01 maio 2010

As Duas Mulheres (3ª Parte - Final)

Mesmo em minha angustiante apreensão para compreender o que estava acontecendo, não sentira, até então, nenhuma espécie de real mal-estar na presença daquela bela mulher. Mas em minha terrível curiosidade, perguntei-lhe nervoso quem poderia ser a bestial mulher manca que me perseguia com tanta perversidade. Ela limitou-se a dizer o seguinte, em sua serena elegância, esboçando um sutil e indecifrável sorriso:

- Já está amanhecendo... Veja!

Voltei o rosto para meu lado direito e divisei ao fundo duas imensas janelas góticas cobertas por duas vastas cortinas escarlates. A moça ergueu-se e abriu lentamente as cortinas. Pelos vidros cristalinos das janelas, vislumbrei a irradiação de uma anormal luminosidade que alternava colorações avermelhadas, levemente azuis, tenuemente roxas, e, mais intermitentemente, verde-escuras.

Em seguida, a bela moça abriu uma pequena porta por onde essa estranha luminosidade penetrou como uma densa névoa fosforescente. Pediu-me que me levantasse e me dirigisse até a porta. Ao chegar a um passo da entrada, fui assombrosamente surpreendido por uma visão deslumbrante até o absurdo. Ao longe, uma vastidão de campos e matas estendia-se até onde alcançava a vista. Era um horizonte infinito que parecia se perder em um universo de colorações avermelhadas. Creio que muito ao longe relampejava... Nas planícies mais próximas de meu ponto de observação, cobertas de exuberante vegetação anormal, brilhava a luminosidade estranhamente colorida, como se esta não fosse oriunda do sol, ou, pelo menos, do sol que conhecemos.

As nuvens envoltas por tais luzes assumiam formas espectrais, fantasmagóricas. Era impossível definir de qual ponto do espaço as luzes eram oriundas. Oscilavam como ondulações pelas atmosferas que refulgiam transbordantes de suas sobrenaturais luminosidades. Enquanto contemplava estarrecido aquele lancinante espetáculo, não percebi que Aurora me observava com perscrutadora atenção. Quanto a mim, tentava elaborar em minha mente algum tipo de explicação. Só sei que sentia uma profunda tristeza. O que presenciava, apesar de fantástico, não era de forma alguma feliz ou apaziguador. Pelo contrário, transmitia uma sensação quase insuportável de melancolia.

Ao deitar meus olhos àqueles horizontes sem fim e avermelhados, senti um desânimo desolador. Seria algum efeito daquele misterioso chá? Lembrei-me então do tique-taque perturbador que havia cessado. Nesse exato instante, Aurora proferiu algumas frases que para mim soaram completamente desconexas. Sua voz parecia flutuar ecoante pelo ar carregado daquelas luzes coloridas. O que pude depreender do que a moça disse era algo relacionado ao relógio. Olhei para o alto da porta, de maneira esquisitamente mecânica. Ali estava o relógio funcionando, mas sem emitir o som dos tique-taques.

Cheguei a imaginar que tudo fosse um sonho. Mas sabia que estava acordado. Ou não sabia? Afinal, de que é que sabemos? Como se lesse meus pensamentos, a moça sussurrou-me aos ouvidos que o que sabemos é o que sangramos. E beijou-me nos lábios, e da minha boca derramaram-se copiosas golfadas de sangue. Em seguida, disse-me ela para que olhasse para a porta por onde eu havia entrado.

Olhei. Pelo lado de fora da porta, pude distinguir as feições repulsivas da bruxa manca, observando-me fatalmente com seus olhos arregalados e devoradores, com seu escabroso sorriso de defunto. Um arrepio diabólico percorreu minha espinha. Nada pude dizer. Senti-me paralisado. Mal conseguia mover-me, parecia que algo pesava sobre meus ombros. Meu pulso estava fraco. Foi Aurora que quebrou o fúnebre silêncio:

- Agora tu deves ir através dessas luzes e dessas paisagens. Sabes o que tem lá? Lá vibra o Horizonte do Infinito.

Aurora pronunciou tais palavras como se cantasse uma missa, e novamente um calafrio percorreu o meu corpo. Porém, a sensação de tal calafrio era substancialmente diversa daquela que senti devido à visão ominosa da bruxa.

Poderia dizer que os calafrios eram diametralmente opostos, suas sensações vibravam de um extremo ao outro, como se fossem dois pólos de uma mesma corrente elétrica... As conclusões irracionais a que tal constatação me levou tenho receio de mencioná-las agora. Uma comoção de sublime fatalidade fervilhou em minha psique. Estaria salvo? Estaria perdido? Ou simplesmente morto? Ou nada disso?

Começou a soar uma música... Era uma flauta desolada. Legítima melodia de Fim. Não sei de onde ela surgira. As notas daquela música eram de uma tristíssima estranheza. Adejava pelo ar como uma sentença. Confundia-se com as nuvens fantasmais envolvidas pelas absurdas colorações.

Senti um perfume trágico de incensos. Aurora entrou e abriu a porta para a bruxa manca. Levou-a para um canto da sala, e imaginei que cochichavam. Quanto a mim, deveria partir. Mergulhei nas névoas de luzes anômalas em direção ao horizonte que aparentava não ter fim. Mal consegui caminhar. Não tive coragem de olhar para trás. A caminhada seria penosa. E a flauta do Fim me acompanhava. Agora já é um piano...

30 abril 2010

As Duas Mulheres (2ª Parte)

Foi então que as cabeças das pessoas começaram a explodir. Antes disso, percebi que seus olhos congestionavam-se violentamente de sangue, enquanto urravam de dor. Então, a cabeça explodia, e o sangue espalhava-se por todos os lados. Minha camisa branca tingia-se de vermelho sanguinolento. Alguns indivíduos, nos instantes imediatos à explosão de sua cabeça, lamentavam profundamente o fato de que no outro dia estariam impossibilitados de trabalhar, pois já teriam morrido. Centenas de cabeças já haviam explodido, quando senti que em breve chegaria minha vez. Um desespero cósmico fez tremer minha alma.

Nesse instante, avistei novamente a mulher manca. Vinha em minha direção. Dessa vez, não de maneira lenta e arrastada, mas com rapidez canhestra, grotesca, uma marcha verdadeiramente assustadora. Porém, nunca deixava de manquejar. Trazia os olhos quase que fora das órbitas e um sorriso debochado em seu rosto de maligna deformidade. Avançava a passo célere em minha direção. Com as mãos na cabeça, fugi alucinado, tropeçando em lixo e em cadáveres.

Ao passar por uma casa antiga e parcialmente arruinada, vi que alguém me observava com um enorme par de olhos fixos e escuros. Detive-me. Olhei ao redor. Principiava a anoitecer. A porta abriu-se rapidamente. A moça que me observava limitou-se a ordenar:

- Entra! Aqui ela não entrará, agora.

Obedeci, aliviado. O ambiente em que entrei encontrava-se em uma densa penumbra. Somente duas velas o iluminavam. Pude perceber que era uma casa bastante antiga, tanto pela sua arquitetura interna, quanto pelos móveis e pela decoração. Esta, embora eu não pudesse contemplá-la satisfatoriamente devido à escassa luminosidade, era um tanto estranha, perturbadora, eu diria. Havia quadros com retratos de pessoas aparentemente muito antigas, e todos passavam a impressão que me fitavam de forma sentenciosa. Distingui também algumas pinturas clássicas. Duas eram de Da Vinci, outras, de Bosch e algumas, de Rembrandt.

Havia espessas teias de aranha em todos os cantos. Alguns animais que deviam ser gatos (deviam, mas não pude ter certeza) escondiam-se sorrateiramente atrás dos móveis. Apesar do clima tétrico, sentia-me relativamente bem naquela casa (pudera, depois de todos os horrores por que passei nas ruas dantescas). Ali não ouvia os aflitivos tique-taques e, consequentemente, minha dor de cabeça cessara por completo. Mas uma inquietação profunda me atormentava...

A moça pediu-me que sentasse. Era bela, muito bela... porém... estranha. Apesar de toda sua beleza, não sei dizer com termos racionais o porquê, ela de alguma forma indefinível lembrava a horrenda mulher manca que me perseguia. Trajava um lindo vestido de um intenso vermelho que lembrava o odioso vestido de vermelho desbotado daquela bruxa. Seus cabelos, como os da manca, eram castanhos, contudo, um pouco mais longos e bem mais lisos, perfeitamente limpos e penteados.

Seus belos olhos, também castanhos, eram igualmente enormes, porém, não apresentavam olheiras, não aparentavam saltar das órbitas, não expressavam nem insanidade nem ódio, mas uma esquisita ternura, uma inquietante cordialidade e uma viva inteligência. Os olhares que ela me dirigia transmitiam simultaneamente uma sensação de bem-estar e de estranhamento. Um receio, uma constante inquietação.

Seu corpo era perfeitamente esbelto, seu porte irrepreensível chamava de imediato a atenção pela extrema elegância. Nada tinha, portanto, da deformidade hedionda daquela bruxa manca. No entanto, e isso eu não consigo explicar, algo na moça enquanto ela caminhava trazia à mente a marcha pavorosa daquela mulher infernal.

Após sentar-me, a moça declarou seu nome. Chamava-se Aurora. Perguntou-me se eu aceitaria um chá. Aceitei, e logo me trouxe um chá que ela já havia preparado. Provei do chá com certo receio e cautela. Era delicioso. Mas não identifiquei seu sabor. Ao questioná-la sobre qual seria, ela respondeu-me de forma alarmantemente misteriosa:

- Certas coisas não devem ser ditas... pelo menos por enquanto...

Gelei ao ouvir essas palavras. Não exatamente pelo que elas poderiam significar, o que já constituiria um forte motivo, mas devido ao tom com que foram proferidas. Sua voz, de fria e tranquila beleza, irradiava, ao mesmo tempo, doçura e gravidade, uma clássica cordialidade unida a uma expressão sombria de autoridade e ameaça.
(Amanhã, a 3ª e última parte)

29 abril 2010

As Duas Mulheres (1ª Parte)


Sentado na pequena escadaria da entrada de minha casa, observava, com um sarcástico sorriso no rosto, aquela horrível e ridícula mulher que trajava um vestido velho de um vermelho desbotado. A mulher mancava de forma grotesca. Principiava uma manhã nublada e abafada. Aos poucos, um vento insalubre de uma chuva enfermiça iniciou a soprar. A mulher avançava mancando com uma irritante lentidão. Porém, eu ria. Ria de sua insuportável fealdade, de seu ridículo manquejar, de seus odiosos cabelos castanhos, curtos e sujos, completamente desgrenhados e embaraçados. Sua tez morena parecia exageradamente queimada pelo sol. Seus enormes olhos rodeados por repugnantes olheiras transmitiam a sensação de um profundo rancor e vingança, um terrível ódio reprimido.

