados como os olhos da morte, e ali formam um espetáculo de cores e vapores sensacional. 

Lágrimas correm agora de meus olhos ao contemplar a beleza do dantesco. Suporto todas aquelas pestilências de um fedor cósmico para ver o nunca visto. Que me resta? Quem me resta?

Amanhã, a parte final
(Na imagem, o quadro "Inferno", de Hieronymus Bosch)

10 fevereiro 2011

Três Rápidas Considerações Meio-Poéticas 5

I
o esquecimento
é da humanidade
o maior mal:
a quem esquece
tudo parece igual

II
agora
qualquer revolução
não tem mais sentido:
é fácil fazer-se revolto
quando já se está vendido

III
dizer-se que um sorriso
é sempre bem-vindo
seduz...
mas para quem vive na seca
a tempestade é que é a luz

08 fevereiro 2011

Um Absurdo

cavar todos os dias
com uma pá
sem descanso
cavar a cada instante
como se fosse adiante
cavar com o pé
o que não é
até  achar diamante
a toda hora
como se fosse embora
cavar pelo pó
com um resto de bota
sem ter espora

cavar cova tão imensa
que seja cratera
e chegue ao outro lado
e à outra era
e arrancar petróleo e ouro
quanto mais cansado
com fôlego de touro
e rubis e esmeraldas
e trazer à luz
envolvidos em grinaldas

e enfim jogar tudo aos porcos
pelos chiqueiros tortos
e partir
sem ter o nome na lista

e como um vulto
que pelo longe some
sublimemente
morrer de fome

(eis a missão do artista)

06 fevereiro 2011

Os Pássaros e um Significado Funesto

Nos últimos anos, tem aumentado de forma significativa o número de pássaros no centro de Santiago. Os santiaguenses perceberam?  São pássaros que na minha infância e adolescência eu nunca vira, ou vira raramente, no centro da cidade. Eu os via apenas no interior do município ou em periferias já no limite urbano. São, por exemplo, bandos de periquitos, de pelinchos, de gralhas, entre outros.

Parece belo, parece bom, não é? Mas desgraçadamente isso é trágico. Tais pássaros típicos de zonas rurais invadindo a zona urbana trazem um significado funesto: o de que estão perdendo o seu habitat. Reflete, logicamente, a destruição de suas matas, a proliferação caótica das lavouras, o desaparecimento progressivo das fontes d'água, a ação dos caçadores. Expulsas de seu meio, as aves estão fugindo da morte, lutando para sobreviver em locais onde ainda podem encontrar alimentos e se refugiar da caça predatória, pois ninguém (ou quase ninguém) caça no centro de uma cidade.

Fala-se muito nos refugiados humanos das alterações climáticas e ambientais, mas ninguém (ou quase ninguém) pensa nos outros refugiados, os animais, tão vítimas (não, são muito mais vítimas) quanto os homens. Mas assim é. Desde que antigos filósofos e cientistas preconizaram e ensinaram à humanidade que a natureza deve ser dominada a todo custo, que "seus segredos devem ser obtidos sob tortura", que ela deve servir submissa aos interesses egóicos do homem, como uma escrava, desde esse dia temos transformado nosso planeta em um inferno. 

Mas a rebelião das forças naturais (que sempre serão indomáveis) que se assoma assustadora a cada dia que passa colocará um ponto final na vã e imbecil prepotência humana...

05 fevereiro 2011

em Minha Amada de Amada

parar de pensar
e não dizer nada com nada
nenhuma alguma a ser entendida
ou entediada

sono o vasto do campo
em minha amada de amada
o campo é o campo
e não se precisa explicá-lo
sente-se mais a dor
do que o significado do calo

por isso é que não me calo
quando ao nada me resta há falar
o que vale é que ao vale a cavalo
e além do que penso
(por isso é que não me canso)
o universo é mais denso
quanto te perco meu senso
entre o incenso e o luar
(a isso é que vago te danço)

versar é no Nada cavá-lo
não quero de verbos modernos
desses de deletar
quero o que se grave e antiga
em todas as eras
e tu que me esperas
nos parassempres do ar...

amar é sempre ter ido:
ser poeta é não fazer sentido

04 fevereiro 2011

Falecimento e Luto

Meu avô, Adão Reiffer, mais conhecido na cidade como "Gringo", faleceu ontem, dia 3/02, às 14h, aos 80 anos de idade, vitimado por graves complicações causadas pela diabete. Era natural de Jaguari, mas passou quase toda sua vida em Santiago.

