27 maio 2013

Campanha de Camiseta

“seja você mesmo”
diz a sociedade
mesma
e diz a mesma coisa
a todo mundo
seja você mesmo
desde que seja o você mesmo
aceito pelos outros mesmos
que no fundo
são os mesmos mesmos

“seja você mesmo”
diz a mocinha mesma
se autoajudando ao seu si mesmo
pleonasticamente
o mesmo
na mesmice do seu ser
que é tão mesma
quanto todo mundo
mesmo
e que pensa que não é
como todo mundo
ensimesmado em ser igual
aos iguais
em seu si mesmo não seu
ou seja
que gostam andam agem
pensam sentem fazem
o mesmo

“seja você mesmo”
dizia a campanha
estampada
em uma camiseta
que todo mundo
usava a mesma


26 maio 2013

Doutor

I

prodígio da mente
ele somente
diz verdades fortes
de saber e sabor profundos
e sempre provadas:
todas as suas palavras
são do cu mentadas

II

e quando suas verdades
são proferidas
pelo ar espargem-se
quentes
borbulhantes
gaseificadas
após revolverem-se
em merditações
fermentarem
durante ânus
décadas
dentro do seu eu

partem
suas palavras ao vento
de vento
a bundantemente
interiorizadas
intensíssimas
e intestinas


24 maio 2013

Bukowski, Hospitais e Médicos*

Há dois tipos de escritores: os que bajulam e os que metem o pau. Bukowski metia o pau.

"hospitais são onde eles tentam matar você sem explicar por quê. a fria e calculista crueldade dos hospitais não é causada por médicos que estão sobrecarregados de serviços e que estão habituados e entediados com a morte. é causada por médicos QUE GANHAM DEMAIS PRA FAZER TÃO POUCO e que são admirados pelos ignorantes como feiticeiros que curam, quando na maior parte do tempo não sabem diferenciar seus próprios cabelos do cu de barbas de milho."

Charles Bukowski, em "Notas de um Velho Safado". As palavras em letras maiúsculas no texto foram assim escritas pelo próprio Bukowski.

*Postagem dedicada aos médicos que não querem que médicos estrangeiros venham para o Brasil fazer o que eles não querem fazer. 

22 maio 2013

da Impiedade do Olhar da Fera


só quem
pelo pior espera
mantém-se incólume
entre as desgraças das eras
e preparado em fado
caso o melhor não venha...

mas quem o que é pior desdenha
e só aceita o que melhor
caso for o pior a surgir
(e vê como o pior gosta de se ser...)
verá como é prazeroso
ao que é destino
de na cara lhe rir

só quem espera pelo pior
já subiu o degrau
da decepção acima
e mantém impassível
a necessária espada afiada
em sua imperturbável mão
assassina

quem espera pelo pior
conhece a fundo o coração humano
e jamais se deixa do atento
no agora
e em qualquer momento

aquele que o pior espera
torna-se o melhor
amigo
da impiedade
do olhar da fera


21 maio 2013

200 Anos de Wagner – Sexo e Morte


Dia 22 de maio, o grande Richard Wagner completa 200 anos. Admiro intensamente Wagner e sua obra. Nietzsche ficou de mal com Wagner porque Wagner foi o “Super-Homem de Nietzsche” que o próprio Nietzsche não conseguiu ser. Ou quase isso. No fundo, não foi pela alegação do filósofo de que Wagner curvou-se ao Cristianismo. Wagner viveu, e muito, no sentido de realizar-se em vida. E realizou também a enorme façanha de ser contraditório sem jamais se perder na contradição. Nenhum homem pode ir além sem ser contraditório. Um grande homem nunca é eternamente coerente. Porque, não se podendo jamais alcançar a perfeição como ser humano, é necessário, no entanto, realizar-se em totalidade de alma para ser um gênio. E em nossa alma (e seja lá o que for que cada um entenda por isso) há não somente um lado, mas vários.  Que o diga Fernando Pessoa. Que o diga Wagner. O gênio alemão fez de sua contradição uma obra gigantesca, monumental e revolucionária. 