As finas gotículas de uma deprimente garoa começaram a cair, mas a mulher prosseguia em seu arrastado e odiento manquejar. De seu rosto comprido, gotejava a garoa mesclada à coriza amarelenta que escorria de seu desproporcional nariz. Seu velho vestido desbotado já principiava a grudar em seu corpo deformado e de imenso abdômen. Era uma cena insanamente grotesca, e não consegui segurar meu riso.

A mulher fitou-me com o canto dos olhos, com um visível rancor. Até que lentamente desapareceu, coberta pelas densas árvores que margeavam a rua sem calçamento.

Levantei-me da escadaria e, quando me dirigia à cozinha, ouvi batidas vagarosas na porta. Voltei-me, e qual não foi me susto ao ser canhestramente surpreendido pelo rosto repulsivo da mulher manca. Seus olhos escuros e esbugalhados dardejavam-me com ironia e malignidade. Seus lábios ressecados, lacerados, exprimiam um abjeto sorriso que me causava enjôos. Não havia como ignorar em todo horror de sua expressão um desejo transtornado de vingança.

Saí desvairado pela porta dos fundos, jamais sentira uma sensação tão demolidora de medo. Era algo como um medo ancestral, em estado puro, advindo de horrores do inconsciente coletivo. Havia algo de anomalamente perverso na fisionomia daquela mulher (ou deveria dizer, daquela bruxa?)...

Fugindo pelos fundos do pátio, atravessando o quintal de um vizinho, atingi a rua, correndo com todas as minhas forças. Após alguns minutos, parei e atrevi-me a olhar para trás. Nenhum sinal da hedionda mulher. Mais aliviado, mas não tranquilo, passei a caminhar pelas ruas imundas. O dia encontrava-se nervosamente sombrio. A garoa era irritante, e eu enlameava meus pés sem perceber. Aos poucos, passei a ouvir o tique-taque de um relógio, mas não conseguia distinguir de onde ele provinha. Sei apenas que era algo enlouquecedor. Transmitia a impressão de ser onipresente. Onde quer que fosse, ouvia o mesmo tique-taque incessante, invariável, odiosamente insano.

Pessoas passavam apressadas por mim, olhando seus relógios com extrema angústia e nervosismo. Várias traziam expressões de desespero, colocando suas mãos à cabeça e arrancando os cabelos. Algumas choravam. Creio que todas, como eu, ouviam os torturantes tique-taques.

Avançava sofrivelmente por entre toda espécie de lixo. Foi só então que percebi que estava com lodo quase até os joelhos. Pisava em animais apodrecidos, em pilhas elétricas deterioradas, em restos de comidas gordurosas, sacolas plásticas enroscavam-se em meus pés, que já sangravam. Havia cortes por todos os lados de minhas pernas. Pelo caminho, eu esmagava garrafas quebradas e latas de alumínio vazias. No desespero de sair de casa, não calçara meus sapatos. A chuva engrossara. E os trovões confundiam-se com os tique-taques que ameaçava minha sanidade.

Alguns vermes geneticamente modificados que vagavam pela lama infecta começaram a penetrar pelos ferimentos de minhas pernas, alimentando-se de meu sangue. A dor era insuportável. Lentamente, crescia o número de pessoas que passavam por mim pelas ruas miasmáticas. Suas expressões eram cada vez mais desesperadas. Olhavam seus relógios, mas nenhum deles funcionava. Não era deles que provinha o diabólico tique-taque.

Ligavam seus celulares, falavam berrando com alguém, mas eu não conseguia definir o que diziam. Só sei que os vermes, quando aquelas pessoas gritavam, surgiam às dezenas em suas gargantas, como em um sintoma típico de uma grave infestação por lombrigas.

Iniciei a sentir uma estranha dor de cabeça. Comprei numa farmácia um analgésico. Foi inútil. Carros ultramodernos conduzidos por altos executivos atropelavam brutalmente cachorros e pedestres, para em seguida espatifar-se contra prédios em desmoronamento. Minha dor de cabeça se intensificava de forma alarmante. Ao observar com mais atenção os homens e mulheres que perambulavam devastados pelas ruas, percebi que também eles sofriam com terríveis dores de cabeça. Por tal motivo arrancavam os cabelos. Creio que tão impiedosa cefaleia era causada pelo incessante e insuportável tique-taque.

(Amanhã, a continuação - Na imagem, o quadro, "O Tempo e as Mulheres Velhas", de Francisco de Goya)

28 abril 2010

Cachorro Esfomeado

a esperança
é o carneiro pendurado pela pata
aguardando que o punhal afiado
lhe fure a veia da garganta

é a curta distância em centímetros
na tábua reta sem verniz
do último passo do condenado à forca

é a luz ao longe contemplada
que se ergue aos céus em cogumelo
na majestade da bomba atômica
...
a esperança
é o sangue do carneiro que coagula
derramado pela terra em pó
enquanto sacia o desespero
do cachorro esfomeado

26 abril 2010

Tristeza do Infinito, de Cruz e Sousa


A partir de hoje, uma vez por semana, escolherei um poema de algum grande poeta para postar no blog. Não interpretarei o poema com palavras. Farei sua interpretação, como já fazia com os sonetos de Fernando Pessoa anteriormente postados, através de uma pintura. E assim, deixo aos leitores que façam sua própria interpretação do poema e da pintura, e da possível relação entre ambos.

Iniciarei com o poema "Tristeza do Infinito", de Cruz e Sousa, incluído em seu livro "Faróis", uma das obras fundamentais do Simbolismo brasileiro. Aproveito para lembrar aos leitores que se escreve Cruz e SouSa, com s, e não com z, como quase sempre as pessoas grafam. Eu, sendo um grande fã de Cruz e Sousa (para mim, o maior poeta brasileiro), não posso admitir tal erro, rsrs. Mas vamos ao que importa, o poema. Acompanha-o o quadro "Noite e Tristeza", do pintor simbolista Gustave Moreau.

Tristeza do Infinito

Anda em mim, soturnamente,
uma tristeza ociosa,
sem objetivo, latente,
vaga, indecisa, medrosa.

Como ave torva e sem rumo,
ondula, vagueia, oscila
e sobe em nuvens de fumo
e na minh'alma se asila.

Uma tristeza que eu, mudo,
fico nela meditando
e meditando, por tudo
e em toda a parte sonhando.

Tristeza de não sei donde,
de não sei quando nem como...
flor mortal, que dentro esconde
sementes de um mago pomo.

Dessas tristezas incertas,
esparsas, indefinidas...
como almas vagas, desertas
no rumo eterno das vidas.

Tristeza sem causa forte,
diversa de outras tristezas,
nem da vida nem da morte
gerada nas correntezas...

Tristeza de outros espaços,
de outros céus, de outras esferas,
de outros límpidos abraços,
de outras castas primaveras.

Dessas tristezas que vagam
com volúpias tão sombrias
que as nossas almas alagam
de estranhas melancolias.

Dessas tristezas sem fundo,
sem origens prolongadas,
sem saudades deste mundo,
sem noites, sem alvoradas.

Que principiam no sonho
e acabam na Realidade,
através do mar tristonho
desta absurda Imensidade.

Certa tristeza indizível,
abstrata, como se fosse
a grande alma do Sensível
magoada, mística, doce.

Ah! tristeza imponderável,
abismo, mistério, aflito,
torturante, formidável...
ah! tristeza do Infinito!

E-mail Recebido e Autopromoção

Às vezes, é bom quem escreve fazer um pouco de autopromoção. Ainda mais quem não tem apoio da mídia. Se até o Juremir Machado da Silva, que é colunista do Correio do Povo, muito mais conhecido do que eu, vendendo muuuitos mais livros, faz autopromoção, por que eu não posso fazer? Eu sempre hesitei, mas a partir de agora, farei umas autopromoçõeszinhas de vez em quando. Se a cada 5 autopromoções eu vender um livro, já está ótimo.

Então, vou publicar aqui um e-mail recebido do amigo Ruy Gessinger, em que comenta sobre minhas recentes postagens. Que bom que o blog tem atingido o padrão de qualidade que muito me dedico para alcançar.

"Tuas Postagens:
uma melhor que a outra, arte pura, exigência, cuidado, capricho, genialidade!
Como se criou alguém como tu, nos dias de hoje e, ainda, no país que moras?
um abraço, ruy"

24 abril 2010

Outro Trecho de Um Instante de Sono

é assim que sinto:
quando a angústia água
deixo que o silêncio sangue
sobre meu olhar que morte...

tudo que te busco é música
um som de luz que se esvai em lábio
quando em desejo não me digo simples...

toda nuvem roxa sabe do que penso
e o meu pulso vaga sem resposta
quando me vejo sendo o que não tive...

há uma eperança que suspira em chama
coração em rubro pelo verde azul
e onde estás já perto pela Mão que guia:

caminho em asas pelo todo e onde
em dúvida é ao detalhe que me vou,
que quando meu eu se esconde
é que então me Sou...

23 abril 2010

Por Que Eu Sei que Bach Tem Mais Valor que Bruno e Marrone?

Prossegue no orkut o debate sobre o subjetivismo na arte, mais especificamente na música, e me parece deveras interessante postar o meu ponto de vista a respeito aqui no blog. Que os leitores também exponham suas opiniões. Prometo que essa é a última postagem a respeito do assunto.

"O homens querem fugir do subjetivismo na arte com argumentos racionais como os que você se utiliza, e não conseguem. Porque você dizer que Bach foi mais importante para o desenvolvimento da música está simplesmente baseado, inconscientemente, no seu gosto pessoal por ele, ainda que você não queira e proteste com mil e um argumentos quanto a isso. Sabe por quê? Porque você jamais convencerá um beethoveniano de que Bach foi mais importante. E os beethovenianos tentarão lhe convencer com os mesmos argumentos racionais e perfeitamente válidos como os seus de que Beethoven foi mais importante para o desenvolvimento da música. Já participei de debates sobre tais assuntos, não no orkut, onde cada um defende seu ponto de vista com absoluto brilhantismo, e cada um fica de acordo com seu gosto. Isso é subjetivismo. Não adianta, não há como fugir a ele. É bonito falar em valoração e em critérios objetivos, mas isso é uma conversa da mente racional que sempre procura limitar as definições. Quer ter um ilusório controle das coisas.

