06 junho 2018

Três Considerações sobre o Fim da Humanidade

I - o fim da humanidade não será
no estrondo de uma catástrofe
mas no silêncio de um vazio

II – a morte de uma civilização
não é quando morrem todos
os que fazem parte dela.
quando morre uma civilização
todos os que fazem parte dela
estavam mortos antes

III – quando pessoas
puderem decidir quais pessoas vivem quais pessoas morrem
para que a humanidade ainda exista
é porque chegou o momento
em que a humanidade já deixou de existir

03 junho 2018

Sou Péssimo

as pessoas querem ser agradadas acariciadas justificadas
querem autoajudas que lhe digam que suas merdas
não fedem tanto
e que podem seguir cagando ad infinitum 
até transbordar o planeta

as pessoas querem ler coisas belas-doces-bobas-bonitas
daquelas de se pendurar em paredes
ou palavras-vassouras que varram seu próprio horror
para debaixo do tapete imundo da existência

as pessoas querem palavras light diet fitness
que podem ser digeridas-lidas durante os banquetes
e que não pesem nem no estômago nem na consciência
e que não estraguem suas (in)sensibilidades delicadas

as pessoas querem palavras legais-boazinhas
de sorrisinho humilde como mordomo de palácio
que entregam cartinhas flores petiscos
em bandejas de ouro

enfim, as pessoas até gostam 
de escritores-poetas
desde que façam literatura de enfeite...
ok, é tudo mesmo tão lindo!
mas ainda bem que sou péssimo nisso

02 junho 2018

Viver à Margem

viver à margem
no meu vale em que não valho
na beira do que correnteza
intocada pela humana pata 
acorrentada
apática rasa rasteira

viver à margem
melhor o barro do que o esgoto
melhor o sapo do que o rato
melhor o nada do que o produto
melhor a ruína do que o enfeite
melhor a noite do que o que é gente

do que for centro me margem distante
deixe-me no meu avante 
para o meu sem-sentido ideal
longe do que correto do que sensato
do que científico do que social

não há nada nos meios
só há nos extremos
e tudo vale a pena
quando se vive
no que se extrema

31 maio 2018

A um Vitorioso

teu olhar mudo de quem venceu o mundo 
como se nem estivesse
toque surdo de trompa
que quando tocas
se tocam todos
tocados por hipocrisia 
e por pompa

impassível contemplador de horizontes
sobre montes de nuncas e de impossíveis
aos toques de sinos
o tique-taque invisível
dos nossos destinos

as misérias humanas
não te tocam
nem o toque de mãos
ao final da tarde
tu cantas sem fazer alarde
porque teu é todo o futuro
(como o teu vulto
ameaçante e escuro)

Tu
intocável
Urubu

29 maio 2018

A Greve dos Caminhoneiros, Capitalismo e o próximo Presidente

A greve dos caminhoneiros não irá adiantar nada. No máximo vai conseguir baixar o preço do diesel por algum tempo, e só. Por quê? Porque o Brasil é o mais novo paraíso do capitalismo. E vai continuar sendo. Liberdade de preços, mercado autorregulador, ausência de controle estatal na economia (a não ser para salvar empresas) são apenas alguns dos princípios capitalistas básicos. Enquanto o pior do capitalismo, por sua óbvia nocividade, perde terreno em outros países, principalmente nos europeus, ganha força aqui, transfere-se cada vez mais para cá. Encontrou aqui um povo burro, ignorante, que não lê, facilmente domesticável, que baixa a cabeça como os bois pastando, e que se dobra aos golpes do chicote. Mão de obra barata. E, claro, o capitalismo selvagem, como todo predador, reconhece as carnes gordas da sua presa.

Colocar Temer no poder, um pau-mandado e traidor dos mais rasos (a aliança com o PMDB foi um dos piores e mais primários erros do PT) foi o primeiro passo para implementar a plutocracia com toda sua força em nosso país, o governo dos ricos e para os ricos, ou para os capitalistas. Provas? Simples: a aprovação da "reforma" trabalhista", terceirização, sucateamento dos serviços públicos, perdão de dívidas de grandes empresários e latifundiários, flexibilização da preservação ambiental...

Só que Temer é fraco, idiota e não tem carisma nem legitimidade popular. Por isso, o próximo presidente será alguém mais inteligente e carismático, que conseguirá manipular as massas com facilidade, e continuará o governo plutocrático, só que de uma forma um pouco mais sutil, voltado para o lucro sem limites e a qualquer custo dos capitalistas, que já tomaram conta do nosso país. Ah, e não, não será Bolsonaro. Eu disse que será alguém mais inteligente.