Sua vida foi grandiosa e polêmica. Viveu tudo o que podia e o que não podia. Errou insuportavelmente, mas nunca foi derrotado. Venceu em tudo, impôs-se ao mundo e entronizou-se num orgulho antipático, mas justificável. Era um forte. Foi herói e bandido. Um sublime e um criminoso. Amou a fundo e traiu a fundo. Teve e defendeu ideais imensos e preconceitos mesquinhos. Pecador divino ou divino pecador? Foi um humano, demasiado humano. E ao mesmo tempo um deus. Era um semideus. Por que não? Da mesma forma que, na música, Brahms, Beethoven, Bach, enfim, também o foram. O fato de serem semideuses não retira deles a miséria de sua humanidade. Mas também é ostensível que não podem ser considerados reles mortais como todos os outros.

Wagner era antissemita, não gostava, em geral, de judeus, embora ele mesmo afirmasse ter amigos judeus. Mas na época, na Europa, era tão comum europeus, principalmente alemães, odiarem judeus como é comum hoje americanos odiarem árabes. Condenável, mas compreensível. Viam os judeus como exploradores econômicos como hoje veem os árabes como terroristas. Wagner não teve culpa de ser mal-compreendido por Hitler. Seria o mesmo que jogar a culpa dos estupros dos pastores evangélicos dos nossos dias em Jesus Cristo.

            Wagner era egoísta, orgulhoso, narcisista e até soberbo. Isso são defeitos ou erros para as pessoas comuns?  Talvez. Mas o que as pessoas comuns trazem de significativo para a humanidade? Wagner trouxe, e muito, usando-se de seus defeitos e erros. Eles foram necessários para a concretização de sua “arte total”, para que ele impusesse sua obra revolucionária, difícil, titânica e extrema ao mundo. Estaria Wagner consciente disso ou ele desenvolveu essa personalidade através da "mão do destino" (seja lá o que for essa “mão do destino”)?

Se Wagner fosse mansinho, humilde, quem aceitaria suas loucuras musicais? Ele teve que se impor. Abrir caminho. Necessitou “se achar” e ter uma confiança ilimitada em si mesmo. É caso muito semelhante ao de Beethoven. Mas Beethoven nos parece mais "simpático" que Wagner. E com razão. Beethoven não era tão exibicionista quanto Wagner. Porém também era dotado de imenso orgulho e de uma cósmica certeza de superioridade com relação aos demais seres humanos. E era superior, ponto final. E se assim não fosse, de onde tiraria a força para ser Beethoven e revolucionar a música a fundo, vencendo na marra?

Mas por que diabos mencionei “sexo e morte” no título deste texto? Chegarei lá. Reconheço em Wagner uma genialidade que só poderia se manifestar através de seus "pecados". Se Wagner não fosse um adúltero, teríamos Tristão e Isolda? Talvez até tivéssemos, mas devemos lembrar que a maior ópera de todos os tempos somente chegou aonde chegou sendo fruto do amor adúltero entre Wagner e Mathilde Wesendonck, ambos casados, ele com Minna Planner, e ela com Otto Wesendonck , amigo de Wagner e seu financiador. É, Wagner era foda. Era um sedutor apaixonado e inconstante. Até que se acalmasse com Cosima Liszt (com quem também teve, de início, uma relação adúltera).

Não fosse esse “amor impossível” entre Wagner e Mathilde, não teria surgido a sublime, tensa e terrível Tristão e Isolda. Porque Wagner não tinha a intenção de revolucionar a música quando a compôs. No entanto, revolucionou, e de forma natural. A obra surgiu da expressão autêntica do seu sentimento absurdo e extremo, alucinado e angustiado, tempestuoso e culposo por Mathilde. A inspiração “criminosa” e divina advinda do que sentia pela mulher de Otto Wesendonck levou Wagner a ir muito longe, a quebrar as barreiras das estruturas musicais, a “dilacerar” a música até então conhecida, trazendo harmonias inauditas, acabando com o ritmo tradicional, dissolvendo música e drama em um mar sem fim de arte angustiada e hipnotizante. Foi a saída de Wagner para um amor devastador, que não tinha como dar certo. Monumento maior ao binômio “amor e morte”, ou “sexo e morte”, que  perturbará a humanidade para todo o sempre.