Aqueles que julgaram Bach ultrapassado certamente tinham brilhantes argumentos de "valoração" para isso. Assim como os que queriam "corrigir" Bruckner, e os que se julgam aptos para julgar um concurso literário, como aquele em que o genial Fernando Pessoa foi considerado inferior a um escritor medíocre. Com o tempo as coisas são percebidas. Nossos critérios de "valor" sempre serão falhos. Porque sempre serão subjetivos. Quem você convencerá com seus argumentos? Aqueles que pensam como você. Aqueles que GOSTAM mais de Bach que de Beethoven. Se fosse o contrário, os beethovenianos viriam com mil e um argumentos contra os seus. Eu, particularmente, acho que ambos têm o seu valor em níveis completamente diferentes. Por exemplo, sem Beethoven, não haveria romantismo. Sem romantismo, Bach não seria o deus que é hoje. Essa é a verdade. E será que se fosse assim você estaria aqui nesta comunidade? Talvez nem houvesse a comunidade. Como querer afirmar que um é mais importante que outro a não ser com subjetivismo?

A sua comparação com Bruno e Marrone foi um ótimo recurso de retórica, mas não procede. É um argumento sofismático. O subjetivismo nesse caso vai ocorrer numa comparação entre esses cantores e Chitãozinho e Xororó, por exemplo. Qual dessas duplas é melhor? Eles estão em níveis semelhantes, e estou certo que os defensores de uma dupla e de outra teriam ótimos argumentos racionais para defender seu subjetivismo. Assim como em níveis superiores os defensores de Bach e os de Beethoven se digladiariam eternamente para um tentar convencer o outro de que um é mais importante. E ninguém convenceria ninguém, o subjetivismo sempre vence, mesmo que um lado esteja certo de que está com a razão. Aqui muitos podem concordar contigo porque têm pensamentos e visões semelhantes. Em outras comunidades seria diferente.

Os mozartianos, por exemplo, dizem que Mozart foi o mais genial de todos porque ele compunha com mais facilidade que os outros compositores músicas originais, belas, melodiosas e profundas. E acham que esse é um critério de valoração perfeitamente válido. Para mim, isso também é subjetivo. Se eu fosse defender Beethoven, diria que ele é o mais genial porque foi o único que causou uma revolução bombástica na música. Isso também é subjetivo. A arte é e sempre será subjetiva. Uma certeza de um momento, pode ser quebrada adiante. E graças a Deus elas são quebradas. Porque se houvesse objetivismo na arte, os que julgaram Bach ultrapassado estariam certos até hoje.

Cada um bebe em uma influência e, se for genial, transforma essa influência em algo novo, como Beethoven, como Wagner, como Schoenberg. Bach também bebeu em várias fontes. Seria Monteverdi mais importante que Bach? Não foi Bach que inventou o barroco na música, foi, praticamente, Monteverdi. Olha que usando critérios supostamente "objetivos" pode surgir aqui um monteverdiano dizendo que Monteverdi é mais importante que Bach, pois sem ele não existiria barroco, e não existiria Bach. Tudo subjetivismo. É inútil...


E um outro ponto? Como você vai convencer um fã de Bruno e Marrone de que Bach é melhor com os SEUS critérios de valoração? Isso não existe. Vai dizer que Bach é melhor porque o ritmo é perfeito, porque o contraponto é infinitamente superior, porque é muito mais complexo, porque sua melodias são mais belas, mais profundas, porque sua música é muito mais original, porque ele necessitou de mais estudo, porque ele é mais genial, enfim... O fã de Bruno e Marrone dirá simplesmente: "mas no meu critério de valor, Bruno e Marrone é melhor. Eu procuro simplicidade na música, melodias fáceis, que me emocionam sem eu precisar de concentração, músicas para momentos de festejos, e para isso Bach não serve." Então, onde ficam seus critérios de valoração?

É uma utopia você querer estabelecer critérios de valoração. Eles não existem, serão sempre relativos, sempre subjetivos. Por que, no meu caso, eu julgo Bach infinitamente melhor que Bruno e Marrone? A minha resposta é simplíssima: porque Bach me eleva, Bruno e Marrone não, pelo contrário, me dá nojo. Pronto. Esse é o meu critério de valoração. E é subjetivo. E o mesmo acontece com Gershwin. Bach é para mim superior porque Bach me eleva muito mais que Gershwin. Agora você vai usar critérios que dizem que o contraponto é melhor, o ritmo, a melodia, etc. Mas o fã de Bruno e Marrone não acha que isso seja um valor. Para ele não é. Não há como estabelecer valores universais. O que há são níveis de consciência. E os níveis de consciência são subjetivos. Eu sei que Bach é melhor porque tenho consciência disso. Os fãs de sertanejo não tem essa consciência. E não há critérios de valores para transmitir a eles essa consciência. Você diz que a forma e o contéudo são critérios de valores. Tudo bem, mas quem vai estabelecer que Bach tem mais forma e mais conteúdo que Beethoven? Quem? E o que é forma? Forma é perfeição formal ou é inovação formal? Quem foi mais inovador? O que é conteúdo?

No que há mais forma e mais conteúdo? Na Paixão Segundo São Mateus de Bach ou na 9ª Sinfonia de Beethoven? Quem pode afirmar com certeza que há mais em um ou em outro? Pode ser que daqui a um século, a PSM e a 9ª Sinfonia sejam esquecidas ou tenham sua importância minimizada, porque podem surgir outros critérios de valores. Só o que pode nos dizer o real valor de uma obra de arte é a nossa alma, a nossa psique. Não existem critérios objetivos. Os homens de grande alma sabem o imenso valor que essas obras possuem. Os homens de alma pequena não sabem, não entendem. Não adianta querer estabelecer critérios de valoração objetivos. O que nos dá a certeza do valor das obras dos mestres é uma certeza interna, espiritual, anímica, psíquica, como quiserem, e não critérios objetivos."

22 abril 2010

Sobre a Subjetividade na Arte: eliminável ou não?


Em uma comunidade de música erudita no orkut, mais precisamente a "Eu Acredito em Bach", surgiu um debate sobre se é possível julgar uma obra de arte eliminando-se a subjetividade do julgador. Alguns participantes afirmam que sim. Eu acredito que não. É uma questão bastante polêmica. Deixei minha opinião sobre o assunto na comunidade. Creio que seria interessante transcrevê-la aqui no blog, para que os amigos leitores também se posicionem. Abaixo, está a transcrição de minha postagem na comunidade. E você leitor, o que pensas?

"Com todo respeito, eu vou discordar de você quanto a ser possível eliminar o subjetivismo da análise artística. Não, a meu ver isso não é possível. Quanto ao puramente técnico pode ser, mas todos sabemos que a arte não é puramente técnica. Ele vai muito além disso. A arte não é algo racional, lógica, mental, muito pelo contrário, ela fala aos sentimentos, à alma. Logo, ela é subjetiva por natureza, a sua essência é subjetiva. Se fosse possível eliminar o subjetivismo, não haveria erros nas análises críticas. E quantos erros os críticos cometeram e cometem em todas as artes?

Quantos críticos julgaram que a música de Beethoven era exagerada, equivocada, sem futuro? E de Brahms? Não disseram que ele era um retrógrado? E não quiseram "corrigir" as sinfonias de Bruckner? Isso para ficar somente na música? Eu poderia citar vários exemplos de outras artes. Por quê? Porque quiseram julgar eliminando os subjetivismos. Mas a arte se expressa muito além de parâmetros técnicos, objetivos, positivos, exatos. Ela fala ao inconsciente coletivo que somente se pode entender a fundo subjetivamente. Algumas artes são mais subjetivas que outras, e alguns períodos artísticos valorizam mais a subjetividade. Mas ela sempre está presente. Bach mesmo foi considerado ultrapassado. Certamente, os que assim o julgaram tinham "parâmetros" racionais para tal afirmação. Porém, sua arte provou que ela tinha muita mais força interior para sobreviver ao tempo. Seu valor não era só técnico. Se assim fosse, haveria poucas diferenças entre Bach e Tellemann. Ambos possuem uma técnica perfeita.

Mas quem é mais genial? Bach ou Tellemann? Então, ao meu ver, isso é porque há mais alma na música de Bach, ele capta melhor o inconsciente coletivo que Tellemann, e isso não é mensurável. Há algo na arte que não é racionalizável, mensurável, nem mesmo plenamente definível. Por isso ela é arte e não ciência. Esse é o seu mistério. Ela também é técnica, mas vai muito além disso. Os concursos artísticos estão cheios de equívocos e de decisões contraditórias. Fernando Pessoa perdeu um concurso com sua genial obra "Mensagem" para um padre hoje absolutamente desconhecido. Porém, certamente, os julgadores do concurso estavam certos de que tinham parâmetros para julgar os textos.

Apenas mais um ponto. Na literatura, o barroco e o romantismo estão muito próximos, são considerados estilos similares, assim como, mais tarde, o simbolismo. Similares no sentido de que primam pelo subjetivismo, pela emoção colocada acima da razão, pela crença no sobrenatural (seja cristão ou não), pela ideia de que a arte deve ser colocada em um patamar de ligação do homem com o mistério, de que o artista tem uma missão divina, de que a arte liberta, eleva e está acima das regras da sociedade, pois vem da alma e do mistério do universo, logo seguiria outras regras. Tais características são plenamente românticas. E elas também não estão em Bach? Ao meu ver, estão."

21 abril 2010

O Poema Cósmico

o problema de onde está a Verdade
é que ela nunca está.
o que é verdadeiro
só o é por símbolo...

mas à humanidade
é tudo ao pé da letra
e a verdade que fala por vínculo
afunda em sua alma
como uma pedra
e assim a humanidade caminha
com o pé na lama...

o universo
se envia por metáforas
em um Cósmico Poema
(e um poema
nós sentimos...)

por tais motivos
no dia há luz
por tais razões
é que a noite é sombria...
mas os homens não entendem
simbologia...

19 abril 2010

A Marcha da Morte (Parte Final)


Prossegui na minha mórbida e masoquista observação, e uma série macabra e absurda de metamorfoses foi se realizando, e todas aquelas faces, muito diferentes uma das outras, era eu mesmo, eu as compreendi como personificações diabólicas do horror que de forma ostensiva ou latente sobrevive e procria em minha adoentada psique... E assim é com todos os meus irmãos “humanos”, que provavelmente ignoram a maior parte de todo esse nosso conflitante e perverso lado negro, causa indubitável de todo sofrimento e destruição. E agora se constituíam em mim como nefastas densificações moleculares e ectoplasmáticas, obtendo poder de assumir minha aparência externa, embora eu não estivesse totalmente inconsciente, pois percebia e compreendia o ocorrido.