27 maio 2018

Quatro Batidas na Porta

seja a justiça desfeita
esteja a justiça torta
por mais que se saiba
ninguém se importa

quer passe por rio podre
quer passe por mata morta
por mais que se mate
ninguém se importa

se não pulsa alma nos olhos
e nem corre sangue na aorta
por mais que se morra
ninguém se importa

ninguém se importa
até que se escute as quatro
batidas na sua porta

25 maio 2018

Opinião Unânime só Minha

desconfio de toda opinião unânime
ou quase unânime: pusilânime
desconfio de tudo que é tido
como já tido
como aceito
do tipo
“isso é o certo, o correto
e não tem jeito.”

desconfio de tudo que é dado
para se ficar do lado
do que é dado
como fato e ato
do que sensato

porque isso me cheira
a acrítico
a midiático
a enfático patético
patriótico patótico
idiótico mecânico
robótico

porque isso me cheira
a coisas enfiadas
pela goela
ou mais adiante
cu acima
com cobertura
de chocolate
e lubrificante

23 maio 2018

Águia Estilhaçada

olho para a humanidade e fico. 
para as pessoas que passam e não. 
vão como se fossem vãos 
em vão pelo que nunca há de ser 
que existem sem ver ou ir 
que não hão de se alcançarem. 

tudo aquilo que se gera e perde. 
águia estilhaçada ao chão. 
imenso do que foi sentido 
em que há sempre um mas ainda mais imenso 
que dessente a tudo. 

emissões de pensamentos que se deixaram. 
galáxias de possibilidades desfragmentadas. 
luz de atrações desmagnetizadas. 
altos desígnios revogados. 
livro escrito nunca iniciado. 
páginas de um vasto universo em branco. 
o latente de um vazio que quase 
mas não. 

sei que fracassei: 
meu poema não foi. 
melhor assim 
a humanidade também 
não atingiu o seu fim.

21 maio 2018

Fazer Parte da Humanidade

fazer parte da humanidade
ser obrigado por lei
a viver de acordo com a lei
a lei que foi acordada por outros
sem que você participasse do acordo

fazer parte da humanidade
ter que trabalhar quando não se quer
quando não se pode
quando não se deve
naquilo que não se quer
para fazer algo que se queira

fazer parte da humanidade
ter que aparentar o normal
parecer como os parecidos
aceitar para ser aceito
e depois se preocupar
se enervar se estressar se matar
para poder viver em paz

fazer parte da humanidade
passar a vida inteira cansado
para poder enfim descansar
deixar de fazer o que se quer
para dizer que tem a vida que se quis
e ter que ser responsável
para assumir a responsabilidade
de que se é infeliz

fazer parte...
meu Deus, quanta miséria!
ainda bem
que se faz Arte

19 maio 2018

Quando Música

I - o bom da música (quando música)
não é que ela pode dizer tudo sem dizer nada
é que ela diz o que se quer
sem ser coisa explícita ou explicada

II - o bom da palavra
é que se eu quero dizer fúria
eu digo fúria
e se eu quiser dizer vida
eu digo nada

III - o bom da ironia
é que ela debocha
mas não traz alegria
é que ela faz graça
mas não é coisa engraçada

17 maio 2018

Sol, vai dormir!

Sol, poupa-te , não te sejas...
para que fazer que acordem
os que não ouvem teus acordes?

mulambentas múmias humanas
marionetes mancas mecânicas
aquelas
no que resta
do que nem são elas
entre poeiras e esteiras
um buraco em meio às telas
dos seus vazios inchados de nadas
aos sorrisos das vidas falhadas
enfeites entre as duas orelhas
intervalos das cabeças
retrocedidas retorcidas retardadas

Sol, para que iluminas?
que luz entrará
pelos porões de ratos
( inúteis fúteis trabalhos)
dos humanos corações?
o coração...
este músculo gorduroso
entre estúpidos pulmões

Sol, pra que acordas essa gente?
aqueles olhares
(restos hospitalares)
de almas que se lepraram
e roeram seus próprios dentes

Sol, basta de clarear
o fundo da nossa decepção
deixa-nos e vai além
para que nascer para todos
se o todos inclusive eu
não somos nada nem ninguém?

