Que a música brasileira (e não só a brasileira, o lamentável fenômeno é mundial) caiu drasticamente em qualidade nas últimas décadas, tanto no que diz respeito à música em si, à sonoridade, quanto às letras que a acompanha, é algo sabido de todos. Claro que há exceções. Mas o que vemos (ou ouvimos), de um modo geral, são músicas extremamente pobres, sem riqueza ou originalidade tanto de ritmo quanto de melodia, com padrões de sonoridade batidos e repetitivos, quase nada sai do medíocre lugar comum.
E quanto às letras, a situação é ainda pior. Em muitos casos, chamar certas "letras" de letras é uma ofensa à palavra. Em outros, ainda que a letra diga alguma coisa, o que diz é tão raso, tão sem graça, tão igual a milhares de outras letras, tão "mela cueca", que chega ser abaixo do nível do "comum". Bem, mas o que esperar de um país dominado, desde antes do século XXI, por essas coisas caça-níqueis dos otários, como o dito funk, o axé, o pagode que não é samba, o sertanejo universitário que não é sertanejo...?
Abaixo, publico trechos de uma entrevista com Marcelo Sandmann, professor de Literatura da Universidade do Paraná (UFPR), que analisou as letras das 100 músicas mais tocadas nas rádios brasileiras. Vamos ver a que conclusão o professor Marcelo Sandmann chegou (a entrevista pode ser conferida na íntegra aqui):
Todas as letras, sem exceção, tratam de relacionamentos amorosos. Esse “monotema” indica uma falta de preocupação com outros objetos?
Sim, as letras tratam exclusivamente de relacionamentos amorosos, o que chama especialmente a atenção, pois outros temas, mesmo que em menor escala, também costumam ser frequentes na canção popular. Um assunto muito presente, e com tratamento variado, seja, por exemplo, no samba dos anos 30 e 40, no baião dos anos 50, na canção de protesto dos anos 60 e 70, ou no rap mais recente é a questão social e/ou política, ausente dos exemplos aqui trazidos. O conflito não se dá apenas do “eu” com o parceiro amoroso ou algum rival, mas também em relação a situações de desigualdade social, carência material, opressão política etc.
Embora o sertanejo predomine, não há tematização da cidade, do campo, ou do deslocamento, por exemplo. Algum palpite sobre o motivo?
O “sertanejo” aqui já não pode ser entendido no sentido primeiro do termo, como uma música oriunda do “sertão”, ou do campo em oposição à cidade, e que apresentaria, portanto, questões como origem rural, deslocamento, nostalgia da origem, confronto cultural e social com o meio urbano ou adaptação a ele como assuntos importantes, conjugados à temática amorosa. O “sertanejo” aqui se define muito mais como um gênero já consolidado, com determinadas convenções de composição, arranjo, instrumentação e performance que remetem a uma certa tradição “sertaneja”, mas que na verdade já se deslocou em relação a ela. Trata-se de uma música absorvida pelo mercado, com um público alvo específico e que circula como um produto, dentro dos padrões que regem a produção e circulação de bens de consumo. Não é à toa que diante de toda essa onda, aparecem sempre aqueles que defendem o “sertanejo legítimo” ou a “música caipira de raiz”, o que daria espaço para vários outros questionamentos e reflexões.
Algum palpite sobre por que esses são os temas (e o gênero) que dominou as FMs? Certamente há outras produções, inclusive mais interessantes, que até já dominaram a cena em outros momentos. Há um “empobrecimento” da música brasileira?
Se considerarmos variedade formal e temática, maior complexidade musical e poética como valores positivos, há um evidente empobrecimento da música popular brasileira. Esse sertanejo urbano e massificado passou a dominar o mercado na passagem dos anos 80 para os 90 (Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo, entre outros) e hoje, com seus herdeiros, impera nas FMs de maior difusão e está muito presente nas televisões abertas, mas não só. Penso que em alguma medida é uma reação da grande indústria da música e do showbizz à ampliação da produção e fragmentação da circulação musical nas duas ou três últimas décadas, possibilitadas pelo barateamento das tecnologias de gravação e o acesso à internet como meio de difusão. A forças pluralizantes (democratizantes ou mesmo anarquizantes), contrapõem-se outras, centralizadoras. Uma questão de controle do mercado musical, portanto. Podemos pensar também nas mudanças sociais no Brasil das últimas décadas, com o advento da tão falada “nova classe média”, inserindo novos sujeitos no mercado de consumo, sem que a isso corresponda necessariamente algum tipo de transformação realmente significativa na formação educacional e cultural.
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