Não se podia falar
sobre o assunto. Nenhum comentário. Ninguém podia. Nem nas ruas nem em qualquer
outro local público. Até mesmo em casa era perigoso. Quem o fizesse seria preso
de imediato, caso fosse descoberto. O que não era algo difícil de acontecer, pois
os malditos agentes e espiões do governo estavam por toda parte. Havia escutas em todos os lugares. Era a lei
do novo governo mundial. Foi necessário centralizar o governo da humanidade
para, diziam eles, evitar que o pânico injustificado e errôneo se espalhasse
por todos os cantos do planeta e então imperasse o caos. Qualquer um que
falasse do assunto era considerado criminoso porque com sua irresponsabilidade
alarmista e desinformada estaria espalhando um pânico talvez fatal por entre a
população pouco esclarecida. Essa era a justificativa deles. Dos membros do
governo mundial.
Claro que o governo
mundial era formado por membros dos países ricos. Ou que se achavam ricos. A
interminável e crescente crise econômica, a cada dia agravada pela aniquilação
ambiental e pelas definitivas e radicais alterações climáticas, vem fazendo tabula
rasa das “potências” mundiais. Países subdesenvolvidos, desenvolvidos, em
desenvolvimento... Não faz mais sentido. Tudo faz parte da mesma merda.
Uma puta de uma
mentira, é claro. Primeiro que o caos já impera absoluto há muito tempo.
Segundo que o pânico não só é justificável como somente imbecis mantêm-se
calmos diante da situação absurda em que nos encontramos como espécie,
acreditando nas besteiras estúpidas dos governos e de suas ciências falidas.
Imbecis, ou então pessoas que alimentam uma indiferença suprema, como a minha.
Pouco me importa que a humanidade inteira apodreça. Talvez seja o que
merecemos. A civilização há tempos vem
cavando sua sepultura. Uma hora tem que cair no buraco que cavou.
Mentiras deslavadas,
falsas verdades, silêncios impostos a força (com subornos, ameaças, prisões ou
mortes, por exemplo), versões distorcidas, engenhosas histórias inventadas,
farsas escancaradas, belas e luminosas teorias sem pé nem cabeça, ocultação de
fatos, enfim, o arsenal para manter a população sob controle não tem fim. Mas começa a ruir, e as coisas
começam a se acelerar. Há coisas que já não se pode esconder.
Principalmente,
depois daquele colossal terremoto em terras do Primeiro Mundo. Ou do ainda
chamado “Primeiro Mundo”. Mais de 400 mil mortos. Que se sabe. E mais algumas
dezenas de milhares de desaparecidos. Talvez centenas. Foram pegos de
surpresa. Não paravam mais de achar
corpos. Até que desistiram de procurar. Procurar mais seria fazer a população
se chocar e sofrer desnecessariamente. Diziam. Já estavam mortos mesmo, fazer o
quê? Que importava encontrar ou não agora seus corpos.
A ciência, já em
franca decadência, não havia previsto nada. Ou, se previu, escondeu,
acreditando que conseguiria evitar o pior. Eles sempre tentam evitar o pior. Ou
melhor, dizem que tentam evitar o pior. E que trabalham em prol do bem da
humanidade. Tudo fachada. Conversa fiada
para os palhaços. Trabalham para manter o status quo das coisas. Ou
seja, dominantes e dominados, os que produzem e os que consomem, os que lucram
e os que pagam. E consumir, basicamente, é o grande ideal da humanidade do século
XXI. Poder consumir sempre e mais. E os que produzem convencem muito bem de que
se deve consumir sempre e mais. Mas uma hora tinha que explodir. Só ninguém, ou
quase ninguém, esperava que fosse do jeito que está sendo. Os filhos-da-puta
ainda tentam mascarar com inúmeros atos sórdidos. Mas não está dando. Ele já
está muito perto.
Bom,
mas eu falava naquele terremoto. Aqui na cidade miserável onde vivo também
houve um. O primeiro da história nesta região. Não foi, obviamente, tão intenso
quanto aquele na Europa. Mas matou gente, centenas delas, soterradas pelas ruínas
de prédios. Minha casa não chegou a ser afetada. Mas me ofereci como voluntário
para ajudar a socorrer os milhares de feridos. Cheguei a resgatar, ou tentei
resgatar, uma menina de não mais que seis anos de idade dos escombros. Sua
perna direita estava presa por umas ferragens gigantescas. Não havia como
tirá-la dali. Eu estava sozinho. Chovia. Tive que serrar sua perna na altura do
joelho. Eu havia trazido algumas ferramentas de casa, entre elas minha serra de
açougueiro. O sangue esguichava na minha cara. Os berros da menina eram
insuportáveis. Serrei a perna e tirei-a de lá. Carreguei-a sangrando por quase
um quilômetro em busca de ajuda médica. Não encontrei nenhuma. Pensei em levá-la
para minha casa. Mas seria inútil, eu não poderia fazer nada e ela morreria em
poucas horas. Então, exausto, larguei seu corpo e disse a ela. “Mocinha, não
tem jeito, nem eu nem mais ninguém pode te ajudar”. Ela ainda chorava, chamando
pela mãe, quando morreu.
Prossegui
caminhando pela região do desastre. Já quase mais ninguém ajudava a encontrar
sobreviventes. Talvez não houvesse mais. Parei quando uma mãe se escabelava
pelo filho morto esmagado. Gritava desesperada:
- Aqueles desgraçados, eles são culpados da
morte do meu filho, matem aqueles desgraçados, me ajudem, façam alguma coisa! Eles
são culpados, dizendo merdas, aqueles desgraçados, matem eles, sempre mentindo,
sempre dizendo que tudo está bem, que tudo está sendo controlado, mentirosos
filhos-da-puta, alguém mate aqueles desgraçados, pelo amor de Deus, ajudem uma
pobre mãe!
Então, em poucos
minutos, surgiram três homens com uma pá. Eram homens do governo. Agarraram a
pobre mulher pelos braços e pelos cabelos, arrastaram-na até um canto escuro. Não
perceberam que eu os observava. Mataram a mulher com uns quatro golpes de pá na
sua cabeça. Depois, encheram de ferimentos seu corpo e cobriram-no de barro. Assim,
ela pareceria ter sido tão somente mais uma vítima do terremoto. E a polícia não
investigaria mesmo.
A mulher havia falado demais num lugar público. Mesmo que não houvesse
ninguém naquele merda de lugar devastado, sempre se corre o risco de alguém
ouvir. Eu, por exemplo, ouvi. Tive a sorte de estar escuro e de não me verem. É
como eu disse. Ninguém pode falar nada. Deve-se fingir que não se percebe o que
está ocorrendo. Mas não adianta mais. Ele já veio, já está visível. Não sei que
tipo de mentira estão dizendo agora, não tenho mais acompanhado as notícias
fajutas do jornais, todos controlados pelo governo mundial. Mas a farsa está
ruindo como aquele prédio ali adiante. Aliás, quando o prédio cair, aqui, deste
ângulo em que estou, dará para vê-lo, triunfante.
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