14 maio 2018

Tornado

Tornado que retorna eterno à minha torre
se contorce entre o interno teu olhar em torno
e que em (re)volta sopra o que trovoa os nervos
como ciclone-valsa a me voltear em sangue
a tornear infernos como vertigem-corvo
em beethoven-raios do que revolto venta
vendaval tormenta que me tornei de novo
momento denso do que me atormenta o tempo
na trompa do que sinto a respingar de vinho:

e na outra vez que de em revolta vieres torno
à
torre de retorno eterno que me hei Tornado...

11 maio 2018

Música ouvida entre o antigo e o moderno

melodia do que me ias 
(quando era nos meio dias) 
e agora é minha companhia 
a esta matilha de finais 

quanto mais eu quando convosco 
eu restrinjo-me ao que me afrio 
melodia de astro e foice 
fogo-fátuo que me assinais 

melodia do que me entarde 
sois som que vos busca e me mata
sois rosa esmagada entre o ver-me 
fostes ar que não mais brilhais 

melodia do que me ocaso 
sois voz em silêncio e desprezo 
sois sino que flauta ao que beijo 
(não melodia: melonoite) 
entre Poe e seu Nunca Mais

09 maio 2018

Manchetes (anti)Poéticas para os Jornais Contemporâneos (ou Contemporários)

I – O Ministério da Saúde adverte:
quem pensa não é feliz.
Mas se for pensar, não escreva.
Se for escrever, não pense.

II – Robôs quase humanos
são desenvolvidos para tomar o lugar
de humanos quase robôs
e vice-versa

III – Extra! Um modelo de carro a mais
e uma espécie de bicho a menos

IV – Nova descoberta da ciência
causa nova encoberta da consciência

V – Tecnologias de última geração
condenam espécies à sua última geração

VI– Seção Autoajuda:
para conhecer o valor do Bem
possua um bem de Valor


07 maio 2018

Uma Lenda e um Tributo a Brahms

Hoje, 185 anos de Johannes Brahms, um dos maiores gênios que já existiram. Exemplo de arte e de vida. Meu compositor favorito. Em 2009,  escrevi o conto que segue em homenagem ao gênio musical de Brahms e à sua influência sobre minha vida. Em 2013, reelaborei e republiquei o conto. Agora, publico-o novamente:

É manhã. E caminho pelo campo a descobrir o que é que me observa. E o campo é verde, vivo e vasto. Alguém, algo, algum ser, de forma permanente e misteriosa, oculto sob o invisível, vigia-me cheio de presságios... É aurora e o sol sobe como quem canta. E a aurora é bela e fria. No céu imensamente azul, no céu estranhamente azul, uma grande ave paira sobre meus sonhos. É ela que me observa? Porém quem é que toca a Sinfonia nº. 1 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, porém não sei de onde ela nasce.

            Dos grandes e roxos olhos da ave eu fito a saudade. E a ave parte ao longe sob o sol que brilha e assim percebo que não é ela que me observa. Sol que brilha como quem ama. Imperador , doador da vida, que também mantém fixo seus olhos de luz, fogo e raio sobre minha consciência. Mas não é ele que me observa. À medida que caminho por entre flores e enxames de borboletas, vejo que o astro solar ascende entre o que existe, cintila sobre a tranquilidade escura e iminente das folhas ancestrais das árvores das matas que avisto na distância do meu desejo. E a cintilar nas árvores fêminas, o sol proclama com cristalinas trombetas que não é ele que me observa, porque ele somente o faz durante o dia, e quem me observa o fará eternamente... Porém quem é que toca o concerto para piano nº. 2 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.

            Vem uma névoa do onde não é. Névoa densa e fria e longa e bela. Um céu nublado que amorteceu a luz solar. E o sol se mortifica em benefício à sombra. Um gelado estremecimento anímico traz consigo um inconcebível enigma... Que almas são aquelas que diviso flutuando invisíveis por entre a neblina? Que dança de espectros assoma solene ascendendo em alto cedro negro. Espíritos brancos e céleres valsam em perfeito equilíbrio e simetria e miram meus olhos, mas não são eles que me observam, apesar de tão fantástico espetáculo. Quem é que berra dentro do bosque? Bosque em sonhos, sombrio. Contudo não sou eu que sonho. Porém quem é que toca o Trio para piano, violino e violoncelo n°1de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.