Não obstante, permanecessem as metamorfoses faciais, eu consegui manter-me relativamente calmo e, através da serena reflexão, questionava-me sobre o que seria a loucura, ou a psicose... E vi, como um relâmpago de intuição, que a esquizofrenia, por exemplo, era muito semelhante ao que eu passava, mas em um âmbito exclusivamente interno. Ou seja, eram aqueles seres demoníacos que, em um determinado instante, fortalecidos por diversas circunstâncias, alimentados pala energia anímica humana, obtêm o poder de dominar a mente do homem que parasitam, até que assumem a personalidade característica de algum ou de alguns diabos internos, e então dizemos: é um esquizofrênico!

No entanto, em um determinado momento, senti que as trágicas transformações pareciam ter finalmente cessado. Dirigi-me outra vez ao espelho e comprovei que, de fato, voltara ao meu estado normal, apresentando de novo minha face física comum. Todavia, era atormentado por vulcânicas oscilações e inquietações em meu espírito, algo que me impulsionava a abrir a porta da casa e, desvairadamente, entrar correndo no bosque que tinha seu início nos fundos do meu pátio.

Alguma coisa se movia, em termos energéticos ou espirituais, no meu universo interior, era uma força e uma vontade que se apresentavam como dotadas de consciência, isto é, como sendo um intuito legitimamente meu, uma revolta profunda e sincera contra a totalidade daquele exército de bestas que infestavam minha torturada psique. Eu me sentia volitivamente poderoso e desloquei-me sem destino por entre o denso e enigmático ambiente da floresta, carregado de dramáticos incensos noturnos, das espessas sombras do mistério sentencioso... de fluídicos vapores espectrais oriundos da Alma do Cosmos... que secretamente falavam-me à intuição exacerbada.

Foi nesse preciso instante, onde soavam mudos todos os sobrenaturais alarmes, que uma inefável melodia cantada por celestial voz feminina principiou a invadir toda a atmosfera do bosque... Era uma voz profundamente comovida, acompanhada por divina orquestra, cantando belíssimos poemas que eu nunca conhecera... A música e a poesia tomaram completamente todos meus pensamentos e sentimentos, em um inefável domínio sobre meu mundo psíquico, agora perfeitamente consciente e harmonioso, sem nenhuma espécie de conflito íntimo, que sei que adivinha de meu ser profundo, do âmago que não consigo conceituar.

Então, consecutivamente, senti uma espécie de estranho alívio orgânico-psíquico-espiritual, como se um terrível peso estivesse me abandonando. Olhei para trás e avistei um imenso rastro de um líquido negro e viscoso que, só então, verifiquei que manava dos meus poros epidérmicos. A negra viscosidade fluía copiosamente através de mim e, à medida que saía de meu corpo e espírito, percebi que aos poucos eu ia flutuando, ascendendo, à proporção que me sentia mais e mais leve, melífluo, alimentado sobre-humanamente pela indizível música e pela indefinível poesia...

E assim fui... já se extinguia o líquido, as últimas gotas asquerosas pingavam de minha pele, até que se estancou definitivamente, e eu mergulhei nas notas e nos versos daquela feminina voz angelical, mergulhei e me diluí, tornei-me uno e indissociável daquelas artes magníficas, eu era elas, elas constituíam meu ser, e desapareci, aniquilando minha existência na dissolução pelo mistério infinito.

(Na imagem, o quadro "São Jorge Lutando Contra o Dragão" de Raphael Sanzio)

18 abril 2010

A Marcha da Morte


(Este conto foi publicado originalmente em meu livro Contos do Crepúsculo e do Absurdo, lançado em dezembro de 2006.)


Tenso e angustiado, não conseguia dormir. Desisti, portanto, de tentar adormecer e resolvi realizar uma observação do que se passava em meu mundo interior, sem dúvida, intensamente caótico. Aos poucos, fui penetrando mais e mais nas sombras de minha psique, naquele umbral tenebroso e insolitamente desconhecido... Sim, desconhecido, pois nosso mundo psicológico, nossa psique ou nossa alma, como queiram os leitores, é zona de absoluto mistério... Digo que o homem, tão orgulhoso de seu “conhecimento” que, mesmo em termos exteriores, não é mais do que uma gota no oceano, nada sabe sobre si próprio... Nada sabe sobre o que realmente pensa, sobre o que realmente sente. Isso eu afirmo totalmente destituído de qualquer receio, pois naquela noite profunda, eu principiei meu terrível autoconhecimento e, consequentemente, conheci todo o diabólico funcionamento geral da psicologia humana...

Tudo era estranho e nebulosamente sobrenatural naquele universo dantesco em que mergulhava... eu submergia no mim-mesmo, no meu eu de horror e caos. Agora posso declarar, sem medo, que o ser humano já não me pode enganar com sua dúbia “sinceridade”, de minha boca poderão ouvir a recorrente frase: “eu os conheço muito bem e não confio no homem meu semelhante”; ou poderia, ainda me utilizar dos versos de Baudelaire: “ó falso, hipócrita leitor, meu igual, meu irmão”. Eu submergia em minha psique e em poucos segundos percebi o tagarelar e a gritaria insana de uma infinidade de entes, algo como seres perversos, em eterna, estéril e fatigante disputa por uma supremacia momentânea de minhas emoções e pensamentos. Nitidamente, eu “ouvia” berros, relinchos, grunhidos, frases absurdas e desconexas, que provinham ora de um lado, ora de outro, apresentando-se sob diversas e assustadoras vozes, ou estridentes, ou cavernosas, ou satanicamente infantis, ou de velhos decrépitos, ou de monstros mitológicos, ou de bruxas sádicas, ou de pseudoanjos, ou de supostas fadas celestiais...

E todas aquelas vozes eram eu e, ao mesmo tempo, não eram, algumas eu conhecia, outras me eram absolutamente ignotas, personificando miseravelmente o universo de meus desejos, de minhas lembranças, de minhas saudades, de meus remorsos, minhas cobiças, minhas maldades, minhas vaidades, meus erros, minhas supostas grandiosidades e ações superiores... E então iniciei a perceber os rostos hediondos de todas as repulsivas hostes satânicas que interiormente dominavam e constituem o ego de todo e qualquer ser humano que sobrevive na degenerescência crepuscular deste planeta em morte...

O medonho desfile de rostos demoníacos parecia não ter fim, e todas as sensações, sentimentos e ideias próprias de cada personificação interior iam me assediando, na mente e no coração, conquanto paradoxalmente eu me questionava: quem sou eu? Como posso considerar-me um ser individual, de uma só unidade psicológica, se um batalhão de entidades contraditórias são as formadoras de minha vida interior? Como posso supor e afirmar perante toda a falsa e corrompida sociedade, todos iguais a mim, ou talvez ainda piores, que sou um individuo único e de constante e confiável comportamento, sem em um momento aprecio com ternura e noutro odeio com todas as forças a mesma pessoa? Se em um instante sinto-me alegre e confiante, em luminoso bem-estar, e noutro caio em negros abismos, considerando-me o mais infeliz e desgraçados dos homens?


Como posso julgar-me alguém uno, se meus pensamentos e sentimentos nunca permanecem os mesmos por muito tempo? Se sou aquele que faço o que não quero e o que quero, não faço, impelido por forças irrevogáveis? E mais ainda: se nem ao menos consigo manter minha atenção em um único ponto por consecutivos minutos, pois inconscientemente sou invadido, contra a minha vontade, de forma implacável e inexorável, sem que eu tenha o mínimo controle sobre mim mesmo, por uma infinidade indomável de lembranças irrelacionáveis, de idéias desconexas e absurdas, de perturbadoras emoções integralmente discordantes dos propósitos a que intento sofrivelmente dirigir minha débil atenção. Algo que leitor algum poderá negar, e os desafio a tanto. Esse é o homem, essa é “a eterna contradição humana”, nas palavras de Machado de Assis.

Passados alguns instantes dessa abominável constatação, estando eu ainda semi-conscientemente submergido em meu inferno particular, algo de absolutamente terrível e inusitado começou a ocorrer comigo. Tive a brutal sensação de que aquelas entidades satânicas de minha psique, comuns a toda humanidade inconsciente, intentavam agora, não satisfeitas em possuir o controle de minhas emoções e ideias, assumir também meu aspecto físico, ou seja, a minha fisionomia. Levantei-me em pânico e dirigi-me a um espelho... Aterrado, tive a traumática visão de alguém que não era eu... um bicho, uma coisa de aspecto odioso e repelente, que insanamente assumira minhas feições! Tentando tranquilizar-me, busquei observar com maior atenção aquilo que agora constituía monstruosamente o que então fora meu rosto, quando, para minha maior estupefação, o rosto modificou-se por completo, em uma assombrosa transformação...


Amanhã, o final.


(Na imagem, o quadro "Perseus e Andrômeda" de Pierre Mignard)

Fernando Pessoa e Seus Passos da Cruz XIV (e Último)

Continuo postando os sonetos de Passos da Cruz de Fernando Pessoa, conforme explicado na seguinte postagem: http://artedofim.blogspot.com/2009/12/fernando-pessoa-o-predestinado-passos.html . Este é o passo XIV e, portanto, o último. Na imagem, o quadro " Cristo de São João da Cruz" de Salvador Dalí.

Passos da Cruz - Soneto XIV

Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vãos olhares
Se admiraram), p'ra além dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tédio nasce

Parou... Apareceu já sem disfarce
De música longínqua, asas nos ares,
O mistério silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce...

A paisagem longínqua só existe
Para haver nela um silêncio em descida
P'ra o mistério, silêncio a que a hora assiste...

E, perto ou longe, grande lago mudo,
O mundo, o informe mundo onde há a vida...
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...

16 abril 2010

Poema Sem Graça

adeus
graça
aos gracejos estúpidos
do homem ingrato

a pena que tenho do homem
afunda como o branco da pena da garça
no negro do óleo que escorre
sem graça nenhuma

vai-te em graça
como símbolo gracioso
de tudo aquilo que morre:
a Deus
garça

e o que resta
à humanidade (in)graçada?
a des...
graça.

Cafezinho Poético Itinerante

O Cafezinho Poético da Casa do Poeta de Santiago passará agora a ser itinerante. Neste sábado, dia 17/04, ele ocorrerá no Rotaract Club "Terra dos Poetas" - Clube União Santiaguense, às 17h. O cafezinho poético é sempre aberto ao público, e todos estão convidados. Contamos com sua presença.

15 abril 2010

O Sublime Pergolesi Faleceu aos 26 Anos...


O poema que compus e está postado abaixo com o título de "Stabat Mater" constitui algo como uma adaptação para os tempos atuais do texto de um hino cristão de origem medieval, mais precisamente do século IX, cujo nome é o mesmo: Stabat Mater. O Stabat Mater (Estava a Mãe), expresso em latim, trata do profundo sofrimento da Virgem Maria diante da crucifixação de seu filho, Jesus Cristo, e é um texto de extrema tristeza.

