17 março 2016

da Arte de Não-viver


as pessoas confundiram viver
com o que se faz para viver:
vive-se para o meio
e nunca se chega a um fim

as pessoas confundiram vida
com o preço que se paga pela vida:
apenas se paga o preço
e não se vive

o objetivo da vida
tornou-se o cansaço
e o sentido
o descanso
para que se atinja de novo
o mesmo objetivo
a se cansar

ou seja
vive-se
para se preencher o vazio
de não viver





15 março 2016

Como destruir a Educação de um Estado em 10 lições (com Prof. Sartori)


1 – Dê aumento para si e para todos os seus, inclusive deputados e secretários, e em seguida congele e parcele os salários dos servidores públicos.

2 – Transmita a visão de que os professores são os carrascos da educação pública, de que trabalham pouco e não se sacrificam como deveriam por sua profissão, e que, aliás, ser professor é mais um sacerdócio do que uma profissão.

3 – Coloque a sociedade contra os servidores públicos, fazendo-a acreditar que sem os servidores o estado estaria melhor, e que eles são os responsáveis pelos aumentos de impostos.

4 – Mantenha as injustiças dentro do serviço público, com servidores recebendo  salários absurdos: alguns, absurdos de tão alto, outros, absurdos de tão baixo.

5 – Fique meses sem repassar verbas para as escolas, e que elas se virem do jeito que der.

6 – Mantenha um clima de hostilidade contra os servidores, inclusive com ameaças de demissão caso “não se faça o que o patrão quer”.

7 – Terceirize a educação e a entregue nas mãos gananciosas e inconsequentes da iniciativa privada.

8 – Não só não cumpra a Lei do Piso Nacional, mas também inflija um arrocho salarial histórico, com garantias de que NÃO haverá aumentos por 4 anos.

9 – Não combata a corrupção (leia-se sonegação fiscal), que, se evitada, poderia aumentar a receita e possibilitar maiores investimentos em educação.

10 – E, por fim, após ter garantido as benesses a si e aos seus, construa um discurso de que a educação é prioridade, de que tudo o que está sendo feito é para o bem do povo gaúcho e que esse “bem” exige o sacrifício de todos (menos o do governo e seus deputados).


13 março 2016

"Onze anos como um tiro na cabeça. Eu tinha visto o emprego devorar os homens."


Cartas na Rua é o primeiro romance de Bukowski, e um dos seus melhores. É uma obra carregada de humor ferino e desprezo pelo estilo de vida americano e pela sociedade em geral. O livro conta as suas experiências como funcionário dos correios dos EUA, abordando temas como a exploração do indivíduo pela sistema capitalista, a solidão, a falta de sentido na vida e a mecanização do homem moderno. Tudo permeado de uma sinceridade cruel e de hilárias ironias. Ler Bukowski é dar-se conta de que a civilização que criamos não tem nenhum fundamento. A seguir, um trecho do romance, em que o "Último Maldito" reflete sobre os efeitos inúteis e destrutivos do trabalho:

"Onze anos! Não tinha dez centavos a mais no meu bolso do que quando entrara ali pela primeira vez. Onze anos. Embora cada noite tivesse sido longa, os anos passaram rápido. Talvez por se tratar de um serviço noturno. Ou por fazer a mesma coisa vez após vez. 


Onze anos como um tiro na cabeça. Eu tinha visto o emprego devorar os homens. Eles pareciam derreter. Lá estava Jimmy Potts do Posto Dorsey. Da primeira vez que cheguei lá, Jimmy era um cara musculoso em sua camisa branca. Agora estava liquidado. Colocava seu banco o mais próximo do chão possível e se agarrava para não cair. Vivia de tal maneira cansado que nem cortava o cabelo e usava a mesma calça há três anos. Trocava de camisa duas vezes por semana e caminhava bem devagar. Tinham-no assassinado. Estava com 55 anos. Faltavam sete para ele se aposentar.
- Nunca vou conseguir -  ele me disse.