 É Tarde. Sinto que parte minha inspiração, ainda que permaneça ouvindo tantos gritos e grunhidos e rugidos e urros e gemidos e lamentos e murmúrios e sussurros que caem e sobem, que vão e voltam, que voam e brilham, que crescem e morrem, que dançam e beijam na tarde em névoa da mata inaudita. E sei que não são essas coisas que me observam. Há segredos e arcanos inacessíveis por trás de tão largo labirinto. Porém, quem é que toca o quarteto para piano e cordas nº. 3 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.

            Correu por entre o tenso um gato-do-mato. Dizem que há algo que não é nos olhos dos felinos. Escondeu-se atrás de um cipreste. Que nuvens etéreas se evolam daquele cipreste, carregadas de intensa paixão desesperada?... No entanto, a paixão não é minha. Talvez eu perca minha paixão. Sei que a vertigem em um dos galhos do cipreste mergulha na emotividade psíquica daquelas nuvens vermelhas que não sei de onde caem. Só sei que não existem ciprestes em nossas matas nativas... Portanto, não é nem o gato nem o cipreste que me observam. E nem mesmo aquele seres inclassificáveis que agora cruzam montados em lobos-guarás. Porque eu os conheço. Avistando as longínquas colinas e coxilhas longas e adormecidas sob as nuvens densas, tensas, nervosas e carregadas, eu sei que não é ele. Seu sorriso lembra algo absolutamente familiar. Eu, um cavaleiro de uma coroa perdida há muitos séculos, eu, um nada absoluto, fitando os cavalos e as ovelhas pastarem ao longe... Sei que não pode ser ele. Porém, quem é que toca o Concerto para Violino de Brahms Op.77 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.

 Inverno magnífico e trágico! Vejo teus olhos com febre nos horizontes. Olhos que choram e sangram lilases. Talvez sejam eles que me observam. Talvez eu esteja atingindo o ápice do segredo, o auge de todos os enigmas e mistérios... Mas não... O que é que importa? Porém quem é que toca o Quarteto para Cordas n°1 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.

            A névoa se dissipa. Meu coração se acalma e segue batendo lento, muito lento, sublimemente lento, canhestramente lento. Já que não sou mais eu. Sou talvez uma possibilidade de fuga. Aqueles perfumes balsâmicos dos pântanos e arbustos já assombrados e alarmados surgem melancólicos, enquanto o sol asfixiado em incensos desmaia cantando no chumbo, no verde, no roxo do céu de ocaso. Simultaneamente, aos berros de sapos, uma lua titânica surge em plenilúnio, carregada, fantasmagórica, ascendendo rápido por entre invisibilidades e nimbos. Inauditamente amarela e dourada. Uma lua noturna nasce triunfante e pungente. Quantos anseios e ânsias, e desejos e sonhos cavalgam com ela naquele conhecido dramático tropel? E quem é que me observa? E quantos fantasmas violinam no crepúsculo tardio que avança? E quantos seres que não sei que seres dançam nas nuvens avermelhadas, arroxeadas, acinzentadas e inflamadas na noite que ainda não é? Que Dança Fatal é esta que me inquieta e perturba? Divina ou demoníaca? Porém quem é que toca o Quinteto op. 34 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.

            E aquela lua onírica que me observa? E aquela lua de vinho? E aquela noite em que te amo? E aquela coruja? Aquela noite sangrenta... Aquela lua de lábio... Aquelas estrelas de Eros... Aquele longe de alma... Aquele vento de olhos... Aqueles astros pagãos... Aquela noite que é tua. Mas não é ela que me vigia, que me contempla, que me observa. Aquela lua não é a lua. Aquela lua é um sinal, talvez Trono, talvez Virtude. Talvez Deusa-Mãe. E dela goteja o que sonhei. Grotescos sentimentos. Gotejam olhos e tristezas de distante. Existências que se calamitam. Coisas rubras ao redor das árvores se abraçam com as minhas aspirações inexistentes, estranhamente velhas, nunca-vistamente verdes. E quem é que me observa? Porém quem é que toca o Réquiem Op.45 de Brahms. Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.