Inúmeros compositores, principalmente no Barroco e no Classicismo, musicaram o texto cristão. Existem centenas de Stabat Mater. Porém, 5 entre eles se sobressaem: o de Pergolesi (considerado o maior), o de Vivaldi, o de Haydn, o de Rossini e o de Verdi. Alguns musicólogos ainda incluem o de Emmanuelle D'Astorga entre os mais importantes.

Mas realmente o de Pergolesi é o mais emocionante, o mais divino, o mais melancólico. Giovanni Battista Pergolesi nasceu em 3 de janeiro de 1710, na Itália. Portanto, este ano comemoramos os seus 300 anos. E eu me penitencio agora por não ter lembrado da data em janeiro. Mas ainda há tempo de deixar minha homenagem.

Pergolesi viveu bem pouco. Morreu de tuberculose aos 26 anos. Não lhe foi permitido, portanto, tempo para deixar uma obra extensa. Mas o que deixou é de uma qualidade absolutamente impressionante, e ficamos entristecidos ao imaginar o que ele poderia ter ainda nos legado caso não falecesse tão jovem. Ele, sendo um compositor barroco, já mostrava indícios de um classicismo que ainda nem havia surgido. Morreu com ele a promessa de um imenso gênio. Mas cada um com o mistério de seu destino... Como diria Álvares de Azevedo, que também faleceu muito precocemente: "Ó morte, a que mistério me destinas..."

E absolutamente genial é o seu Stabat Mater, cujas últimas notas foram escritas um dia antes de sua morte. Trata-se de uma composição absolutamente sublime. Sublime e profundamente triste. Triste e sobrenaturalmente trágica. São páginas de um grave dilaceramento, de estranha e misteriosa poesia. Não está em seu Stabat Mater somente a dor da Virgem diante de seu Filho morto. Está ali a dor de sua prória morte, e talvez a dor da sua mãe vendo a morte de seu filho. E muito mais que isso. Está ali a Dor Universal, como diria Cruz e Sousa...

Por mais duro que seja o coração de um homem, considero quase impossível não se emocionar com a dolorosa celestialidade das notas do Stabat Mater de Pergolesi. Impossivel não sentir e pensar no que há de mais triste e mais puro, no que há de mais sagrado para nós, independente da crença de cada um. Com seu Stabat Mater, Pergolesi morreu como um anjo...

Abaixo, o texto, traduzido do latim, do

Stabat Mater

Estava a mãe dolorosa
chorando junto à cruz
da qual seu filho pendia.

Sua alma soluçante
inconsolável e angustiada
era atravessada por um punhal.

Ó, quão triste e aflita
estava a bendita mãe
do Filho Unigênito!

Transpassada de dor,
chorava, vendo
o tormento do seu Filho.

Quem poderia não se entristecer
Ao contemplar a Mãe de Cristo
sofrendo tanto suplício?
Quem poderia conter as lágrimas
vendo a mãe de Cristo
dolorida junto ao seu Filho?
Pelos pecados do seu povo
Ela viu Jesus no tormento,
Flagelado por seus súditos.
Viu seu doce Filho
morrendo desolado
ao entregar seu espírito.

Ó mãe, fonte de amor,
faz com que eu sinta toda a sua dor
para que eu chore contigo.

Faz com que meu coração arda
no amor a Cristo Senhor
para que possa consolar-te.

Mãe Santa, marca profundamente
no meu coração
as chagas do teu Filho crucificado.
Por mim, teu Filho coberto de chagas
quis sofrer seus tormentos,
quero compartilhá-los.

Faz com que eu chore
e que suporte com Ele a sua cruz
enquanto dure a minha existência.
Quero estar em pé
ao teu lado, junto à cruz
chorando junto a ti.

Virgem de virgens notável,
não sejas rigorosa comigo,
deixam-me chorar junto a ti.

Faz com que eu compartilhe a morte de Cristo,
que participe da Sua paixão
e que rememore suas chagas
Faz como que me firam suas feridas,
que sofra o padecimento da cruz
pelo amor do teu Filho.

Inflamado e elevado pelas chamas
seja defendido por ti, ó Virgem,
no dia do juízo final.
Faz com que eu seja custodiado pela cruz,
fortalecido pela morte de Cristo
e confortado pela graça.

Quando o corpo morrer,
faz com que minha alma alcance
a glória do paraíso.

Amém.

14 abril 2010

Stabat Mater *

Estava a Mãe Natureza
chorando junto das cruzes
das quais seus Filhos pendiam.

Via suas almas gementes
imponderáveis e aniquiladas
traspassadas por motosserras.

Oh! Que triste e aflita
estava a bendita Mãe
dos filhos universais!

Devastada de dor,
chora vendo
o desastre dos seus Filhos.

Quem poderia conter as seivas
da Grande Mãe
já tombada junto dos seus Filhos?
Quem poderia não se entristecer
ao contemplar a Mãe Natura
vendo os animais no tormento
flagelados pela humanidade?

Oh Mãe, fonte de vida,
faz-me sentir todo o seu fim
para que eu me acabe contigo.

Mãe pura, derrama
profundamente no meu coração
o sangue dos teus Filhos massacrados,
eu também sou culpado,
quero compartilhar deste sangue.
Faz com que eu chore
e padeça com Eles
até o fim da minha existência.
Quero estar ao teu lado
chorando junto de ti.

Faz com que me firam as suas feridas,
que eu também ajudei a causá-las,
faz com que sofra os horrores do progresso
pelo amor dos teus Filhos.

E quando o corpo da Terra morra
faz com que a sua alma alcance
a glória do seu retorno.

Amém.

*(Escrevi este poema baseando-me no Stabat Mater de Pergolesi. Amanhã comentarei sobre esta obra do compositor italiano.)

13 abril 2010

Deputado Aldo Rebelo Quer Desmatar Ainda Mais...

Parabéns, deputado Aldo Rebelo. É de homens ousados como o senhor que o planeta precisa, para morrer o mais rápido possível.

Venho deixar aqui o meu apoio ao seu justíssimo, digníssimo, excelentíssimo projeto de alteração do Código Florestal, que vai anistiar nossos queridos desmatadores e deixar menos rígidas as leis de proteção de nossas florestas (claro, lei tem que ser flexível, frouxa, que é para se adequar aos interesses dos homens que pensam grande, pensam à frente, aqueles que já pensam em desmatar muito mais). Está certo. Mato pra quê? Só pra esconder macacos, gatos pintados e raposas? Tem é que acabar com tudo pra plantar, plantar mais e mais. Isso é desenvolvimento!

Plantar pra vender para os ricos, é claro, não para matar a fome do povo. Como o diria o Chico Anísio com seu deputado: "Pobre tem que morrer!" Eu concordo. Ainda bem que veio um deslizamento no Rio e matou um monte de pobres.

Que ninguém nos escute, excelentíssimo deputado (porque têm uns ecologistas chatos de plantão que ficam pegando no seu pé), mas o senhor está muito certo em querer avançar Amazônia adentro, desmatando e plantando e criando gado! O senhor é um desbravador, um herói de nossas terras! Tem a coragem de acabar com aquela floresta inútil para encher o mundo de soja e enriquecer o bolso dos ruralistas.

Eu sempre pensei que tem que se desenvolver a qualquer custo, destruir tudo em nome do progresso.

Mas se você, amigo leitor, não pensa assim, assine aqui a petição para impedir que a bancada da motossera ligue o motor de sua ganância:

http://www.greenpeace.org.br/codigo/envie_msg.php

É só entrar e assinar.

Eu e o deputado Aldo Rebelo, que é meu amigo, não agradecemos. Mas o planeta agradece.

11 abril 2010

Ameaça

ao sentenciar silente do Ocaso
um vivo silvo de sino
sai pela selva sangrada
como sonata solene e soturna
como sublime aviso seráfico:
o som do sol que se esvai...

é o selo sombrio e sagrado
segredo que se arrasta em sussurros
a morte sutil que se assoma
na saliva universal e simbólica...

silêncio... sente que soa em teu sonho
o sibilar o silvar o assovio
e sinal de sangue e de sono
do ameaçar triunfal da Serpente...

é melhor que tu a escutes...

09 abril 2010

Fernando Pessoa e Seus Passos Da Cruz XIII


Continuo postando os sonetos de Passos da Cruz de Fernando Pessoa, conforme explicado na seguinte postagem: http://artedofim.blogspot.com/2009/12/fernando-pessoa-o-predestinado-passos.html . Na próxima semana, o 14º, e último, passo. Na imagem, o quadro " "Ascensão ao Sagrado" de Hieronymus Bosch.

Passos da Cruz - Soneto XIII

Emissário de um Rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anômalo sentido...

Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
E a glória do meu Rei dá-me desdém
Por este humano povo entre quem lido...

Não sei se existe o Rei que me mandou.
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...

Mas há ! Eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...

08 abril 2010

Símbolo

sinto desejos de me ir
mas não me sigo:
tudo pesa sobre mim

tenho desejos de me rir
mas não consigo:
tudo é grave ao meu clarim

meu coração que nada em vales
é o tudo do todo que trago
um trago de vinho vago e amargo

meu coração que nada vale...

meu coração cravei nesta espada
esta espada cravei na montanha
a montanha cravei pelo nada
como símbolo oniricamente acabado
de tudo aquilo que acaba...

vêm-me desejos de dormir
mas só comigo:
tudo nada no (en)Fim

(Receba gratuitamente o zine literário Poemas do Término e Contos do Fim em sua versão digital. Basta deixar aqui o seu email, ou enviá-lo para reiffer@gmail.com. Obrigado.)

07 abril 2010

Versos Poluídos

a água do teu lábio
agora já é saliva
a saliva de uma lepra
a saliva do teu lábio
agora já é uma lágrima
e essa lágrima tu sorves
a lágrima do teu lábio
agora já é um sangue
o sangue que te nutre
o sangue do teu lábio
agora já é veneno
o veneno que te vive
o veneno do teu lábio
é a água que tu bebes
e estes versos que vomito
são à água do planeta...

06 abril 2010

A 4ª Sinfonia, de Brahms


Johannes Brahms compôs apenas 4 sinfonias. Mas todas elas absolutamente magistrais e estão no ápice da música sinfônica romântica. Brahms foi um exímio sinfonista. Dos maiores. Não é à toa que sua 1ª sinfonia foi considerada como sendo a 10ª de Beethoven. E todos sabem que Beethoven foi o maior de todos os sinfonistas.

