02 junho 2011

Esta é a Tua História (ou O Pesadelo) - Final

As cédulas serão necessárias para o necessário investimento. E a tarde vai passando. Passando como se não passasse. Ou como se passasse de forma total e devastadora. E não deixaste nada de nada. Como se não fosse nada. Mas sendo tudo para ti. O tempo morreu. Foste tu que o mataste.

Finalmente, o momento de deixar o escritório. Alívio. Poder pensar em outras questões... Talvez mais profundas... Talvez mais sublimes... Mas o que há de mais profundo e sublime que o trabalho? E aquele relatório, que não há maneira de concluir, não te abandona a racionalidade. E jamais se finda aquela angústia de ter que fazer o que tens que fazer pelo simples fato de que tens que fazer.

Eras o que pensavas enquanto conduzias dormindo o veículo pelas ruas povoadas. Dormindo não de dormir, embora com os sonhos já sonhasses. Com os sonhos não da vida, mas do sono. Pouco sono, aliás. Que o teu pesadelo voltará... Tu sabes. Mas os sonhos da vida... Estes não germinam na alma empedrada de compromissos.

Na avenida de intenso movimento, um acidente. O motorista da moto morreu. Contemplaste como se nunca morrerás. Com piedade do morto. E refletiste sobre o que iria acontecer com o motorista. Talvez nada. Talvez tudo. O homem pensa em tudo para ter uma vida cada vez mais cômoda. Mais tecnológica. Tecno lógica. Tudo deve ser lógico e confortável... Para isso o dinheiro. Para explicar tudo. Aliás, amanhã deves comprar um sofá novo. Dás duro. Mereces. Mas o motoqueiro morreu. O vermelho do sangue congestionando teus olhos. Para onde ele haverá de ir? Foi no que pensaste. Sabes? Não queres nem saber. Não sabes o porquê de saber? Rapidamente substituído pelos olhos da moça do escritório. Rapidamente substituídos pelo relatório de amanhã.

Chegaste. Belíssimo jardim ostenta tua casa. Mal pisaste nele desde que foi construído. Para não matar as gramas, argumentas para ti mesmo. Sabes que mente. Para não matar teu tempo. Tempo é trabalho. Exausto, a cerveja desceu aliviando teus músculos e nervos. Isso é reconfortante. Principalmente antes da academia, para revigorar.

Tua esposa também chegou. Os olhos da moça do escritório são mais doces que o da tua esposa. Aliás, ela também está muito cansada. Até porque recém chegara da academia. Agora é a tua vez de ir. Beijo no rosto. Tchau. De carro para a academia. Por que não a pé? Ah, a violência. Estás certo. A violência das grandes cidades não combina com a preservação ambiental. Nada combina com a preservação ambiental. Principalmente o homem. Principalmente o mundo de que o homem necessita. Mas não é coisa para se pensar agora. É coisa para se pensar no nunca. Agora pensarás na academia, pois já estás nela. Não, pensas no relatório de amanhã, no sofá que irás comprar, no dinheiro que estão te devendo, no crescente da tua empresa. Estás conseguindo. Mesmo. Só não consegues o que não sabes que queres.

Exercitar-se é um saco, pensaste. Já não aguentas mais. Mas é necessário. Assim como trabalhar. Não fossem os exercícios, talvez a moça do escritório não teria te olhado. Ainda assim, terias bolso.

Em casa, outra vez, que alívio. Nas impossibilidades da vida, os rios límpidos e serenos emitem as vozes aéreas dançantes de tudo que não podes. E elas queimam rápido no teu sentir. Mas é noite, e a noite nunca tarda, e a noite é um réquiem. Descanso. Delicioso jantar escorreu mecânico pelo teu esôfago. Até te sentiste um pouco mal. O jeito foi deitares mais cedo na noite, mesmo com o medo do pesadelo... Na noite que convidava ao amor... Que espécie de amor? O que sentes pela tua esposa? Sentes? Ou o desejo que se intensifica pelo olhar da moça do escritório? Não sabes. Mas certamente era esse tipo de amor que a cumplicidade da lua, que a violência emocional em silêncio da noite te convida. O sonho...

Dormiste pensando em coisas importantes... No relatório de amanhã, por exemplo. No sucesso da tua vida, sem dúvida, plena de sucesso. Mas o pesadelo te despertou. Pesadelos têm por princípio despertar os homens que dormem. Agora, o silêncio da noite era fúnebre como a morte. Havia algo de estranho pairando no ar. Pensaste lento em coisas distantes. O pesadelo foi absolutamente misterioso. Mistério era tudo o que respiravas agora... Estavas certo que nele, alguém ou algo chamou teu nome. No pesadelo, tu não eras tu. Tu fingias que era feliz, mas sabias que não eras. Tentavas enganar a ti mesmo. Em outro momento de teu pesadelo, enlouquecias, eras o mais insensato dos homens, e então te sentias bem.

Acordava sempre imerso na dúvida. Alguma coisa esquisita vibrava em tua alma. Lembravas da música do pesadelo. Estavas certo que era Bach. Talvez não fosse pesadelo, talvez fosse um sonho mirífico. Alguém batia na porta, pesadas batidas. Não tinhas coragem de atender. Sinuoso e enigmático. Densificou-se o alimento de tua respiração. Algo de impalpável te alarmava.

O sopro das narinas em sono de tua mulher intensificava a tensão. Algum oculto flutuava no desconhecido da noite. O Desconhecido... Um sino soava como uma voz de fêmea. O mistério que te falava e que eternamente sustinha suas asas negras sobre tua alma. Que crescia e fitava-te nos olhos, em paroxismos e apoteoses, dizendo-te de tudo que nunca fizeste, que nunca tentaste, que nunca viveste, que nunca beijaste...

Mas amanhã é dia de trabalho. Deves dormir. Tentando esquecer o pesadelo, conseguiste. E horas depois, acordaste para o teu novo dia. Novo... Como seria o teu novo dia? Basta que releias esta história, que é a tua história...

2 comentários:

Vampira Dea disse...

O cotidiano as vezes dá conforto, as vezes faz doer, a morte, a violência , a falta de possibilidades, a falta de amor, ai tudo cotidiano

Ingrid disse...

Reiffer,
pesadelo de vida cotidiana..
muito bom sempre..
beijos..