Ode a um Olhar Felino

há nos teus olhos um mistério que não se abre
mas que desvenda a alma do que mal sou
que me corta me hipnotiza e domina
há nos teus olhos um mundo do que nem visto
algo que me desperta e que além me leva
um fascínio que me condensa no que só sinto
que gênio do divino te engendrou tal magnetismo?
que artista do infinito te dotou de tal alma?
pra onde voam estes abismos que seduzem?
pra onde me erguem estes céus que ameaçam?
há nos teus olhos uma ternura que arrasa
há nos teus olhos uma frieza que arrasta 
de que rios que nascem estas águas nuvens?
que correntezas me inquietam até o sol?
de que noites que brotam estas fêminas luas?
há nos teus olhos tantos outros mundos
que quando te olho me perco em galáxias
há algo de música no teu olhar violino
há algo de sexo no teu olhar serpente 
te olho e me paraliso e me vejo e me inspiro
há algo de nunca no teu olhar distante 
vejo e me alto e me sangro e me alastro
por um instante deixo meu miserável estado
de reles humano perdido e me inclino
para me sonhar diante de teu olhar felino.

Quases

podia ser um sempre 
muito além do enquanto
braçada de asa
acima da ênfase 
a romper no entantos
um extremo de êxtase
a se tocar jamais
podia ser todo 
mas é que havia um mas
é que era muito
e era nunca e tudo
um infinito de frase
e tanto!
que ficou no quase.

Não mais Humanidade

enquanto não destruírem tudo
inclusive o tudo que somos
não irão sossegar
eles não vão parar:
dinheiro não há nunca que chegue
quanto mais se ganha mais se quer
matar

enquanto não acabarem com o todo
inclusive com os humanos tolos
eles não vão descansar
não te ilude com esperanças bobas
essa gente que aí está 
os todos e todas
eles não estão nem aí
e vão continuar a cagar.

de nos salvar
ninguém há de:
eles só irão sossegar
quando não mais 
houver humanidade.

O Fim da História

estamos todos
com os dias contados?
e fomos nós mesmos
que os contamos.
desde o que nasce cresce e morre?
desde o que nada voa e anda?
desde o que sonha beija e chora?
de tanto contar moedas
ficaram nossos dias contados 
de tanto contar mentiras
(aquilo que nunca 

cumprimos como seres)
contamos todos os nossos dias
quedos caídos calados
tudo morre ao nosso redor
e a saudade dos dias passados 
onde quer que se for.
nossos olhos esvaziados
por quem?
nossos passos condenados
a quê?
nossas almas são águas passadas?

por quê?
e está nossa história contada.

Poesia é Resistência

um poema é resistência

exige um pouco de paciência

pra quem só espera a pressa

exige um pouco de ideia

pra quem nem pensar se pensa 

exige um pouco de profundo

a quem só vê o raso do mundo

é um trago de sentimento

um sopro quente de sangue

a quem não vê que o mundo acaba

mas que o cosmos se expande

a poesia é um longe de vista

pra quem só olha o próprio umbigo 

um fundo golpe de olhar

a quem não vê nem alma nem nada 

a poesia é uma gota de vida

que resiste

a quem já não passa de máquina.

Versos Diretos n°92 e 93

n°92: quer 
faça sangue lábio ou chuva
ainda é a melhor bebida
a que escorre lenta
do ventre da uva.

n°93: se você quer ser amado
ame primeiro.
é assim que o amor funciona. 
ah mas amei e não tive o retorno.
é porque você amou um ser humano
e não um animal.
os animais são superiores:
eles sabem amar.

se Deus é amor
Ele está nos bichos.
e Satã, o não-amor,
(pensando em nós como um todo

como humanidade)

Satã, que não ama,

é o nosso Senhor.

Versos Diretos n°89, 90 e 91

n°89:  havia
algo de denso
entre o que céu
e o que via
corria
um longe entre olhos 
entre o que nuvens
e mensagens de corvos

n°90: o que une as pessoas
não são ideias ideais
pensamentos ideologias
princípios objetivos
o que une é o que se sente.
não um pelo outro
não falo de sentimento amoroso
falo do que se sente
pura e simplesmente 
o resto são desculpas
de quem não entende. 

n°91: não é que um poema
só deva chocar e nunca acariciar.
pode e deve fazer os dois.
a questão é que 
um choque nunca se esquece
um carinho, sim.

Uma década para o Fim

e duas rosas de sangue.  

luas fulvas. duas. curvas.

ao tirar as tuas.

sentença ou sarcasmo?

provável os dois.

sentível provável. 

cheiro quente de marte.

urubus rubros

e sangrosas rosentas.

e tuas gotas de sangue.

cheiro de sangue. ao morno.

tempestade e encharco-me.

horizontes molhados em vinho.

fúlguras férvidas.

trovões úmidos.

cristos em pingos da cruz.

peso as hemácias da luz.

pulsos caem em chuvas

pulsações em marcha fúnebre.

hemorragias de ave. 

coração à mostra. 

despencam pelos caminhos. 

peito aberto de pássaros.

veias como de cristo.

beijos coagulados. cios de gatos.

caninos de tigres e lobos.

gotejo saliva.

um sol de apocalíptico. 

febre escarlatina de olhares.

meus olhos derramados. 

céu de cor-cardíaca.

nuvens menstruadas.

correm pelas tuas pernas.

escorrem das minhas mãos.

e duas gotas de sangue. 

goteja de canto de lábio.

sanguino lenta esperança.

Versos Diretos n°86, 87 e 88

n°86: versos ao pôr-do-sol

para se subir
até o alto dos céus 
é preciso se passar
pelo vivo do sangue
para se sentir a força do sangue
é preciso se olhar
para o início do céu

n°87: escrever para quê(m)?
escrever para além.

n°88: poetas e mulheres
têm um ponto em comum:
ambos derramam sangue

constantemente 

e não podem deixar

transparecer.
a diferença

é que nos poetas

o sangue...

