21 janeiro 2016

Enquanto houver lucro...


enquanto houver lucro
não haverá vida
nem de quem perde
nem de quem lucra

enquanto houver lucro
só haverá o suco
do que é vivo sugado
enquanto houver lucro
não haverá o justo:
só o homem esmagado

enquanto houver lucro
não haverá paz
enquanto houver lucro
só haverá pás
a cavar covas
só haverá a sede
insaciável
de quem quer mais
só haverá a sede
insaciada
de quem
não tem nada

enquanto houver lucro
o homem será invólucro
de um monstro
o homem será a máscara
de um mundo de faca
e máquina
e soco

lamento que seja assim
mas enquanto houver lucro
haverá o fim


19 janeiro 2016

Marginalia

Hoje, Edgar Allan Poe, o criador das modernas histórias de mistério, de crime e de suspense, completa 207 anos. É inegável que grande parte da literatura moderna originou-se com Poe, incluindo as análises psicológicas do Realismo e do Neo-realismo, que tiveram influência direta do perturbado e incrivelmente sagaz gênio norte-americano. O cinema, a pintura surrealista e expressionista e até mesmo a Psicologia, como ciência, devem muito a Poe.

A propósito da data, deixo alguns trechos de uma obra bem pouco conhecida, mas não menos importante, do poeta de O Corvo. Trata-se da Marginalia, algo como uma reunião de breves escritos entre filosóficos e poéticos, algumas vezes passando por uma intensa ironia.

No trecho a seguir, percebam o acerto do poeta quanto à sua previsão da "rapidez" da vida moderna:

"O progresso realizado em alguns anos pelas revistas e magazines não deve ser interpretado como quereriam certos críticos. Não é uma decadência do gosto ou das letras americanas. É, antes, um sinal dos tempos; é o primeiro indício de uma era em que se irá caminhar para o que é breve, condensado, bem digerido, e se irá abandonar a bagagem volumosa; é o advento do jornalismo e a decadência da dissertação."

No seguinte, deixa-nos um conceito de artista:

"Um homem de certa habilidade artística pode muito bem saber como se obtém certo efeito, explicá-lo claramente e, contudo, falhar quando quer utilizá-lo. Mas um homem que possua certa habilidade artística não é um artista. Só é artista aquele que pode aplicar, com felicidade, seus mais abstrusos preceitos."

Abaixo, Poe fala de como se adquirir inimigos:

"Aprouve-me, algumas vezes, imaginar qual seria a sorte de um homem dotado - para desgraça sua - de uma inteligência superior em muito à de sua raça. Naturalmente, ele teria consciência dessa superioridade e não poderia, por ser, sem dúvida, constituído como os outros homens, deixar de manifestar essa consciência. Adquiriria, assim, inúmeros inimigos. E como suas opiniões difeririam profundamente das de todos, seria ele facilmente colocado no número dos loucos."

"Por sua vez, para os medíocres, o meio mais rápido de, por sua vez, alcançarem eles a grandeza, é agir contra os grandes homens. É provável que o Escorpião jamais se tivesse tornado uma constelação se não tivesse mordido o calcanhar de Hércules."

Da adoração dos nossos dias:

"Os romanos honravam suas insígnias, e a insígnia romana era , algumas vezes, a águia. A nossa insígnia não é senão o décimo de uma águia - um dólar - mas não nos embaraçamos em adorá-lo com uma devoção dez vezes mais forte."

Para finalizar, sobre a vingança, onde Poe deixa uma sutilíssima ironia:

"Pode haver coisa mais doce para o orgulho de um homem e para a satisfação de sua consciência do que o sentimento de se haver vingado plenamente das injustiças de seus inimigos com o ter-lhes sempre e simplesmente feito justiça?"

17 janeiro 2016

A Era da Superfície (Parte II)

I - o artista
que mais alcança
o coração dos outros
é o que melhor destrói o seu:
não por destruí-lo
mas por esgotá-lo

II - artista
é quem enfrenta o homem
para trazer ao humano
mais humanidade
indo contra a humanidade
inclusive contra a sua

III – em uma época
em que o humano
não quer ser humano
(porque envolve conhecer-se
que é ir além da superfície)
mas quer ser máquina
movida a coisas
ser artista
é destruir-se
de tanto ser-se






15 janeiro 2016

10 motivos para eu não gostar de verão

Cantem outros a clara cor virente 
Do bosque em flor e a luz do dia eterno... 
Envoltos nos clarões fulvos do oriente, 

Cantem a primavera: eu canto o inverno.