Porém, entre as 4 sinfonias de Brahms, a última, a 4ª, Opus 98, é a minha preferida. Na minha opinião, é a mais madura, a mais bem acabada e a que melhor expressa a profunda alma de Brahms. É para mim uma das sinfonias mais trágicas e melancólicas já criadas. Os acordes iniciais de seu primeiro movimento já carregam o ar de uma densidade emocional escura e apaixonada. É uma música pesada, tensa, sem, no entanto, perder por um instante sequer o seu obstinado lirismo, a sua poesia introspectiva.

Este movimento desenvolve-se com absoluta perfeição, para desaguar em uma verdadeira catástrofe sonora, em um clímax furioso, marcial, devastador, que nos deixa a impressão de que o teto vai desabar sobre nossas cabeças.

O segundo movimento, dominado por um sentimento de outono, de inverno, é, ao mesmo tempo, lírico e solene, melodioso e taciturno, terno e misterioso. Passando pela vivacidade ensolarada e enérgica do 3º movimento, atingimos o 4º, onde a dilaceração emocional atinge o extremo, em notas carregadas de força e de tragédia. O breve instante de sol do movimento anterior dá lugar às sentenciosas sombras do final da sinfonia, onde se percebe uma forte influência de Bach. O 4º movimento afirma de forma indubitável o caráter sombrio e pessimista da obra, mas também ergue-se imenso, imponente, majestoso, como uma montanha castigada entre a tempestade. É uma definitiva obra de crepúsculo, o sol se põe ao final da sinfonia em um horizonte avermelhado...

Certa vez, escrevi um pequeno poema após ouvir a 4ª sinfonia. Eu o incluí em meu livro lançado recentemente, Poemas do Fim e do Princípio. Certamente, o poema não está à altura da obra de Brahms, mas creio que diz algo sobre ela. Aqui está ele:

Sinfonia nº 4

pelo outono do inverno de amar
atemporal tempestade
na sede que sedia meu sonho
a tormenta atormenta de sede

vós temporais sede
a sede de minh’alma acabada
a última de Brahms
que brames na última
tempes-tarde demais
não me a(l)mas
como não cometas
do céu caídos
em fim-nados
que vir já há-de
em mar-revolta
revolto
resignado
morrer de sede
na Tempestade

04 abril 2010

Adeus aos Gorilas (e Outras Notícias Tristes)


Talvez isso pouco importe aos leitores. Talvez não importe quase nada. Tudo bem, talvez não importe coisa nenhuma. Mas vou dar a notícia mesmo assim. Eu, como sou alguém trágico em demasia, dou atenção a tais futilidades.

Bem, os gorilas, aqueles macacos gigantes e que criaram fama nos filmes do Tarzan, estão a um passo do fim definitivo na natureza. É, estão quase extintos. Dentro de menos de 10 anos, dizem os biológos, essa gente chata, não haverá mais nenhum na natureza, só poderão ser vistos em zoológicos.

Os gorilas vivem (por enquanto) nas selvas equatorias da África Central. O que acontece lá? Só horrores e barbaridades. Primeiramente, as guerras civis e limpezas étnicas obrigaram multidões a se refugiarem nas selvas para não serem mortos. E lá, essa gente não tem ajuda nenhuma. Não sei por que os países ricos que tanto gostavam de explorar a África, como a França, a Inglaterra, a Bélgica, a Alemanha, Portugal, não ajudam esse pessoal agora. Que ingratidão... E os EUA, por que não se metem lá também? Eu não entendo.

Pois a gente que foge para a selva, não tem ajuda nenhuma, mas tem fome. Caçam os gorilas. E mesmo que não caçassem, o desmatamento para vender madeira para os ricos está acabando com as reservas dos simpáticos macacos. E mesmo que não houvesse madeireiras, há as companhias de mineração, que querem, é claro, o ouro nosso de cada dia. E já poluíram sabem quantos rios lá na África Central? 250. Isso, poluíram com mercúrio e outros venenos 250 rios. 250 rios... Eu, que sou melodramático, tenho vontade de chorar. Assim, não há gorila que aguente. Nem gorila, nem qualquer outro bicho.

Os governos de lá até que pagam uns pobres guardas esfomeados e heróicos (heróicos mesmo, viu, Pedro Bial, seu imbecil...) pra vigiar as reservas, mas os mineradores e madeireiros já mataram nos últimos anos mais de 150 guardas. Alguém teria coragem de ir pra lá vigiar os gorilas? Eu, que sou muito cínico, confesso: eu não.

De modo, que não há esperanças pra esses bichos, amigos leitores. Os gorilas, assim do jeito que está, logo deixarão de existir. Grande coisa, né? Olhem que talvez seja... Esperem pra ver....

Bem, eu ainda teria mais notícias tristes, por exemplo: sobre os corais da Austrália, sobre os ursos do Ártico, sobre os orangotangos da Indonésia, sobre os diabos da Tasmânia, sobre os guepardos do Quênia, sobre os elefantes da Índia, sobre os lobos do Canadá, sobre os tigres da Rússia, sobre os guarás do Brasil... mas... deixa pra lá, eu sou triste demais mesmo...

E assim caminha a humanidade...

03 abril 2010

Agora é Tarde...

morreste
e já não sabes
que não és o que foste
e talvez nem foste
aquilo que em ti te morreste
deixaste acabar-te os olhares
e quando olhaste ao acima
já te estavas abaixo
do palmo a palmo do sonho enterrado

morreste
e por morreres pensas que vives
temendo tudo que é alto
te contentaste em varrer o teu pó
deixaste escorrer os teus astros
desbotaste todas tuas noites
naufragaste pelos teus castelos
e defecaste sobre teus lagos

e tudo isso enquanto sorrias
por entre as certezas suínas
que enlamearam o céu da tua boca
enquanto degustava o açúcar...

fitaste a arte
com os olhos fechados...

morreste
e agora já é tarde:
teu sol já não bate
e teu peito não arde.

02 abril 2010

Um Cavalo que me Espia

Certa noite, dormia tranquilo em minha cama, quando acordei de súbito. Acordou-me a respiração ofegante de um cavalo me espiando pela porta do quarto. Ainda lembro de seus olhos profundos e esbugalhados, negros, mas de um negro esverdeado que causava anômalos calafrios. Calafrios estes que não me eram desagradáveis, mas apenas estranhos. O cavalo fitava-me intensamente, como se quisesse dizer algo, mas não emitia nem um som além do de sua respiração. Em seguida, abriu-se com uma forte lufada de vento a janela de meu quarto. A fria aragem noturna penetrou em forma de uma névoa esbranquiçada...

Não entendia por que aquele cavalo permanecia ali imóvel, olhando-me de forma tão insistente, apenas movimentando a cauda e as patas, vez que outra. Tinha certeza absoluta que estava acordado, toda hipótese de que tudo fosse um sonho foi totalmente descartada. O que sei é que de maneira canhestra aqueles olhares espectrais em meio à névoa levavam-me a pensar e a sentir coisas completamente absurdas, sem o mínimo sentido.

Pensei, em um momento, em uma música que eu havia composto, música sublime, da mais alta inspiração, que nos transmitia sensações inefáveis... Mas ninguém gostou dela. Aliás, ninguém queria escutá-la, diziam que era perda de tempo, que a música era longa demais, de difícil audição... Ninguém a escutou, ninguém a sentiu. É que a música falava de coisas tristes, falava da morte, e ninguém quer saber da morte. Porém, há um detalhe crucial nesta música que fiz: eu nunca a fiz. O cavalo que me fazia pensar que havia feito. E era como se fosse verdade. Talvez fosse verdade.

Agora o cavalo movimentou seus olhos. São maiores do que pensei. Alguma alma se movimentou por trás daqueles olhares fantasmagóricos. Ele os dirigiu para algum canto de meu quarto. Havia algo ali que eu não podia distinguir. Pela janela escancarada pude contemplar a angústia da lua cheia. Estava maior do que o normal. A névoa pálida permanecia entrando, cada vez mais densa. Foi só nesse instante que pude divisar algo sobre o cavalo, um vulto, um ser movimentava-se em seu dorso. Mas era como se ele não estivesse ali, e creio, todavia, que estava desde o início, muito embora eu houvesse visto vazio o dorso marrom do cavalo. Repito, o dorso estava vazio, eu tinha tanta certeza...

Mas agora eu ali vislumbro uma mulher vestida de verde, extremamente bela, cabelos longos e verdes, olhos verdes, pele levemente esverdeada, lábios verdes, sustentando em suas mãos uma taça contendo um líquido verde. Ela e o cavalo me olham fixamente. Ela vai dizer algo... Vou fechar a janela...

(Pode não parecer, mas este conto encerra-se aqui.)

Poema Publicado em Zero Hora


Meu poema "Lembrança" foi publicado na edição de ontem do jornal Zero Hora, no Almanaque Gaúcho. Agradeço ao almanaque pela publicação. No entanto, infelizmente, faltou o último verso, o qual é importantíssimo para a total compreensão do poema. Aqui está o link de meu blog com o poema completo: http://artedofim.blogspot.com/2010/03/lembranca.html

A última estrofe do poema, com o último verso, seria esta:

"se cada vez mais
me aprofundo na sombra
é pra fincar tua bandeira
nos abismos em que hás de brilhar
inclusive
dentro de mim"

01 abril 2010

Fernando Pessoa e Seus Passos da Cruz XII


Continuo postando os sonetos de Passos da Cruz de Fernando Pessoa, conforme explicado na seguinte postagem: http://artedofim.blogspot.com/2009/12/fernando-pessoa-o-predestinado-passos.html . Na próxima semana, o 13º passo. Na imagem, o quadro "Jovem Camponesa com Um Bastão", de Camille Pissarro.

Passos da Cruz - Soneto XII

Ela ia, tranquila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Segui-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha...

"Em longes terras hás de ser rainha
Um dia lhe disseram, mas em vão...
Seu vulto perde-se na escuridão...
Só sua sombra ante meus pés caminha...

Deus te dê lírios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás, rainha não, mas só pastora _

Só sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...


(Receba gratuitamente o zine Poemas do Término e Contos do Fim em sua versão digital. Para receber a edição 38, basta deixar aqui seu e-mail)

31 março 2010

"O Brasil Não é Um País Sério"


"Le Brésil n’est pas um pays sérieux"(O Brasil não é um país sério). Foi o ex-presidente da França, Charles de Gaulle, que afirmou tal verdade, nos anos 60. Sim, desgraçadamente, é uma verdade. Eu poderia dar mil e um motivos para isso. E estou certo que o leitor conheceria todos eles. Mas vou deixar apenas um exemplo, um vergonhoso exemplo.