(porque o sangue 

é sempre uma expressão)

vem pela palavra.

Perguntas a um Felino

Felino...
qual gênio da ciência 
engendrou o agudo absurdo da tua visão
o vasto dos teus ouvidos
o impossível do teu olfato?
qual gênio da arquitetura
projetou a elegância encantadora 
do teu caminhar e do teu porte?
qual gênio da música
compôs desde a complexidade
indecifrável dos teus miados
até a imponência assombrosa 
dos teus rugidos?
qual gênio da pintura 
plasmou em ti tão contemplativo
prazer em te admirar?
qual gênio da poesia
te pôs tanta profundidade no olhar?

Decepção

um corvo sino batia
eram fúnebres da tarde
a hora dos lobos massacrarem ovelhas 
e amei pela tempestade
um martelo esmagava as rosas
e derramava as ondas vermelhas
vinham nuncas madrugadas
cheirei sangue no ventre das luas
corriam sonhos das tuas pernas nuas
Deus debochava os meus medos
as onças engoliam as fadas
Satã cantava os teus dedos
o sol sorria desgraças
e de noite em noite eu caía
(tu muito bem o sabes)
no mortal inútil da poesia

Versos Diretos n°83, 84 e 85

n° 83: quanto mais você se doar 
menos terá valor o que você doa

n°84: a situação do mundo nunca foi tão séria
enquanto os humanos nunca foram tão bobos 

n°85: a vida é um pêndulo:
não conseguimos parar no meio.
quando conseguimos algo
que está em um lado
para onde fomos
queremos o outro lado
onde está o outro algo
que já deixamos

Para os Dias do Fim

que não haja interesse das gentes
em nada daquilo que eu digo.
só os vagos de outros mundos
só os longes mais profundos
só os lagos submundos
para que tu os digas comigo.

que não haja nenhuma luz diurna
em todos os sonhos que eu sigo.
só os leopardos lunares
só os febrentos olhares
e estas asas pelos ares
para que tu os sintas comigo.

que ninguém desvende o mistério
do tanto que me sou antigo.
mas meus olhos derramados
mas meu sangue respingado
meu coração aniquilado
para que tu os chores comigo.

ah que ninguém nunca conheça
a imensidão do meu castigo.
só a esperança acabada
a poesia asfixiada
a minha arte assassinada
para que tu nos sangres comigo.

tenho todo um segredo de fim
que me carrega sobre o perigo.
dou-te a minha noite amanhecida
a minha vida consumida
a minha alma (quase) destruída
para que tu te morras comigo.

Ser em ti

a Arte
não é quem tu és 
para ti
mas o que o artista
toca em ti 

Poema para o Fim

só a Arte
e o Amor
podem ser tudo
para mim.

Constatação

por mais que eu tente
por mais que eu faça 
por mais que eu peça
por mais que eu Seja
por mais que eu erre
por mais que eu ave
por mais que eu alto
por mais que eu água
por mais eu que venha
por mais que eu vinho
por mais que eu ame
por mais que eu chore 
por mais que eu crime
por mais que eu sonhe
por mais que eu lute
por mais que eu noite
por mais que eu toque 
por mais que eu sofra
por mais que eu sangue
por mais que eu viva
por mais que eu morra
por mais que eu diga
nunca vai ser
aquilo que eu sinta 

Ser Ave

I - ah quem me dera ser ave
para do que céu
eu ter a chave 
e além das feridas farpadas
voar como quem leve 

II - no vinho a vela
só ao vento se cala
tudo aquilo que te eleva
(nunca te esquece)
vem do que se escreve

do que se fala
do que se canta

do que se toca

do que te voa
do que te asa

Os Caminhos do Poeta

um escritor tem dois caminhos
ou escreve o que os outros querem ler
com um sorriso idiota na cara
(a literatura do agrado)
e aí nem é escritor
ou escreve o que lhe dita sua consciência
não importando a quem doa o que doer
(acreditem, dói mais em quem escreve)
e se enche de odiadores.

em qualquer um dos casos
vai dar merda.

O Que Nos Mata

o que mata não é a vida.

o que mata 

é a burocracia para se viver 

as dependências disso e daquilo

toda a papelada 

o monte de números

o sem fim de senhas

as ordens os compromissos 

as responsabilidades inúteis 

os horários os dias marcados 

o se matar pelo trabalho

por um troco mais de nada

o que nos fazem 

engolir goela abaixo

para fazer parte 

de uma sociedade falida

de um mundo sem sentido 

de uma civilização que se acaba.

(tudo isso para sobreviver

numa humanidade acabada)

o que mata  

são as falsas necessidades

é tudo aquilo 

que INVENTAMOS que PRECISAMOS

para viver

mas que na verdade 

só serve para a morte

e para o horror.

(e o que precisavámos 

era tão simples: só um pouco 

de amor...)

Versos Diretos n° 80, 81 e 82

 n°80:  "o que foi que eu fiz?"
é o que nos perguntamos

quando olhamos 

para trás 

e reconhecemos um erro fatal

sem remédio.
essa é a pergunta que a Humanidade se faz
em meio ao seu tédio.

n°81: tanto Deus
quanto o Diabo
são misteriosos
e as suas presenças diretas
(ou por seus enviados)
perturbam
para um lado ou para 

o outro.
são extremos
e os extremos se tocam.
por isso o Yin e Yang.

n°82: esquecemos de tudo que vale a pena
para ficar com tudo que não vale a alma.
de tudo nos esquecemos
e nos fodemos.