20 maio 2013

E se eu disser Vida?


o que não está aqui...
o que é
o que não está aqui?
como eu poderia referir
a um algo que não é
se ele não fosse
de alguma forma?

a questão seria o onde
ou o lado?
qual dos lados
dos vários lados
é o lado em que estou?

quando alguém observa
que de fato algo é algo
e é fato
qual lado do algo
é observado?

quem está acima do todo
para ver todos os lados
e estar em todos os ondes?

a fragrância do perfume que sinto
é fragrância do que e para quem?

onde que
quando que
e como que
ficou claro
que está claro
que não pode
haver um outro outro
no universo escuro?

onde é que está
de onde que é
o que é
e o é para quem
o sentido que há
naquilo que dizem
que há sentido?

em qual das verdades mesmo
gostariam
que eu me instruísse?

e se eu disser
Vida
o que foi isso que eu disse?

17 maio 2013

da Felicidade (que não se busca)


quem busca a felicidade
não a encontra
(se ofusca)
e muito menos
quem a encontra na busca

que a felicidade não se busca
pois não pode ser buscado
o que não está
em um ponto
a ser alcançado

qual é o ponto almejado?
quem é que o alcança
com o insaciável
de sua lança?
e ainda que alcance
logo vê o outro ponto
mais adiante
e naquele ponto (não) visto
e não chegado
vê-se a felicidade imaginada
tão só miragem
de um só delirante

quem feliz
(futilmente)
 se julga
apenas um largo gole
de vinho traga:
segura uma chama de vela
que queima
e que a primeira ventania
(fatalmente)
 apaga

a felicidade
é como para o colecionador
o ato de encontrar
um selo
raro:
só dura o momento do ato

só pode ser feliz
quem sabe que não pode sê-lo
de fato

15 maio 2013

Ladrão com Honra


um político
é um ladrão covarde
(generalizo
porque sou politicamente
incorreto):
deseja roubar
mas com a lei e a polícia
do lado
por imunidade
ou por decreto

ladrão por ladrão
então que roubassem
como homens:
sejamos francos
ladrão com honra
assalta bancos

14 maio 2013

O Desastre das Florestas do Sudeste Asiático

Como caminha nosso planeta e nossa humanidade? Bem, um dos passos está sendo dado da seguinte forma:


"Eu vivo e trabalho no último lugar do mundo onde orangotangos, tigres, rinocerontes e elefantes ameaçados de extinção ainda podem circular livremente -- mas tudo isso será despedaçado a não ser que o nosso presidente escute nossos clamores e salve este habitat único. 

Nesse exato momento, em uma das florestas mais antigas e intocadas da Indonésia, um governador da região em que a floresta se situa quer permitir que empresas de mineração e óleo de palma entrem no local para dizimar áreas do tamanho de 1 milhão de campos de futebol! E parece que o Ministro das Florestas indonésio vai deixar que tal governador deixe isso acontecer, a menos que o Presidente dê um passo a frente e rejeite o plano para matar orangotangos. 

Eu conheço bem estas florestas -- trabalho como gerente de conservação natural aqui desde 2007 e recebi o prêmio Futuro para a Natureza 2013 pelo meu trabalho protegendo grandes mamíferos na ilha de Sumatra, especialmente rinocerontes. Este lugar possui a maior biodiversidade em toda a região do Pacífico Asiático e partes dele são classificadas como Patrimônio Mundial pela UNESCO. Mas esse novo plano apoiado pelas mineradoras colocaria tudo isso em risco, além de ameaçar comunidades locais com deslizamentos de terra fatais e inundações súbitas! E se o habitat deles for destruído, isso poderia dizimar os últimos poucos orangotangos, tigres, elefantes e rinocerontes. 

Mega-empresas de exploração de óleo de palma adorariam, acima de tudo, poder arrancar essas árvores do solo e, recentemente, foi descoberto que a East Asia Minerals Corporation, empresa do Canadá, está trabalhando nos bastidores para fazer esse plano ser aprovado! Países como o meu têm o direito de se desenvolver, mas não às custas do nosso patrimônio cultural inestimável, e isso deveria beneficiar, não prejudicar, os indonésios."