Acessando um site de notícias, a excepcional manchete que me saltou aos olhos, com destaque, dizia algo de uma importância extrema... Dizia que a aluna que foi à aula com uma minissaia que permitia ver suas calcinhas (lembram dela?) vai agora lançar uma grife de vestidos "provocantes", aproveitando-se da polêmica e de todo o destaque dado pela mídia ao caso, com o objetivo de ganhar muito dinheiro.

Não lembro o nome da moça, e faço questão de não lembrar, nem vou me dar ao trabalho de procurar no google. Muito menos gostaria de estar falando sobre isso. Mas isso prova o que afirmou De Gaulle: O Brasil não é um país sério. Não é, não pode ser. Se fosse sério, não aconteceria aqui de uma moça que vai com uma minissaia à aula virar manchete nacional. E pior, ficando famosa com tamanho absurdo, aproveitando-se de todo seu destaque, lançar uma grife e, provavelmente, enriquecer por um dia ter mostrado as calcinhas na faculdade.

Aqui, enriquece-se por mostrar as calcinhas. Ou enriquece-se por ficar alguns meses trancado em uma casa de luxo transando e falando imbecilidades. E pior: enriquece-se, fica-se famoso, torna-se manchete em todos os jornais e vira-se herói ou heroína nacional. Não, o Brasil não é um país sério.

Agora, os verdadeiros heróis brasileiros, aqueles que produzem nas artes, nas ciências, na cultura em geral, na educação, os que defendem nosso meio-ambiente com unhas e dentes, esses não viram manchetes, não têm "ibope", não enriquecem, não ficam famosos, não são reconhecidos como aquilo que autenticamente são: heróis. E depois querem que eu não concordem com o de Gaulle? Querem que afirme uma patriotada idiota: sim, o Brasil é sério sim... Gostaria de dizer isso, mas os fatos me impedem. O povo me impede. Povo idiota, país idiota.

E, para completar, naquele site onde a manchete principal era sobre a grife "provocante" da moça que mostrou as calcinhas, lá, num canto, bem pequeno, dizia algo sem importância: "Brasil ainda é o país que mais desmata no mundo". Sim, isso não tem importância nenhuma, em um país que não é sério. O Brasil é uma piada.

29 março 2010

Destino...

animais-irmãos que vos extinguis
a que oculto
o mistério vos leva...?
o que vos leva
a que mistério é oculto?...

quando vos fordes
ocultai convosco
o que me mistério
quando partirdes
deixai que parta o que deixo
o que se parte em meu peito
carregai ao longe
o longe que pulsou no que sinto
não deixeis comigo
meu pulso que sangrou pela terra
o derramar do meu verso
pela morte que erra
escondei o que me esperanço
nos confins a que vos destinais...

quero esquecer-me de mim
em vossos eternos jamais...

mas guardai em vossas almas
a minha arte dos tardes
guardai-a
para quando voltardes...

28 março 2010

As Almas do Fantástico na História do RS – História 6ª: O Último (Final)

- Eu sei que vou morrer. Não preciso da tua ajuda. Eu sou o último. E quando eu morrer, morrerá comigo o meu povo. O meu povo era o mais bravo desta terra que tu agora pisas. O meu povo era o dono desta terra. E o meu sangue, que se mistura a ela agora, faz parte dela e a ela voltará. Vocês, que agora pisam na terra que era nossa, são uns covardes. Não souberam lutar como verdadeiros guerreiros, vieram aos milhares para massacrar meu povo com armas de covardes. Mas nós resistimos até a última gota de sangue, e a última gota será a minha.

- Sim, mas isso faz muito tempo, eu nem era nascido, nem meus avós o eram. Eu não tenho nada a ver com isso, sinto muito pelo teu povo, mas só o que posso fazer agora é te ajudar...

- Eu desprezo a tua ajuda. Vocês queriam nos fazer de escravos, mas não conseguiram, nós resistimos até o último homem, e o último homem sou eu. Queriam nos pacificar, nos domesticar, nos impedir de correr livres e soberanos pelos campos. Pelos campos que eram nossos. Mas nós, nós não permitimos. Nós preferimos a morte a ser domados pela covardia e pela desonra do teu povo. Queriam nos impor os seus costumes, seus hábitos, suas crenças, mas não conseguiram. Vocês são fracos. Tão fracos que fomos nós que empurramos a vocês o que nós somos, ou éramos.

- Sinceramente, eu não estou te entendendo...

- O teu povo não conseguiu fazer com que nós vivêssemos como vocês queriam. Nós resistimos, lutamos até a morte, como os guerreiros terríveis que somos, matamos muitos dos de vocês, vendemos muito caro o nosso fim, mas jamais fomos domados. Somos da guerra, da luta, somos livres como o vento, fortes como o sangue. Mas vocês, vocês agora querem ser como nós... Até os nossos costumes vocês pegaram pra vocês, querem nos imitar. O churrasco que vocês comem, fomos nós que inventamos, a carne assada com fogo de chão em espeto de pau. O mate, o mate é nosso! A erva-mate faz parte do nosso sangue. E essas boleadeiras que vocês usam? E o xiripá? E o pala? Tudo nosso, tudo foi imitado do meu povo. Vocês quiseram nos impor os costumes de vocês... Haha! Mas, no final, foram vocês que se dobraram aos nossos. Porque nós nunca nos dobramos, nunca nos curvamos!

- Sim, devo confessar que tu tens razão... Muitos dos costumes dos gaúchos foram herança de alguns grupos indígenas do pampa. Mas... me diga quem és tu? De onde vens, qual tua tribo? Jamais soube que tivesse índios por aqui...

- E olha agora para estes campos, estas matas, estes rios estes animais... Eles estão todos morrendo, vocês, povo de covardes, estão os matando. O meu povo amava tudo isso. Eu falava com os animais, sim, eu os compreendia, e eles me compreendiam. E foi por conversar com os animais que nos tornamos grandes cavaleiros, os melhores destes campos. Eu conversava com as plantas, com as árvores, tratava-as com amor, como se fossem gente, e elas me curavam das minhas doenças. Eu falava com as águas, com os ares, com a terra, eu sabia que eles também tinham alma, eu falava com a alma deles. E assim eles nos ajudavam, e assim meu povo vivia, em paz com a natureza e com seus filhos.

Mas o teu povo de covardes, o teu povo sem respeito, sem honra, sem alma, não vê alma na natureza, só vê nela coisas a serem usadas, a serem destruídas. O teu povo está espalhando a morte por estes campos, matas e rios. E quem espalha morte vai colher morte. E é o que virá pra vocês. Vocês pensam que a natureza e seus filhos ficarão quietos pra sempre, que eles não irão se erguer para impor a sua força de justiça... Mas eles virão, eles se erguerão com fúria e colocarão tudo novamente em seu devido lugar. Então eu terei pena de vocês... Não, não terei pena nenhuma, o teu povo terá o que merece. Eu sinto no ar, sinto o cheiro da guerra que a natureza prepara aos poucos...

- Sim, mas...

- Ah, tu queres saber quem eu sou... Eu sou o último. O último dos Minuanos, os índios mais bravos, os mais guerreiros, os mais indomáveis que já pisaram estes campos. Aqueles que foram covardemente massacrados por vocês com suas armas de fogo e com muitos mais homens do que nós. Mas o meu sangue, o nosso sangue está vivo, e vivo ele volta a esta terra de que faz parte e fará parte da guerra que virá, fará parte da nossa vingança...

E após alguns opressivos segundos, o índio faleceu, esvaído em sangue. Tentei, então, aproximar-me de seu cadáver para examinar alguns sinais estranhos desenhados em seus braços, mas nesse instante... me acordei. Sim, estive desacordado por todo esse tempo, completamente inconsciente, que creio que não foi muito longo, pois ainda raiava o sol.

Acredito que por efeito de alguma substância tóxica do espinho perdi a consciência por alguns minutos. Então, o índio e toda a sua conversa não passaram de alucinação? Sonhei? Tive uma visão? Seja como for, tudo me pareceu pungentemente real. Tão real quanto o meu sangue que ainda estava sobre as pedras da margem do rio, o meu sangue, em que há o sangue dos índios do pampa...

(Obs.: as 7 histórias que compõem esta série estão relacionadas entre si, mas são independentes, ou seja, uma não é a sequência da outra. Todas as histórias são baseadas em fatos reais e misteriosos da história do RS, mas seu desenvolvimento é fictício. A 7ª história ainda não foi finalizada.)

27 março 2010

As Almas do Fantástico na História do RS – História 6ª: O Último


O crepúsculo caía lento. Mas parecia mais denso, mais dramático, mais carregado que o normal. Atravessando aquele imenso campo ancestral que parecia infinito, inexplicavelmente fui invadido por uma estranha tensão. Deveria chegar à fazenda antes que anoitecesse completamente. Apressei o passo.

Uma gigantesca mata surgiu diante de meus olhos cansados, quando atingi o alto da coxilha. Um lindo espetáculo se descortinou, um bosque de um verde puro e intenso, com imensas árvores frondosas, algumas delas paradisiacamente floridas. Porém, a tensão, o insondável nervosismo que me afligiu sem que eu encontrasse uma explicação plausível para ele não se arrefeceu, pelo contrário, ele se intensificava mais e mais.

Deveria atravessar a mata e, mas adiante, o riacho que nela se ocultava, para atingir o outro lado e, finalmente, chegar ao campo que me levaria à fazenda. O sol ainda brilhava, mas não poderia perder tempo. Caminhei rápido em direção à mata e penetrei em sua beleza deslumbrante e misteriosa, sentindo que o pulsar de meu coração tornava-se mais célere. Minha inquietação era sobremaneira anômala. Anômala porque não era a inquietação natural, compreensível, de quem entra em uma mata fechada sem saber exatamente o que ali poderá encontrar, correndo o risco de entrar em contato com serpentes e outros animais perigosos. Minha inquietação relacionava-se com algo que me parecia bem mais ameaçador e enigmático, que eu não saberia dizer a mim mesmo o que poderia ser. Sentia apenas uma sombria intuição, um pressentimento angustiante, como se alguma coisa de anormal, de sobre-humano, estivesse para acontecer.

Todavia, eu não tinha outra saída, a não ser entrar e atravessar toda a mata. Obviamente, ao fazê-lo, minha cautela era enorme. A rapidez com que caminhava pelo campo deu lugar a um avanço muito lento por entre a vegetação fechada do bosque. Conforme penetrava na mata de árvores imensas e regada de arbustos, trepadeiras e plantas rasteiras, meus receios e angústias inflamavam-se.

Cada local em que pisava era por mim observado com extrema atenção. Dirigia meus olhares para todos os lados, para o alto das árvores, para seus galhos, na terrível expectativa de avistar algum perigo em potencial. Porém, atingi o riacho sem nada divisar de ameaçador, vi tão somente alguns animais inofensivos.