Sempre admirei meu avô pelo seu inesgotável ânimo para o trabalho e pela sua incrível capacidade de resolver os problemas da vida prática, qualidade esta que não posso a mim atribuir. O "Gringo" era funcionário público, taxista e mecânico nas horas de folga. Realizou, por longo tempo, as três atividades simultaneamente.  Foi também um dos primeiros aviadores de Santiago, sendo sócio-fundador de nosso aeroclube. Por vários anos, foi seu diretor de patrimônio.

Boêmio durante toda sua juventude, e até um pouco depois dela, chegou a ser conhecido, principalmente nos anos 50 e 60, como um dos "reis" da noite santiaguense. E, o que é mais importante, possuía um grande coração sempre disposto a ajudar. A ele deixo meus eternos agradecimentos. O sepultamento será hoje, às 11h. Que esteja agora em paz.
"Requiem aeternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis".

03 fevereiro 2011

Aos Deslumbrados

há que se ter cuidado
com a sede de vida
pois o que está na sede da alma
tem sede maior ainda
sede cauteloso:
não se pode saciar ambas
pelas cordas bambas
como quem come um pêssego
e solta o caroço
pelo poço..

nem tudo é eu posso:
às vezes fica tarde
e noutras – tempestade
e pode (m)olhar sol ou chuva
sobre o jardim...

nem tudo é tão simples assim:
é belo colher a tulipa
e derramar suas pétalas
e se fitar a verde trilha
como se tudo fosse
só maravilha...
mas a vida não é só soprar
e fazer espuma:
por trás do arbusto de flores
se oculta o silêncio
do bote do puma...


01 fevereiro 2011

Miséria

como música que é sem ter que ser
assim me espero no que nada sou
vejo os campos tão amplos dos profundos
lagos meus que nunca foram benditos
porque ao âmago sempre inútil seco
aqueles verdes vagos passam e levam-me
raio de dita tornado tornado
olho amigo para o céu que oceana
todos os sorrisos são como pássaros
fêmina passagem em culpa inevita
tudo é triste abaixo dO que não é
e em quatorze versos não disse nada
não disse porque estou rouco e mais louco
e tudo é tão feio tão vão tão pouco...

30 janeiro 2011

A Palavra vale mais do que o Ato

vou deixar que tu vás
que vás tu palavra
vasta
tu que vales mais
do que o ato
porque sem ti
o ato não seria
porque só o Verbo é que alto
e vasto
o Verbo é que deixa o rasto
o Verbo é que fez o “Faça-se!”
a palavra é que foi o princípio
derramado
do divino cálice

a palavra vale mais do que o ato
porque quem age antes pensa
e quem pensa antes sente
e só a palavra torna isso possível
e presente

quem absorve a palavra
o ato pressente
é ela
que do sonho à mente
e da mente ao fato
torna a vontade
no que existe:
o som é o Verbo
cristalizado
e só ele persiste

e só restará um som desolado
e uma palavra de fúria
quando o Faça-se
for proferido ao inverso

por isso deixo que tu vás
palavra
como aquela
(a ela)
do meu verso

29 janeiro 2011

K626 - Uma Tentativa de Salvar a Humanidade

Anteontem, 27/01/2011, Wolfgang Amadeus Mozart completaria 255 anos. Ma o gênio austríaco viveu pouco: faleceu com 35 anos de idade. Viveu pouco e compôs muito. Para ser exato, compôs 626 obras. K626 refere-se à sua última e maior obra: o Réquiem

Mozart, por ser um compositor do período classicista (aliás, o ponto mais alto do Classicismo musical), onde a razão predominava sobre a emoção, evitava, na maioria de suas obras, uma manifestação muito intensa do sentimento, evitava o "pathos", o sentimento trágico (que seria a marca do movimento posterior, o Romantismo). Porém, em várias de suas composições isso não acontece. Mozart, conhecido por expressar a beleza e o colorido da vida, da natureza,  e uma felicidade angelical, celeste, divina, na maior parte de suas obras, também escreveu páginas de uma profunda dramaticidade, onde a tragédia nos toca intensamente, atingindo o âmago da alma. E essas obras trágicas, sombrias, estão entre as melhores do gênio classicista, tanto que Mozart é considerado, devido a tais composições, como um anunciador do Romantismo.  