Alphonsus de Guimaraens

Não gosto de verão, de calor. Nada contra quem gosta. Mas as pessoas geralmente enchem de qualidades as estações mais quentes e quase só veem defeitos  no inverno. Não nego que há coisas que são desagradáveis de se fazer com o frio (o que sempre é subjetivo, eu, por exemplo, gosto de tomar banho no inverno), mas há muitas vantagens, no meu modo de ver. Então, para fazer um contraponto, vou elencar, claro, dentro da minha opinião, os defeitos do verão, do calor.

1º) Suar. Suar é uma merda. Ou alguém gosta de suar? Sair do banho e já começar a suar é deprimente. Dar uma caminhada e se derreter suando é pior ainda.


2º) Mosquitos, moscas, formigas e outro insetos indesejados, que se tornam quase que ausentes no inverno.

3º) Não poder beber vinho (mesmo que eu beba quando o calor não é excessivo). É, eu sei, muitos não tomam vinho nunca. Mas como eu disse, é dentro da minha opinião.

4º) Ficar bronzeado. Prefiro a cor natural da pele. Nem vou falar nos riscos à saúde, envelhecimento precoce, enfim.

5º) Ter que usar protetor solar até se for sair de casa às 19h da "noite", devido a esse maldito horário de verão.

6º) Sair às ruas entre 10h e 18h, em um dia ensolarado de verão, é andar pelo inferno. Ou não é?

7º) As pessoas têm que usar ar condicionado. Eu não me sinto muito bem no clima artificial do ar condicionado. Mas aí alguns poderão rebater: "no inverno também se usa ar condicionado". É, também, mas com uma fundamental diferença. Com o frio, se você se agasalhar bem, não sentirá frio, ou sentirá muito pouco. Não precisa do ar condicionado. Com o calor, mesmo que você tire toda a roupa, o calor continua. 

8º) Ter que andar só de camiseta. É, eu não gosto de andar só de camiseta. Muito menos, de bermuda, que, aliás, quase nem uso. É bem mais elegante usar mais roupas. 


9º) Ter que aguentar aqueles guarapas que passam de carro tomando cerveja, sem camisa, com o som tocando um sertanejo universitário ou um funk a todo volume.


10º) Quando não chove, o sol é insuportável. Quando chove, o bafo de umidade morna, o mormaço, é insuportável. 

Certamente, o verão tem mais desvantagens que não elenquei aqui. Mas essas já servem.

13 janeiro 2016

A Era da Superfície

I - época contraditória:
as pessoas estão tão sentimentais
e insensíveis:
só se emocionam com merdas:
choram pelo mocinho da novela
cagam para o massacre do que é vida

II
– a tarefa do artista
é a mais difícil
e a mais ingrata:
precisa atingir o verdadeiro
sentimento humano
ou seja
trabalha cada vez mais
com o nada

III
- o artista
que mais alcança
o coração dos outros
é o que melhor destrói o seu






11 janeiro 2016

Uma Pergunta (sobre um tema de E.A.Poe)

“O que vejo, o que sou e suponho
não é mais do que um sonho num sonho.”

disseram-me
que o real é isso
que se vê
mas há lagos em que o fundo
nunca alcança a existência de nosso pé

o que existe existe
ou existe porque eu penso que existe?
dependendo de como se vê
(casório ou velório)
a flor é alegre
ou é triste

e quem me dirá que pensar é saber
se sempre quando penso
me vêm pensamentos
que nem sei de onde vêm?
se eu pensasse certo
sobreviveria no nada do deserto?

só se sente o sonho
quando o sonho chega ao fim
e ainda quando sinto
não domino o que vem-me a sentir
e o vinho só é tinto
porque os meus olhos
(que têm limites para abrir)
o percebem assim

o que é ser o que é
se nem se sabe o que é o ser?
o que sinto e vejo
vale para todos
ou é só o meu desejo?

e isto é um verso
ou é só um nada
em um sonho do universo?