Ainda não é noite, é quase. Subindo, eu fito a noite se menstruando de onde partem sussurros e músicas em surdina, e cantos de despedaçados espíritos, e sonhos de amores fatais, febres de inflamações cardíacas, tragédias de sublimes arquétipos do espaço infinito, da eternidade que assombra, de beijos sanguíneos na boca, na língua, que pairam nos dilacerados outonos entristecidos. Vejo olhos em todos os cantos, em todos os rios, em todas as matas, em todos os céus, em todos os seres! Quem é que me observa? E quem é que toca Brahms? Quem é que toca Brahms numa tormenta apocalíptica, a febre de Brahms, a fúria de Brahms, o sonho de Brahms! Quem é que toca Brahms, quem é que me observa? A Tristeza? A Tragédia? A Paz? A Força? A Paixão? A Tempestade? De Brahms? Que jamais se rende, que jamais se verga, que jamais se entrega!

            Sim, porque vibra a Sinfonia nº. 4 de Brahms em meus tímpanos, e agora eu sei de onde ela nasce... É tu que tocas, é tu que me observas...

            É Noite. E pela primeira vez sinto medo, pois estou no escuro da Noite e sei que é tu que me observas... Eu sigo meu caminho, olhando-te, somente com a lâmpada daquela nota em dó menor...
Uma 

05 maio 2018

Explicações

não me explico.
por que deveria dar um motivo?
reservo-me o indizível direito
(com o que faço
só eu devo estar satisfeito)
de dizer-me ou não:
se for pelo sentir mais alto
(ou sonho que me tomou de assalto)
de meu eu me desdigo
que nunca falo do meu falo
e não sou meu próprio umbigo

as palavras são asas veladas
que não tenho e que sustenho
sem ter que ter no meu chão
(só a mim interessa o meu não)
algo de lago sobre o mar
e o lento da morte ante o luto
sempre em segredo a te olhar

a minha palavra é longo longe de mim
e por outra maior estrada
se eu tivesse que explicar tudo
melhor seria não dizer nada

03 maio 2018

Maldição

não sei nunca saberei por que escrevo.
não há nada que eu ganhe no que faço
nem dinheiro nem glória nem abraço
nem curo meu mal e em nada me inscrevo

talvez seja assim meu último credo
único som que deixo como rastro
único sangue a valer meu cansaço
única forma em que sou meu segredo

vale tanto porque não vale nada:
o que vale não merece seu preço
só vale a vida que nos é não dada

escrever é conhecer que me esqueço
sentir o não-ser da vida alcançada
em que serei morto e em que permaneço

30 abril 2018

Não Fazer Nada da Vida

quando eles te perguntam:
"O que você faz da vida?"
eles não querem saber o que tu fazes da vida 
eles nem sabem de que vida falam 
e nem o que é vida
eles só querem saber no que tu trabalhas
e nem tanto pelo trabalho em si 
mas por quanto de dinheiro tu ganhas
e por qual a importância que tu tens 
e não tanto pela importância em si
mas pelo importância que te acham como tendo 

quando eles te perguntam: 
"O que você faz da vida?"
tu poderias (por que não?) responder: 
eu leio romances
eu escuto música 
eu falo com animais 
eu caminho pelos campos 
eu toco violão 
eu cuido do quintal 
eu escrevo poemas
eu assisto a filmes 
eu descubro sobre coisas
eu converso com amigos
eu procuro mistérios 
eu viajo
eu sonho
eu amo
(...)

se tu responderes assim
eles dirão que tu és um vagabundo 
e que não fazes nada da vida

mas são eles que não fazem nada da vida.

28 abril 2018

Tarde

sou eu que tardo no que sinto
ou é o campo que se nubla com meu sangue
seco e indistinto?  
noite que te atrás
o que é que tu me trazes?
e que olho de horizonte
me olha desde o ontem
entre o que vento
e o que silêncio do monte?

sendo humano não posso nada:
só as aves é que auroram dias
só as árvores é que longinquam estradas 

sou o que vejo
quando me sinto no que som

e o que não sou
está sendo no que fiz
e o que não fiz
estava feito no que sou

26 abril 2018

Final da Reta

I- ser poeta é estar enchendo a cara 
no final da reta
ter chegado antes 
e contemplar já bêbado 
a chegada acabada e cágada 
aos trancos e aos rastejos 
do que resta dos humanos sãos 
com seus saudáveis e vãos desejos 

II- o verso é o outro caminho do paralelo ao fracasso 
onde sopra uma vida de vento e uma alma de aço 

III- ser poeta é um ato infame e vil: 
é perceber indiferente e indignado 
olhando nos olhos de cada um e de mim 
o quanto há de humano 
e o quanto há de imbecil