Atravessei o belo e pequeno rio em um trecho onde ele era bastante raso. Poderia ter aproveitado melhor aquelas agradáveis e límpidas águas, no entanto, minha tensão não me permitiu. Nervoso, já na outra margem do rio, ainda com muita cuidado, ia entrando novamente na mata, quando senti dolorosamente que algo espetou meu antebraço esquerdo. Havia cravado um enorme espinho que se aprofundou em minha pele. O espinho era de um alto arbusto de uma espécie para mim desconhecida. Retirei-o de meu braço, e o sangue escorreu abundantemente. Senti então uma febre no local e uma leve tontura, e imediatamente imaginei que poderia haver no espinho alguma substância tóxica. Como a tontura não passava, sentei-me na margem do rio, sobre algumas pedras, não poderia prosseguir naquele estado.

Creio que alguns minutos após sentar-me, ainda levemente tonto, principiei a ouvir um som estranho advindo da outra margem. Voltei-me para ela e lá e contemplei um homem sentado nas pedras que apresentava um grave ferimento no peito, o qual sangrava abundantemente. O homem era, sem dúvida, um indígena, um típico índio, aliás, que eu nem sequer suspeitava que pudesse existir por aqueles campos, não obstante eles terem sido habitados por povos indígenas pampianos há séculos.

O índio era jovem, não devia ter mais que 25 anos de idade.Vestia somente uma calça de estilo bastante antigo. Da cintura para cima, o índio estava nu, e os seus pés, descalços. Possuía uma aparência aguerrida e robusta, um rosto de traços fortes e duros e um corpo aparentemente bastante possante. Porém, demonstrava uma profunda extenuação, quase uma agonia. O lado direito do seu peito trazia um considerável buraco, o qual, tudo indicava, fora feito a bala.

O seu sangue jorrava incessante, derramava-se por todo seu corpo e misturava-se às pedras, à areia e à água do rio. Sua respiração começava a ser estertorante. Levantei de onde eu estava e tentei, ainda que com muito receio, aproximar-me para ajudá-lo:

- Não, não te aproximas. Se vieres perto de mim, te mato! Pra isso ainda tenho forças.

A voz do índio, apesar de fraca e quase soluçante, era expelida com uma intensa determinação, a qual assustava, pois se combinava com um olhar firme, fulminante, enfebrecido. Seu sotaque soava bastante estranho, porém compreensível. Detive-me e retorqui:

- Mas assim como estás, vais morrer. Precisas de ajuda.


(Amanhã, o final - Na imagem, o quadro "Moema", de Victor Meirelles)

26 março 2010

Lembrança

luz que adeja sobre meu sonho
não pensas que eu te esqueci:
sei do teu canto vasto pelos finais
sei que te acimas, sei que te imensas
ouço teus dedos, cheiro teus olhos
não pensas que te descri
dos mares em que te oceanas
do sempre em que tu te eternas
do todo em que te infinitas...

por ti
eu caí das verdades
mergulhei no que erra
abismei-me no Fim

se cada vez mais
me aprofundo na sombra
é pra fincar tua bandeira
nos abismos em que hás de brilhar
inclusive
dentro de mim

25 março 2010

Petição para a Nestlé

Amigo leitor, peça à Nestlé para que pare de comprar óleo de palma de florestas devastadas. Assine a petição:

http://www.greenpeace.org.br/kitkat

E assista ao vídeo no mesmo link.

Obrigado.

Nestlé Devastando Florestas Tropicais


Que a Nestlé é uma das maiores empresas alimentícias do mundo todos sabem. Porém, poucos são os que sabem que ela está envolvida na destruição de florestas tropicais na Ásia, particularmente nas da Indonésia. Por que será que a grande mídia não divulga tal fato no Brasil? Grandes são as manifestações na Europa para que a Nestlé pare de comprar óleo de palma de plantações que se proliferam conforme as florestas tropicias do Sudeste Asiático são devastadas.

Sim, é exatamente isso que acontece. As florestas da Indonésia e do outros países estão sendo varridas do mapa para a plantação de palmas que produzem óleo para chocolates, do qual a Nestlé é a maior compradora. Ou seja, estamos comendo chocolate à custa do massacre de uma das maiores, mais ricas e mais importantes florestas tropicais do mundo.

Até o ano passado, este mesmo óleo era comprado pela Unilever para a fabricação do sabonete Dove. A pressão foi tão grande sobre a empresa na Europa que ela anunciou no final do ano passado que rompeu com os plantadores de palma da Indonésia. Mas a Nestlé continua.

A Nestlé, que tem como seu símbolo um ninho com pássaros... Que ironia... Quantos milhões de ninhos e pássaros será que a Nestlé já ajudou a destruir pelas florestas do mundo afora? Seria cômico, se não fosse trágico.

Todos falam na preservação da Amazônia. Mas só a Amazônia? E as outras florestas? As outras podem ser destruídas? Ainda temos 80% da Amazônia. Deveríamos ter quase 100%. Mas das florestas tropicais da Indonésia, de uma exuberância tão imensa quanto a amazônica, restam apenas 50%. É uma das florestas de maior biodiversidade do planeta, sua biodiversidade animal é ainda maior que a da Amazônia. É o onde vive, por exemplo, o orangotango, cada vez mais ameaçado de extinção, para que os seres humanos tomem banho com sabonetes de luxo e comam chocolates mais cremosos.

De minha parte, não comprarei mas produtos Nestlé, não até que tenha certeza que a multinacional não esteja mais comprando óleo de áreas de florestas devastadas. Se é que é possível ter tal certeza... E seria demais pedir aos leitores que também não consumam mais produtos Nestlé? É, talvez seja...

Até quando o homem se empenhará ao máximo para tornar a Terra um inferno? Até o dia em que a natureza dizer basta. E ela já pronuncia o "b"... A salvação do planeta é o fim da humanidade...

(Na imagem, o contraste nítido entre a floresta intocada e a área destruída devido à plantação de palmeiras para a produção de óleo na Indonésia.)

24 março 2010

Algumas Fotos do Lançamento de Meu Livro Poemas do Fim e do Princípio





Deixo algumas fotos do lançamento de meu 2º livro, Poemas do Fim e do Princípio, ocorrido dia 20/03/2010, no centro cultural de Santiago. Mais uma vez agradeço a presença de todos.

23 março 2010

Fernando Pessoa e Seus Passos da Cruz XI


Continuo postando os sonetos de Passos da Cruz de Fernando Pessoa, conforme explicado na seguinte postagem: http://artedofim.blogspot.com/2009/12/fernando-pessoa-o-predestinado-passos.html . Na próxima semana, o 12º passo. Na imagem que acompanha o poema, o quadro "Anjos Rolando a Pedra do Sepulcro" de William Blake.

Passos da Cruz - Soneto XI

Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E oculta mão colora alguém em mim.
Pus a alma no nexo de perdê-la
E o meu princípio floresceu em Fim.

Que importa o tédio que dentro de mim gela,
E o leve Outono, e as galas, e o marfim,
E a congruência da alma que se vela
Com os sonhados pálios de cetim?

Disperso… E a hora como um leque fecha-se…
Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar…
O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se…

E, abrindo as asas sobre Renovar,
A erma sombra do voo começado
Pestaneja no campo abandonado…

22 março 2010

a Ele

ó Tu
Rio sem fim
que percorre o universo...
quatro letras de arcanos
tem o Teu nome no eterno...
os Teus coros de anjos
elevam-nos em luz e sombra
às alturas do céu da alma...
Tu nos consolas na dor
e na calma...
Tua mão de Pai
engendrou a música das esferas
criou mundo e sonhos
astros e quimeras...
Teu espírito paira
pelo espaço pela noite pelo mar
Teu coração
nos ensinou a amar...

Dirão que Tu és DEUS...
Mas Tu és BACH.

(Poema em homenagem aos 325 anos de Johann Sebastian Bach, comemorado ontem, dia 21/03/2010. Lembro aos leitores que Bach significa "rio" em alemão.)

21 março 2010

Agradecimento

Esta postagem é extremamente simples: venho deixar meus sinceros agradecimentos a todos os amigos que estiveram presentes no lançamento de meu livro Poemas do Fim e do Princípio. Espero ter correspondido às suas expectativas. E espero que a obra não decepcione aos que a adquiriram.

Agradeço em especial ao Giovani Pasini, por seu imprescindível auxílio na organização do evento; à profª Rosane Vontobel, por sua perfeita análise da obra; à Janice Trombini, por sua competente assistência no protocolo; ao Luiz Paulo Milani, pela ajuda na distribuição do material; à Liziane Serafini, pela excelente atuação como fotógrafa.

Todos os que estiveram presentes, e os que não puderam comparecer por motivo de forças maiores, merecem meus mais profundos agradecimentos. No ano que vem, pretendo lançar meu 3º livro, e conto com todos vocês novamente.

19 março 2010

Poemas do Término e Contos do Fim nº 38 em Versão Digital e Gratuita


A edição 38 do zine literário Poemas do Término e Contos do Fim será lançada amanhã, dia 20/03, juntamente com meu livro Poemas do Fim e do Princípio. Incluirá o conto "A Lenta Morte da Bela Mulher" e mais 3 poemas que não estarão no livro.

O zine 38 virá com uma importante inovação: será distribuído também digitalmente, gratuito como a versão impressa. Para recebê-lo, basta que o leitor me passe seu e-mail, que então ele será enviado.

Em Santiago, os pontos de distribuição da versão impressa são os seguintes: locadoras Fox, Classic e Stop, biblioteca pública, biblioteca da Uri, Ponto Cópias e Livraria Santiago. Pode ser enviado para qualquer cidade do Brasil ou exterior, mediante o pagamento das despesas de correio.

Agradeço a colaboração dos seguintes amigos na distribuição do zine em outras cidades: Liziane Serafini (Santa Cruz do Sul/RS), Luana Serafini (Santa Maria/RS), Alberto Ritter (Porto Alegre/RS), Gracieli Persich (Santo Ângelo/RS), Louise Wagner (São Leopoldo/RS), Marcus Vinícius Manzoni (Frederico Westphalen/RS), Lilene Leverdi (São Gonçalo/RJ), Héder Duarte (São Gonçalo/RJ), Agnes Mirra (Goiana/PE) e Paulo Soriano (Salvador/BA). Agradeço também ao amigo Guilhermes Damian pelo excelente trabalho de design do zine.

18 março 2010

ARCAHDIA

O site Arcahdia, dedicado aos novos escritores brasileiros de literatura fantástica, criou uma página para divulgação de minhas obras. Para acessá-la:
http://arcahdia.webnode.com.br/alessandro-reiffer