08 janeiro 2016

Rua em Ruínas

pela rua em ruínas
réstias de rancores de postes
sobre os rabos dos ratos
de rápidas proles

e um rastro
de ricas fumaças de matos
pelo relevo em lama
um jaguara rengo
roendo
faz meu peito de cama
e uma ratazana roída
rengueando
faz meu dedo de cana

sob garoa rala
derrama
um raio roto de lua
sobre a água da vala
e a rã ronda em rondó
e o rouco riso do abutre
em seu hórrido refrão:
estou só

o ronco branco da queda do pó
das ruínas de um arranha-céu
e a aranha arrancada da toca
que toca e arranha
o humano que é réu

rasgam e rolam baratas
correndo pelos catarros
remando pelos esgotos
e se arrasta raquítico um gato
de quem arrancaram seu rosto

e o resto da razão roubada
que era errada
na reza do ruído do sangue
o horror daquela rainha
que arruinou a rua
que era tua
se fosse minha






06 janeiro 2016

7 Bilhões de Inconscientes

I - 7 bilhões de inconscientes
querem que eu acredite
que um mundo
de 7 bilhões de inconscientes
será melhorado solucionado
por 7 bilhões de inconscientes

II – quando digo inconscientes
não digo “aqueles não conscientizados”
digo aqueles quem nem se sabem:
nem de si nem do que fazem
e tanto assim o é
que nem se reconhecerão no que digo

III – 7 bilhões de inconscientes
(nos quais me incluo por certo)
pedem-me que eu tenha esperança
e que ignore nossa ignorância
no meio de um deserto




02 janeiro 2016

Dedicatória

entre
o haver da noite
o que há por trás do entre
do ventre da mata
que a manhã
desentranha e mata?

é isso talvez que me alta:
ver que o que há
vai em frente
numa cósmica noite
mais longa mais vasta

e os entes
que no atrás da mata
não existem
para os  que nunca entreveem

trago entre meu ser
como quem não traga
entre nada
e nem pode deixar-me
que nem deixo o entre
do que for alma

(Na imagem, o quadro "Noite Estrelada sobre o Rhone", de Van Gogh)


31 dezembro 2015

Fogos para o Ano Novo*

nos Anos-Novos
as pessoas falam em mudanças
mas durante os Novos-Anos
fazem o que estão certas
que devem fazer
e sempre acham
que devem fazer as mesmas coisas
e que estão certas no que fazem
e que cumprem seus deveres
e os deveres são sempre os mesmos
e cumpridos sempre da mesma forma

mudança seria
admitir que não se mudará

ninguém nunca se questiona nada
e no fim das contas
anos-novos paz vitórias felicidades
parecem um banquete da virada
mas é só o de sempre:
marmelada

*Poema reelaborado e republicado

29 dezembro 2015

Sartori: o Governador dos Enganados

Se você votou no Sartori, desculpa: mas ou você tinha más intenções ou foi enganado. José Ivo Sartori e seu  partido, PMDB ( e seus aliados, PP, PSDB, Dem, PTB, até o PDT, entre outros), venceram as eleições para governador do RS não por seus projetos, mas por sua campanha de marketing. Projetos, Sartori não mostrou praticamente nenhum. Tudo era vago, frouxo, contraditório. Já a propaganda era digna das grandes empresas, das multinacionais, ou seja: imagem, engodo, enganação, venda de gato por lebre. O povo gaúcho, em geral, mesmo muita gente que se julga inteligente, foi enganado. 

Agora o RS vive seu pior momento. Inúmeras entidades classificam o governo Sartori já como o pior de todos os tempos. A crise se originou com Sartori? Claro que não. Mas seu governo não só não soube lidar com ela e aprofundou-a ainda mais, numa incompetência sem par, como jogou a responsabilidade de toda crise nos serviços públicos, seus funcionários, e por fim, na população gaúcha, que é quem pagará o pato, naturalmente.

Sartori não governa para o povo, e isto está claro. Governa para a classe empresarial, para o agronegócio, para o desenvolvimento econômico, deixando em quinto plano o desenvolvimento humano e social.  Sartori não quer bons e justos serviços para a população. Quer fazer caixa. Tem a visão do empresário, ou da maior parte dos empresários: acumular lucros. A maioria absoluta das empresas, digam o quiserem, está se lixando para seus recursos humanos, para sua clientela, para o meio-ambiente, enfim. O que ela quer é dinheiro, é lucro. É claro que, algumas vezes, as empresas se dão conta que lucrarão muito mais se conquistarem o cliente, se realizarem projetos ditos "sócio-ambientais" e se derem uma pequenina participação nos lucros, ou premiaçõesinhas, presentinhos, aos seus funcionários. Mas não fazem nem por bondade nem por ética. Fazem com a intenção de ter uma ótima imagem perante a sociedade. E assim, lucrar mais.