Há muito sentimento, uma emoção densa, inquietante, em obras como a sinfonia 40, os concertos para piano 20 e 24, a ópera Don Giovanni, alguns quintetos, quartetos, sonatas para piano, para violino e piano, a Missa K427, entre outras. Agora, nenhuma delas é tão trágica, tão perturbadora e tão comovente como o seu inefável Réquiem.

Trata-se de uma das obras máximas da música universal, o maior dos réquiens, capaz de emocionar até alguém com o coração empedernido. Impossível não se assombrar diante de uma composição de uma magnitude sobrenatural que se assoma em uma apocalíptica majestade. 

Mas o que é um réquiem? É uma missa fúnebre, a representação máxima da cerimônia de despedida. Uma missa para a alma dos mortos. Vejam só que caso curioso, ou talvez uma ironia do destino: Mozart, famoso por suas notas luminosas e cheias de vida, tem como sua maior obra justamente uma obra que trata da morte.  E vejam que curioso também isto: o Réquiem é sua última obra. Mozart morreu antes de finalizá-la. E Mozart não o compôs de livre e espontânea vontade. Alguém poderia pensar: Mozart sabia que iria morrer e quis compor sua própria missa fúnebre. Não, o Réquiem foi um encomenda do Conde Walsegg para a morte de sua esposa. Mas sem saber, talvez apenas pressentindo, Mozart compôs um Réquiem para si mesmo.

Há a lenda de que o emissário do conde que foi até Mozart encomendar a obra seria a própria morte. Isso ocorreu cinco meses antes de seu falecimento. Durante esse período, Mozart não completou o Réquiem. O que é um absurdo para o gênio, que escrevia impressionantemente rápido. Tanto é que nos legou 626 obras em apenas 35 anos de existência. Escrevia óperas inteiras em apenas 15 dias, como no caso de A Clemência de Tito. Porém, depois de 5 meses, Mozart não havia completado o Réquiem. Certamente, ele pressentia que quando finalizasse essa obra, morreria. Não terminou, morreu antes. O que Mozart não conseguiu completar, principalmente os números do Sanctus, do Benedictus e do Agnus Dei (no total, o Réquiem contém 14 números), foi terminado pelo seu discípulo Franz Süssmayr, que não logrou, obviamente, atingir o mesmo nível sobrehumano dos números escritos somente por Mozart.

O Réquiem de Mozart é um profundo mistério, em todos os sentidos. No primeiro número, o Introitus, entramos em um mundo de dor e sofrimento, prenunciado pela respiração ofegante de alguém que agoniza, sentimento transmitido pelos instrumentos de sopro do início. No assombroso Kyrienão sabemos se ali há desespero ou confiança. No Dies Iraeestá a fúria devastadora do Apocalipse, parecemos entrar em um furacão que se debate entre um coro de anjos nem um pouco amistosos. No Tuba Mirum, soa uma terrível trombeta sentenciosa. No Rex Tremendae, somos invadidos por uma angústia em seu último grau. Uma calma divina, porém sombria e impregnada de súplica, tranquiliza-nos no Recordare. Mas o horror retorna impiedoso no Confutatis, que finaliza em um ar sepulcral arrepiante. Em seguida vem a tristeza que nos dilacera do Lacrimosa, onde o Amen final se ergue sobre a humanidade de forma espantosa e desafiadora. O Domine Jesu Christe é de um tumulto onde luzes e sombras rivalizam sem cessar. E no Hostias, após um momento de indescritível sublimidade celestial, que não chega, no entanto, a nos trazer paz, ressurge o trecho Quam olim Abrahae, de um clima de ameaça e de desespero avassalador. Os três números seguintes não foram terminados por Mozart. O último número, o Communio, é, musicalmente, apenas a repetição do final do Introitus unido ao Kyrie.

Com seu Réquiem, Mozart deixa-nos seu testamento definitivo. E uma tentativa de salvar a humanidade.