Rudi Putra, Indonésia


Caso o leitor queira assinar a petição (se é que vai adiantar), aqui: http://www.avaaz.org/po/the_plan_to_kill_orangutans_loc/?bBryibb&v=24933

12 maio 2013

Em Homenagem ao Dia das Mães - Stabat Mater


O poema que compus e está postado abaixo com o título de "Stabat Mater" constitui algo como uma adaptação para os tempos atuais do texto de um hino cristão de origem medieval, mais precisamente do século IX, cujo nome é o mesmo: Stabat Mater. O Stabat Mater (Estava a Mãe), expresso em latim, trata do sofrimento da Virgem Maria diante da crucifixação de seu filho, Jesus Cristo, e é um texto de extrema tristeza.

Inúmeros compositores, principalmente no Barroco e no Classicismo, musicaram o texto cristão. Sou um admirador da musicalidade dos Stabat Mater. E existem centenas deles. Porém, cinco entre eles se sobressaem: o de Pergolesi (considerado o maior, e sem dúvida o é), o de Vivaldi, o de Haydn, o de Rossini e o de Verdi. Alguns musicólogos ainda incluem o de Emmanuelle D'Astorga entre os mais importantes. Após o poema, está o texto original do Stabat Mater. Deixo os textos a seguir em homenagem a todas as mães.


Stabat Mater (Minha Versão)

Estava a Mãe Natureza
chorando junto das cruzes
das quais seus Filhos pendiam.

Via suas almas gementes
imponderáveis e aniquiladas
traspassadas por motosserras.

Oh! Que triste e aflita
estava a bendita Mãe
dos filhos universais!

Devastada de dor,
chora vendo
o desastre dos seus Filhos.

Quem poderia conter as seivas
da Grande Mãe
já tombada junto dos seus Filhos?
Quem poderia não se entristecer
ao contemplar a Mãe Natura
vendo os animais sendo extintos
flagelados pela humanidade?

Oh Mãe, fonte de vida,
faz-me sentir todo o seu fim
para que eu me acabe contigo.

Mãe pura, derrama
profundamente no meu coração
o sangue dos teus Filhos massacrados, 
eu também sou culpado,
quero compartilhar deste sangue.
Faz com que eu chore
e padeça com Eles
até o fim da minha existência.
Quero estar ao teu lado
chorando junto de ti.

Faz com que me firam as suas feridas,
que eu também ajudei a causá-las,
faz com que sofra os horrores do progresso
pelo amor dos teus Filhos.

E quando o corpo da Terra morra
faz com que a sua alma alcance
a glória do seu retorno.

Amém.


Stabat Mater (Texto original)

Estava a mãe dolorosa
chorando junto à cruz
da qual seu filho pendia.

Sua alma soluçante
inconsolável e angustiada
era atravessada por um punhal.

Ó, quão triste e aflita
estava a bendita mãe
do Filho Unigênito!

Transpassada de dor,
chorava, vendo
o tormento do seu Filho.

Quem poderia não se entristecer
Ao contemplar a Mãe de Cristo
sofrendo tanto suplício?
Quem poderia conter as lágrimas
vendo a mãe de Cristo
dolorida junto ao seu Filho?
Pelos pecados do seu povo
Ela viu Jesus no tormento,
Flagelado por seus súditos.
Viu seu doce Filho
morrendo desolado
ao entregar seu espírito.

Ó mãe, fonte de amor,
faz com que eu sinta toda a sua dor
para que eu chore contigo.

Faz com que meu coração arda
no amor a Cristo Senhor
para que possa consolar-te.

Mãe Santa, marca profundamente
no meu coração
as chagas do teu Filho crucificado.
Por mim, teu Filho coberto de chagas
quis sofrer seus tormentos,
quero compartilhá-los.

Faz com que eu chore
e que suporte com Ele a sua cruz
enquanto dure a minha existência.
Quero estar em pé
ao teu lado, junto à cruz
chorando junto a ti.

Virgem de virgens notável,
não sejas rigorosa comigo,
deixam-me chorar junto a ti.

Faz com que eu compartilhe a morte de Cristo,
que participe da Sua paixão
e que rememore suas chagas
Faz como que me firam suas feridas,
que sofra o padecimento da cruz
pelo amor do teu Filho.