Por que as pessoas votam em grandes empresários para governar? No Congresso Nacional, por exemplo, dos 513 deputados, 169 são empresários. E outros tantos, do agronegócio. Na Assembleia gaúcha, o índice é ainda maior. No entanto, apenas 3% da população brasileira é da classe empresarial. Por que esse fato? Talvez porque, segundo estatísticas, é necessário em torno de 6 milhões de reais para se eleger um deputado. Só os grandes empresários têm esse dinheiro. Quem não tem, acaba por pedir doações de campanha às grandes empresas. E aí se fica com o rabo preso. Então, o poder legislativo no Brasil não representa o povo. Representa os capitalistas. E ponto final.

Sartori representa claramente esses mesmos interesses. E conta com a classe empresarial na Assembleia para ter seus projetos aprovados.  E seus projetos são todos de penalização dos serviços públicos, do funcionalismo, de retrocesso dos avanços sociais. Mas quase nada fazem contra a pior das corrupções, que rouba bilhões todos os anos dos cofres públicos no Brasil: a sonegação. Ou seja: Sartori não toca em seus parceiros. Aqueles que futuramente irão comprar as empresas do governo a serem privatizadas e que irão investir na terceirização dos serviços.

Mesmo que o estado viva um déficit de pessoal em áreas vitais como Educação, Saúde e Segurança, Sartori não só não quer investir nessas áreas, mas, pelo contrário, quer desinvestir. A aprovação do PLC/206 é a prova: Sartori quer o sucateamento dos serviços públicos. Ora, o estado não existe para fazer caixa.  Existe para oferecer serviços dignos aos cidadãos, que pagam seus impostos para isso. As nações mais socialmente justas investem tudo o que têm em serviços públicos de qualidade e sabem que o resultado virá com o tempo. Todos sabem disso por aqui também. Mas na hora de votar, são facilmente ludibriados pelo poder econômico, pela imagem. Brasileiro, em geral, tem dificuldade em ir além da imagem. 

Enquanto tivermos Sartori e sua turma no governo, poderemos colocar na entrada do RS os dizeres do portal do Inferno de Dante: "Deixai toda esperança, vós que entrais."




27 dezembro 2015

Tu és Deus*

tu, Tempo, és Deus
teu é o trono
que nos traga
o que nos traz
e a que me trago:
tudo a ti se entrega

teu é o trovão
o troar do martelo
é teu o tudo do que tememos

és tigre
e treva
a tormenta que nos leva
tua é a tuba e a trompa
é tua a trombeta
a taça trágica
a traça tétrica
dos túmulos
das tampas das tumbas


ave Tempo!
e o pulo preciso do teu puma
e o peso do punhal no teu pulso
e os passos do teu compasso
e a pressa do teu presságio
e a presa da tua praga
que ninguém pisa
e só Tu apagas

tu preparas o pesar
da tempestade
e só ao passar o temporal
é que tu Tempo
(que o tempo passa)
trazes entre as torres
o sol
da Verdade.

*Poema reelaborado e republicado


25 dezembro 2015

Beethoven e a Missa Solemnis: "De todo o coração"



Certo músico escreveu que se Beethoven tivesse composto SOMENTE a Missa Solemnis, já seria considerado um gênio da música. Na partitura da Missa, o seu Opus 123 (ou seja, é da mesma época da 9ª Sinfonia, Opus 125, da sua última fase) Beethoven escreveu "De todo o coração".  E de fato o é: música composta de todo o coração, de toda alma, da genialidade mais profunda. Trata-se de uma das maiores obras musicais de todos os tempos, tão alta, tão poderosa, tão imponente, tão revolucionária quanto a Nona Sinfonia, mas bem menos conhecida do grande público. Há obras bem menores de Beethoven, bem menos expressivas, como a bagatelle Für Elise, que  são muito mais conhecidas e apreciadas.


