Bêbado
de vinho e de noite, outra vez vagava pela madrugada. Mas ao invés do silêncio
noturno esperado, alguma coisa perturbadora, algo como um ritmo lento, macabro,
hipnotizante, surgia de todos os cantos, sem que eu soubesse exatamente de onde
e qual a causa daquelas batidas absurdas.
A
princípio, eu ouvia, ou acreditava ouvir, conforme avançava pela sujeira das
ruas, sapos que batiam seus pés em uníssono. Delírios de um bêbado com a
imaginação exacerbada, pensei. Talvez, se esse fosse o único som que eu
escutasse. Havia outros, e eram piores.
Das
árvores surgia alguma coisa como batidas de bicos de aves, transmitiam a
sensação de que bicavam uns nos outros, ou como se tentassem furar a madeira, e
a madeira propagava o som da carne sendo furada. Mas eu não posso dizer se
realmente era assim. Para mim era como se fosse. Sei que a sensação era
horrível e que o ritmo crescia em velocidade e barulho.
Sons
de baques de pedras enormes em açudes, em abismos, em poças surgiam de todos os
lados. Ruídos agudos de brigas de punhais, de espadas, antigos gonzos
orientais, tudo soava simultaneamente. Ou alguma coisa, alguma força
desconhecida, sobre-humana, absurda, fazia-os soar. Aquele barulho infernal
findou-se, ou deu uma trégua, após eu ouvir se aproximar um gigantesco galope
de cavalos, seguido por pancadas retumbantes, ruídos brutais de machados
quebrando crânios e, por fim, uma série de pauladas cuja categoria de som não
pude determinar, mas das quais o ritmo era
matematicamente perfeito, que se finalizou de súbito com uma espécie de tiro de
canhão muito próximo. E tudo retornou ao silêncio.
Mas
o silêncio era tão insuportável quanto os barulhos. Porque parecia anunciar que
mais horrores viriam. Eu estava absolutamente certo de que em breve desabaria
um temporal, mesmo antes de qualquer sinal de tempestade. De modo que em
questão de poucos minutos, relâmpagos apareceram ao longe, e ouvi sons abafados
de trovão. A tormenta se intensificava e se aproximava rápido. Pensei em ir
para casa, mas não sabia como. Não havia um caminho. Ou melhor, havia um
caminho que não era o caminho de volta. E que eu não sabia para onde me
levaria. Eu estava perdido.
No
escuro completo, aguardando a tempestade, sentei-me desolado sobre uma pedra
úmida, intentando me concentrar para lembrar o caminho. Então uma coisa surgiu
que parecia chorar. Tive a impressão que estava em algum arbusto próximo a mim.
Mas aquele som de choro foi crescendo e percebi que não estava tão perto como
imaginei, mas que advinha de longe e não era um choro, era um violino, ou algo
como um violino, desesperado e fúnebre.
Um
som de um violino transtornado, que aumentava de forma incessante seu volume,
pairando pesaroso pelos ares densos de tempestade. E logo começou a ser
acompanhado por outros violinos, que formavam uma melodia estranha, caótica,
dilacerada. E os violinos passaram a ser acompanhados por outros instrumentos
de cordas, tais como violoncelos e contrabaixos, formando uma apocalíptica
orquestra de cordas cujo ritmo era determinado pelos trovões e relâmpagos da
tormenta que já caía sobre mim. Era como se um dependesse do outro para existir,
a tempestade da orquestra e vice-versa. Pelo menos essa foi minha impressão.
Que se intensificou quando olhei para o alto e vi aquela massa monumental de
tormenta assomando-se sobre onde eu estava, ameaçadora, ao mesmo tempo em que
os sons das cordas amplificavam-se indefinidamente.
Não
havia onde me abrigar da chuva torrencial, e fiquei ali, sentado sobre o
temporal e ouvindo os acordes crescentes e magnéticos daquela orquestra
alucinada. Porém, transcorrido um curto intervalo de tempo, o som orquestral,
ou seja lá o que fosse aquela coisa, sofreu uma substancial modificação.
Os
sons emitidos pareciam agora energizados, elétricos, carregados, como se eles
próprios fossem raios e era praticamente insustentável continuar os ouvindo.
Pensei que iria ensurdecer em definitivo, quando um raio acompanhado pela
orquestra elétrica (ou talvez não fosse que um acompanhasse o outro, mas que
consistissem em essência a mesma coisa...) caiu a algumas centenas de metros de
mim, em um estrondo indescritível, em uma descarga de eletricidade que iluminou
quilômetros e quilômetros de horizontes funestos e desolados. E a tempestade e
a música caótica cessaram-se de súbito.
Após
um breve instante, a chuva retornou, porém era mais uma garoa do que uma chuva,
um gotejar lento e monótono. De maneira simultânea, uma densa névoa
entranhou-se através das árvores e invadiu todo o ambiente. Principiei a ouvir
algo como uma voz ao longe... Sim, agora era realmente uma voz humana, ou, ao
menos, um simulacro de uma. Consistia numa voz arrastada e de uma tristeza
arrepiante, um lamento desesperado. De início, parecia ser apenas uma voz por
entre a cerração, mas em um curto espaço de tempo outras vozes somaram-se à
primeira, de modo que formaram um coro de lamentações. Porém, não conseguia
entender uma palavra do que pronunciavam, ou cantavam, ou choravam, não sei
dizer exatamente o que era aquela coisa.
Caminhei
alguns metros em direção às vozes, talvez, pensei, fosse quem fosse que ali
estivesse, soubesse um caminho para sair daquele lugar. O que vi, no entanto,
foi algo como uma caravana de pessoas com longos palas escuros e encharcados,
com botas atoladas na lama. Apesar da escuridão e da névoa, pude distinguir
todas essas coisas, porque quando perceberam minha presença, aqueles homens, se
é que eram homens, acenderam inúmeros lampiões de uma luz doentia.
Então
uma voz que parecia estar à frente do grupo, ainda que quem a emitia eu não
pudesse ver, gritou, ou rugiu, com uma violência absolutamente monstruosa e
imperativa, que todos nós, inclusive eu, deveríamos seguir aquela coisa que era
nosso destino, o destino de todos nós.
Bem, eu não tinha alternativa. Deram-me um pala negro, vesti-o, e me
incluí na caravana...
(Na imagem, detalhe de "A Tentação de Santo Antônio", de Hieronymus Bosch.)
*Este conto foi escrito a pedido da banda The Taciturn Thing, e também constitui uma forma de homenagem ao trabalho dos amigos Alan, Luiz Paulo e Marlon.