Inflamado e elevado pelas chamas
seja defendido por ti, ó Virgem,
no dia do juízo final.
Faz com que eu seja custodiado pela cruz,
fortalecido pela morte de Cristo
e confortado pela graça.

Quando o corpo morrer,
faz com que minha alma alcance
a glória do paraíso.

Amém.


11 maio 2013

Uma Lenda e Um Tributo a Brahms (Conto reelaborado e republicado)


Ainda estou no clima dos 180 anos de Brahms. Decidi reelaborar este conto que escrevi em 2006. Vamos envelhecendo e amadurecendo. Creio que agora deixei melhor esta obra, da qual eu já gostava bastante. Agora, enquanto publico o conto, não escuto Brahms, mas a sua amada, escuto peças de Clara Schumann. Bom, basta de comentários. Aqui está o conto reelaborado. Mais uma simples homenagem que faço a Brahms.

 É manhã. E caminho pelo campo a descobrir o que é que me observa. E o campo é verde, vivo e vasto. Alguém, algo, algum ser, de forma permanente e misteriosa, oculto sob o invisível, vigia-me cheio de presságios... É aurora e o sol sobe como quem canta. E a aurora é bela e fria. No céu imensamente azul, no céu estranhamente azul, uma grande ave paira sobre meus sonhos. É ela que me observa? Porém quem é que toca a Sinfonia nº. 1 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, porém não sei de onde ela nasce.

            Dos grandes e roxos olhos da ave eu fito a saudade. E a ave parte ao longe sob o sol que brilha e assim percebo que não é ela que me observa. Sol que brilha como quem ama. Imperador , doador da vida, que também mantém fixo seus olhos de luz, fogo e raio sobre minha consciência. Mas não é ele que me observa. À medida que caminho por entre flores e enxames de borboletas, vejo que o astro solar ascende entre o que existe, cintila sobre a tranquilidade escura e iminente das folhas ancestrais das árvores das matas que avisto na distância do meu desejo. E a cintilar nas árvores fêminas, o sol proclama com cristalinas trombetas que não é ele que me observa, porque ele somente o faz durante o dia, e quem me observa o fará eternamente... Porém quem é que toca o concerto para piano nº. 2 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.

            Vem uma névoa do onde não é. Névoa densa e fria e longa e bela. Um céu nublado que amorteceu a luz solar. E o sol se mortifica em benefício à sombra. Um gelado estremecimento anímico traz consigo um inconcebível enigma... Que almas são aquelas que diviso flutuando invisíveis por entre a neblina? Que dança de espectros assoma solene ascendendo em alto cedro negro. Espíritos brancos e céleres valsam em perfeito equilíbrio e simetria e miram meus olhos, mas não são eles que me observam, apesar de tão fantástico espetáculo. Quem é que berra dentro do bosque? Bosque em sonhos, sombrio. Contudo não sou eu que sonho. Porém quem é que toca o Trio para piano, violino e violoncelo n°1de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.


            É Tarde. Sinto que parte minha inspiração, ainda que permaneça ouvindo tantos gritos e grunhidos e rugidos e urros e gemidos e lamentos e murmúrios e sussurros que caem e sobem, que vão e voltam, que voam e brilham, que crescem e morrem, que dançam e beijam na tarde em névoa da mata inaudita. E sei que não são essas coisas que me observam. Há segredos e arcanos inacessíveis por trás de tão largo labirinto. Porém, quem é que toca o quarteto para piano e cordas nº. 3 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.

            Correu por entre o tenso um gato-do-mato. Dizem que há algo que não é nos olhos dos felinos. Escondeu-se atrás de um cipreste. Que nuvens etéreas se evolam daquele cipreste, carregadas de intensa paixão desesperada?... No entanto, a paixão não é minha. Talvez eu perca minha paixão. Sei que a vertigem em um dos galhos do cipreste mergulha na emotividade psíquica daquelas nuvens vermelhas que não sei de onde caem. Só sei que não existem ciprestes em nossas matas nativas... Portanto, não é nem o gato nem o cipreste que me observam. E nem mesmo aquele seres inclassificáveis que agora cruzam montados em lobos-guarás. Porque eu os conheço. Avistando as longínquas colinas e coxilhas longas e adormecidas sob as nuvens densas, tensas, nervosas e carregadas, eu sei que não é ele. Seu sorriso lembra algo absolutamente familiar. Eu, um cavaleiro de uma coroa perdida há muitos séculos, eu, um nada absoluto, fitando os cavalos e as ovelhas pastarem ao longe... Sei que não pode ser ele. Porém, quem é que toca o Concerto para Violino de Brahms Op.77 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.