Mas é bom que seja assim, que essa obra suprema, de extrema grandiosidade, se mantenha menos popularizada. Não é música fácil, de se compreender com facilidade, de agradar aos ouvidos na primeira audição. Também não é, como muitos devem imaginar, música de caráter meramente religioso, apesar do seu nome (uma missa) e de sua letra (é a letra da tradicional missa do cristianismo antigo, cantada em latim), pois a missa na música já havia se transformado em mais um gênero à serviço dos grandes gênios.  


A Missa Solemnis vai muito, muito além. Beethoven não era um homem propriamente religioso. Também não era um ateu. Entendia Deus como uma força, uma potência universal que abrangeria a tudo e a todos. Beethoven era um panteísta. E assim é o caráter da Missa Solemnis. Um sobre-humano monumento à essa força universal, uma obra-prima absoluta de expressão do Cosmos, do amor entre todos os seres, da vitória do Ser, é a materialização musical da alma do universo.


A 2ª missa de Beethoven, ou seja, a Solemnis, finalizada em 1823, não é a única grande missa da história da música. Bach compôs a sua fenomenal Grande Missa em Si, Mozart tem a Grande Missa em Dó, Schubert, Bruckner, Haydn, entre outros, também criaram nesse gênero obras excepcionais. Mas a Solemnis de Beethoven possui algo que a torna única, inigualável, e não se sabe dizer exatamente o que é. Talvez a força descomunal, a inovadora potência instrumental, a inusitada violência sinfônica, talvez os coros alucinados, dilacerados entre o sofrimento e a vitória, entre a angústia e a grandeza, entre o tragédia e o amor. Talvez tudo isso junto e ainda mais.  

A Missa Solemnis é Beethoven em seu auge. É o que há de mais elevado no gênio de Bonn. É o que há de mais elevado na Arte. É arte "de todo o coração" para o coração dos homens.


Acima, um trecho da Missa Solemnis, o Gloria, em uma das melhores interpretações dessa obra gigantesca: a da Concertgebouw Orchestra, com o grande Bernstein na regência.

Deixo este texto e esta música como minha mensagem de Natal. E o dedico a Patrícia Almeida, minha amada e companheira.



23 dezembro 2015

E Viva o Progresso!

homem pós pós-moderno
e a máquina
(ou vice-versa
que dá no mesmo)
não podem parar:

mais combustível para o carro
mais energia para a casa
que o carro não para
e a casa
há de sempre ser clara

lâmpada acesa
geladeira repleta
comida na mesa
indústria sem freio
que o progresso não cessa
nem se confessa

não se perdoa o atraso
(retrocesso é pecado)
o navio deve ir
o avião deve ar
hidrelétrica termelétrica
nuclear

o shopping a fábrica a loja
a lavoura o fogo a forja
a mina a  moeda o carvão
mais alta e vasta energia
ao micro ao celular à razão
na água na terra no céu
a máquina e o mundo
acelerador até o fundo
até que o tudo se exploda

e a vida?
ah, que se foda

21 dezembro 2015

O Saco do Papai Noel








Este poema foi escrito em 2013. Agora, com algumas leves revisões, republico-o, tendo em vista o clima consumista, digo, o clima natalino.

P. noel,
eis minha carta:
maior que tua barba
bem perfumada
de capital
(de fazer trança)
é a tua farsa
bem estufada
de banquetes
e palacetes
entre tua pança

de bochechas coradas
(de vergonha)
e gordas
tu só és papai,
P. noel,
a quem deixar
algumas notas
(e outras cotas)
na (pro)fundidade
do teu chapéu

P.noel
o bom velhinho
velhaco:
só ganha presente
quem tiver dedos
(no meio da moeda)
pra te puxar o saco

19 dezembro 2015

Vida Moderna x Vida

há tanta coisa na vida
que não há mais tempo pra vida
viver tornou-se uma ordem a ser acatada
dada por todos e por ninguém
sob o pretexto de uma escolha
em que não se escolhe

faça isso faça assim
seja feliz alcance o sucesso
trabalhe estude se informe
tenha compre consuma
vá à academia
faça curso de inglês
caminhe no asfalto
não fume não beba mas coma
tenha um celular avançado
nas férias vá para a praia
consulte um médico faça exames
ostente sempre um sorriso
ajude alguma causa social
goste do que está na moda
seja o que se espera de ti
tenha planos tenha metas tenha bens

mas não basta ter
é preciso mostrar que se tem:
não se é feliz nem se tem sucesso
se os outros não souberem
que você é feliz
e que você tem sucesso

faça isso tudo
e no que sobrar do tempo
lamente não ter tempo pra nada





17 dezembro 2015

"Os ideais da humanidade se limitam à posse de um apartamento, uma geladeira, um computador e um automóvel."