 Inverno magnífico e trágico! Vejo teus olhos com febre nos horizontes. Olhos que choram e sangram lilases. Talvez sejam eles que me observam. Talvez eu esteja atingindo o ápice do segredo, o auge de todos os enigmas e mistérios... Mas não... O que é que importa? Porém quem é que toca o Quarteto para Cordas n°1 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.

            A névoa se dissipa. Meu coração se acalma e segue batendo lento, muito lento, sublimemente lento, canhestramente lento. Já que não sou mais eu. Sou talvez uma possibilidade de fuga. Aqueles perfumes balsâmicos dos pântanos e arbustos já assombrados e alarmados surgem melancólicos, enquanto o sol asfixiado em incensos desmaia cantando no chumbo, no verde, no roxo do céu de ocaso. Simultaneamente, aos berros de sapos, uma lua titânica surge em plenilúnio, carregada, fantasmagórica, ascendendo rápido por entre invisibilidades e nimbos. Inauditamente amarela e dourada. Uma lua noturna nasce triunfante e pungente. Quantos anseios e ânsias, e desejos e sonhos cavalgam com ela naquele conhecido dramático tropel? E quem é que me observa? E quantos fantasmas violinam no crepúsculo tardio que avança? E quantos seres que não sei que seres dançam nas nuvens avermelhadas, arroxeadas, acinzentadas e inflamadas na noite que ainda não é? Que Dança Fatal é esta que me inquieta e perturba? Divina ou demoníaca? Porém quem é que toca o Quinteto op. 34 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.

            E aquela lua onírica que me observa? E aquela lua de vinho? E aquela noite em que te amo? E aquela coruja? Aquela noite sangrenta... Aquela lua de lábio... Aquelas estrelas de Eros... Aquele longe de alma... Aquele vento de olhos... Aqueles astros pagãos... Aquela noite que é tua. Mas não é ela que me vigia, que me contempla, que me observa. Aquela lua não é a lua. Aquela lua é um sinal, talvez Trono, talvez Virtude. Talvez Deusa-Mãe. E dela goteja o que sonhei. Grotescos sentimentos. Gotejam olhos e tristezas de distante. Existências que se calamitam. Coisas rubras ao redor das árvores se abraçam com as minhas aspirações inexistentes, estranhamente velhas, nunca-vistamente verdes. E quem é que me observa? Porém quem é que toca o Réquiem Op.45 de Brahms. Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.

Ainda não é noite, é quase. Subindo, eu fito a noite se menstruando de onde partem sussurros e músicas em surdina, e cantos de despedaçados espíritos, e sonhos de amores fatais, febres de inflamações cardíacas, tragédias de sublimes arquétipos do espaço infinito, da eternidade que assombra, de beijos sanguíneos na boca, na língua, que pairam nos dilacerados outonos entristecidos. Vejo olhos em todos os cantos, em todos os rios, em todas as matas, em todos os céus, em todos os seres! Quem é que me observa? E quem é que toca Brahms? Quem é que toca Brahms numa tormenta apocalíptica, a febre de Brahms, a fúria de Brahms, o sonho de Brahms! Quem é que toca Brahms, quem é que me observa? A Tristeza? A Tragédia? A Paz? A Força? A Paixão? A Tempestade? De Brahms? Que jamais se rende, que jamais se verga, que jamais se entrega!

            Sim, porque vibra a Sinfonia nº. 4 de Brahms em meus tímpanos, e agora eu sei de onde ela nasce... É tu que tocas, é tu que me observas...

            É Noite. E pela primeira vez sinto medo, pois estou no escuro da Noite e sei que é tu que me observas... Eu sigo meu caminho, olhando-te, somente com a lâmpada daquela nota em dó menor...

09 maio 2013

Dois Dentes de Esperança


I

hoje
tudo é comprado
(até virgindade)
e tudo é vendido
há até
quem venda esperanças
aos olhos vendados
do povo fodido

II

quem crava seus dentes
nas veias cavas macias
das nações indefesas?
o lucro vampírico
das grandes
em
presas

07 maio 2013

Johannes Brahms - 180 Anos

Comemoro hoje os 180 anos do meu compositor favorito, o mestre Johannes Brahms. Minha indigna homenagem está na forma do soneto abaixo, que escrevi há três anos, quando do 113º aniversário de falecimento do gênio de Hamburgo. Porém, agora reelaborei grande parte do soneto e creio que ficou mais bem acabado e mais amadurecido. Ok, tudo bem, o aniversário agora não é de falecimento, mas de nascimento. E daí? Brahms nunca morre. 


Soneto à Hora da Morte de Brahms

Segundo frau Tuxta, Brahms chorou de tristeza à hora da sua morte, o motivo não lhe pôde dizer: “Quando vi que as suas tentativas eram inúteis, vi que grandes lágrimas começaram a cair dos seus olhos e a rolar pelo seu rosto abatido. Fitou-me com tristeza, deixou-se cair e expirou”.

tensas e trágicas lágrimas tuas
furiando em ondas à força e a peso
ressoos de angústia infinito e desejo
cantos-horrores amores e ruas...

invernos e febre em lágrimas duas
violinos rompendo em cosmos acesos
sangram eternos terríveis arpejos
e um céu em silêncio às claras já nuas...

um denso pesar voou ao fatal...
o que é isso em ti que insano me abrigo?
que é este sonho que me arma um sinal?

lágrima lenta que lento eu te sigo
morre o sentido degrau a degrau
mas toda minha alma nasce contigo...

05 maio 2013

Os 260 mil que morreram de fome na Somália*


em um planeta esplêndido
(ainda que já agônico...)
onde há regiões miríficas
de natureza vivída
e onde a vida é fantástica
onde  a água é límpida
e há o esplendor telúrico...

neste mundo magnífico
entre o mistério cósmico
como podem, eu me pergunto atônito
reunirem-se bilhões de míseros
em lugares que são infindos túmulos
por entre águas que são mais que pútridas
amontoados como vermes fúnebres
sobre o lodo seco imundo esquálido
comendo lixo e o que houver de péssimo
por entre a doença a peste a pústula
onde nem há o consolar das árvores
e não há nada a não ser catástrofe

e mais adiante vê-se um campo onírico
onde o que é belo até se torna mágico
onde da vida há um fulgor titânico
e onde jamais puderam aquelas gentes trágicas
(e pior que trágicas, aqueles seres tétricos)
pisar a terra verde com seu passo trôpego...

a quem pertence neste mundo prático
as vastas terras desde lá o gênesis?

humanidade estúpida!

*Poema dedicado aos bilhões de miseráveis esquecidos pelo "progresso".

04 maio 2013

da Meia-Noite


quando morto
logo ao ponto
de deixar de existires
é como quando
em um ponto do céu
uma ave
desaparece
(que tudo cesse...)

então estarás no ponto
na volta ao ponto inicial
ao ponto mínimo branco
brotado
entre o negro dômino
de uma roda que é ponto
de filosofia oriental

fênix e reis
renascem das cinzas
e nunca perdem a majestade
(o cedo
é o muito tarde)

(que tudo cesse...)
como se passando do ponto
da meia-noite
fatal
natural
infinital
não amanhecesse...

02 maio 2013

Politicamente Correto


I

o cavalo
sendo chicoteado
para andar sempre
(com tapa-olhos)
no caminho reto:
o politicamente
correto

II

a máquina
(sem cérebro)
bem governada
para nunca sair da estrada:
o homem
(sem cérebro)
bem governado
para nunca sair da linha




28 abril 2013

Fragmento Absurdo de Uma Existência Futura n°2 – A Vagina e o Extrato de Tomate


Me acordei-me com os gritos irritantes de uma mulher sendo estuprada bem na calçada da rua, na frente da minha casa. Tenho o mau-hábito de chamar de casa o porão bolorento e empesteado em que vivo. Fui ver quem era. Funkeiros de merda. Não estava sendo estuprada, era a maneira estúpida daquela puta dar. Como já eram seis da tarde, decidi levantar e ir ao supermercado comprar bebidas, cigarros e algumas porcarias enlatadas e empacotadas baratas.  