Entre os contistas e cronistas brasileiros, o mineiro Fernando Sabino (1923 - 2004), é um dos meus preferidos. Foi um notável observador do homem, do estado da humanidade, do cotidiano das pessoas, daqueles pequenos detalhes a que geralmente não damos muita atenção, mas que uma vez revelados nos indicam a realidade caótica, absurda, em que nos encontramos. E algumas das viscerais observações de Sabino estão na crônica "O Ano Que Vem", do livro "A Cidade Vazia", de 1948, uma das primeiras obras do escritor. Vamos a alguns trechos da crônica, ainda incrivelmente atual, como toda boa literatura:

"Os ideais da humanidade se limitam à posse de um apartamento, uma geladeira, um rádio e um automóvel. Há qualquer coisa de trágico nesse cerceamento do espírito, nessa canalização de sentimentos que exige, na sua prática, uma disciplina de verdadeira filosofia iogue: a felicidade está em repetir, cada um para si mesmo, da manhã à noite, "sou livre!", "sou alegre!", "sou feliz!" até que a ilusão de uma realidade perfeita baixe sobre todos."
(...)
"Ele dirá fatalmente entrando num apartamento qualquer: "That Beautiful!". Beautiful por quê? Não é um apartamento exatamente igual aos outros? A milhares de outros, com o mesmo banheiro de paredes imitando azulejos. Com a mesma sala de estar sem janelas, estrangulada no meio dos quartos. Com as mesmas paredes de madeira e com as mesmas reclamações dos vizinhos. (...) "What a wonderful car!" ele dirá  então, apontando para qualquer Chevrolet que lhe mostrem, enquanto lá nas fábricas um outro exatamente igual vai sendo lançado por minuto."
(...)
"Nada como exteriorizar um otimismo inexistente para fazer do conformismo uma ilusão de independência. Para fazer da vida algo que se gasta, com o dinheiro, na compra de imediatas e concretas fruições. Sou feliz, sou feliz - trancados no quarto, cercados de ruído, engaiolados em armações de aço, consumidos de uma insônia contra a qual as pílulas sedativas nada podem, o tédio e a solidão a espiar do canto, como dois demônios parados,, repetem até alta noite o refrão monótono de um dínamo esgotado que reacumula energia para as atividades do dia seguinte."

"O Ano Novo, onde está? O mundo continua o mesmo do ano passado, de todas as partes continuam chegando notícias de mortes, misérias, fome, guerra, sofrimento. Nenhum milagre aconteceu."

Alguém discorda do Sabino? Lá nos ideais da humanidade podemos substituir o rádio pelo computador. O resto continua igual. 

15 dezembro 2015

245 Anos do Maior Gênio da Música


Meu compositor favorito não é Beethoven. É Brahms. Questões de afinidades. Beethoven está em segundo lugar na minha preferência, seguido de Bach. Mas desde sempre considerei Beethoven, assim como muitos outros amantes da Música Erudita, como o maior gênio musical que já existiu, capaz de, quase sozinho, realizar uma das maiores revoluções artísticas da história. O gênio alemão, nascido em 16 de dezembro de 1770, não só criou uma nova forma de expressão, não só estabeleceu as bases e levou ao auge o Romantismo musical, como também criou música universal da mais absoluta profundidade e riqueza interpretativa, ainda hoje não superada. E nunca mais o será. Em 2012 escrevi um poema indigno do mestre, mas foi o que consegui fazer em sua homenagem. Agora, republico-o:

(Não-)Palavras a Beethoven


és Tu,
que só dizes
ao que é:
de  Ser
a Ser

quanto a mim
que não sou meu eu
não digo palavra
só verso
do nada
que o que música
é silêncio
sublimado em Verbo
e em Verdade
calada

o teu
é um arquetípico
de ideia-alma
substância-essência
síntese e única
em cada toda nota
ao que se consciência

não mais
que se há mais
é a-final.
o que
em tua música há?
tudo aquilo
que o (não-)homem
jamais será?