“Fodam essa vadia longe daqui!”, gritei pra aqueles bostas, enquanto dava um coice na bunda imunda de um deles e fechava o portão enferrujado, úmido e pegajoso. Mais um dia de chuva ácida. Por isso moro no porão, não há perigo de haver furos no teto causados pelo ácido da chuva. E se a casa desabar, o que é bem provável com as enchentes sem fim dos últimos meses, o porão ainda permanecerá quase que intacto, comigo e com os ratos, baratas e mosquitos. Antes também convivia com sapos, eram os mais simpáticos, mas desapareceram. Devem ter sido vítimas de algum tipo de poluição ou radiação. Certa vez li que os anfíbios eram facilmente afetados pela radiação ultravioleta do sol. Deve ser verdade.

Cheguei ao mercado já de noite, com os pés embarrados. Disseram-me que eu deveria limpá-los, esfregá-los em um tapete imundo num canto da entrada. Mandei que tomassem no cu, queria sair dali logo e voltar para o meu porão ouvir Penderecki.  E tudo teria corrido bem, teria feito minhas compras estúpidas numa boa, como sempre faço, não fosse aquela cena absolutamente imbecil e nojenta que fui obrigado a observar, que me deixou ainda mais mal-humorado.

Uma velha que devia ter mais de 80 anos, mais feia que uma bruxa sifilítica, não por ser velha, mas por ser feia mesmo, de repente, rindo como um palhaço idiota, tirou toda a roupa, inclusive suas calcinhas grudentas, abriu as pernas raquíticas e tapadas de feridas e começou a enfiar em sua vagina um vidro de extrato de tomate. Sei lá o que ela pretendia, devia estar se masturbando. Todos os outros no mercado observavam com ar de curiosidade e satisfação. Eu apenas sentia nojo.

Mas a velha apertou com tanta força aquele vidro de extrato de tomate que ele se quebrou no meio de sua vagina e os cacos cortaram aquilo que deveria ser seu clitóris. E uma mistura de sangue e extrato de tomate escorreu até o chão. Nisso, um gorducho enlouquecido com uma camiseta com aquelas ridículas propagandas de cerveja, que surgiu não sei de onde, se atirou entre as pernas da velha e começou a lamber e a chupar aquele asqueroso líquido vermelho que escorria. As expressões de prazer, tanto da velha quanto do gordo, deram-me náuseas. E olhem que sou forte de estômago, acostumado que sou a comer entre os esgotos. Creio que a velha teve um orgasmo.

Alguém, um bosta, é claro, mas que não havia percebido antes, filmava aquela cena maldita e berrava que iria postá-la na internet, com o que todos concordavam, guinchando como jaguaras sarnentos. Passaram-se alguns minutos, a velha se levantou, sempre rindo, com as pernas abertas, pingando uma gosma avermelhada e voltou a fazer compras, pelada. O gorducho abriu um vidro de pepinos em conserva, empinou e bebeu todo o líquido, balbuciando que gostava de água de pepino em conserva com extrato de tomate, enquanto tirava para fora seu pênis e se masturbava.

E ninguém deu mais bola pra tudo aquilo, voltaram pra suas compras, e, como se fossem múmias, nem mais falaram uma palavra sequer sobre o “show com molho”. Estavam todos acostumados, somente eu ficara repugnado. Merda, ainda sou um sensível. Ah, que se foda, pensei. Peguei minhas garrafas de conhaque bagaceira, minhas carteiras de cigarro barato e minha merda de comida e voltei pra casa sem pagar nada. Quando estava na saída do supermercado, o gorducho que havia chupado a velha gritou: “não vai pagar, seu sem-vergonha?” Ele era o segurança do mercado. Mandei aquele filho da puta à puta que pariu. E foi minha mais profunda filosofia de toda aquela semana.