Ou derretiam ou engordavam, enormes, especialmente na bunda ou na barriga. Era o banquinho, e os mesmos movimentos e a mesma conversa. E lá estava eu, sofrendo de tonturas e dores nos braços, pescoço, peito, por toda parte. Dormia o dia para conseguir descansar e estar apto ao trabalho. Nos fins de semana tinha que beber para esquecer a rotina. Eu pesava 83 quilos quando cheguei. Agora estava com 101 quilos. A única coisa que você mexia por ali era o braço direito."

(Na imagem, "Evening on Karl Johan Street" de Edvard Munch.)

11 março 2016

Lula e a Justiça Brasileira



A Justiça Brasileira é permeada de momentos vergonhosos. Vergonhas que datam de séculos. A condenação de Tiradentes, por exemplo, no século XVIII, salta aos olhos pelo absurdo da sentença, que condenou até mesmo seus netos. No século XX, salvo algumas louváveis exceções, nosso Judiciário não passava da rameira da ditadura militar, subserviente, covarde e conivente com os crimes cometidos em nome da “ordem”. Recentemente, juristas escandinavos tacharam de “inaceitável e absurdo” que magistrados brasileiros estivessem obtendo e “achando bom” tantas regalias, como o infame auxílio moradia, em um país onde a desigualdade social é revoltante.  E a desigualdade social é a origem de quase todos os problemas de uma sociedade. Logo eles, os magistrados, que deveriam dar exemplo de retidão e dignidade. Aqui em Santa Maria, no RS, temos o caso da boate Kiss, cujas decisões da justiça vêm causando uma onda de indignação.


Uma justiça em que não se confia , que não é imparcial, onde um lado da balança pesa mais do que o outro, não pode ser chamada de justiça. Ninguém, em sã consciência, vai levá-la a sério.
Agora, quando o assunto é Lava-Jato, até mesmo uma criança de 3 anos percebe a magnitude da parcialidade do que chamamos de Justiça Brasileira. Está claro, ostensível, escancarado, que a balança só pesa para um lado. Para agradar a opinião das elites e da grande mídia, condena-se de antemão somente uma pessoa, o ex-presidente Lula, como uma forma de se dizer: “Viu, eu não disse? Toda a culpa é de Lula e do PT.”

Obviamente, irão dizer que estou defendendo Lula e seu partido. É que vivemos um momento em que toda análise ou opinião que não diga “Toda a culpa é do Lula e do PT” é vista como defesa dos mesmos. Nunca votei no Lula, nem na Dilma, em um 1ºturno de eleições. Sempre votei em partidos menores e mais radicais. Votei no PT em segundos turnos, onde as opções eram, geralmente, PT contra PSDB. Nesse caso, não tenho a mínima dúvida de em quem votar.  E para falar a verdade, sou contra governos. Sou um anarquista, na minha visão, governos não deveriam existir, nem grandes empresas, nem grandes extensões particulares de terra. E quem acompanha meus escritos já deve ter se dado conta.

Portanto, não tenho porque defender o PT. Julgo, com o direito que tenho de opinar, o governo Lula como o melhor, ou menos ruim, governo que o Brasil teve após o golpe de 64. Teve erros? Muitos. Fez tudo o que se propôs a fazer? Não. Decepcionou? Sim. Houve corrupção? Óbvio. Mesmo assim, foi o melhor. E o motivo é muito simples: ninguém fez mais do que o governo Lula pelas questões sociais, pela redução da desigualdade, no Brasil, desde o governo de Jango. Até porque os demais fizeram muito pouco ou quase nada. Alguns não querem admitir o fato. Mas não deixa de ser fato.


Dito isso, vamos a outros fatos. Lula deve ser investigado? É ostensível que sim. Se for provada sua culpa, deve ir para a cadeia? Só um idiota diria que não. O PT tem culpa no cartório?  Acreditar no contrário é, no mínimo, uma ingenuidade. Só o PT? Todo mundo sabe que todos os grandes partidos estão envolvidos em corrupção, e não é pouca coisa, e não é de hoje. A corrupção nunca foi tão grande com o PT? Não sei. Porque a corrupção durante a ditadura era totalmente acobertada pelo próprio governo e pela mídia. E pior que acobertada: foi mantida às escuras pela censura, pela tortura, pela extradição, pela morte. E os escândalos de corrupção de outros governos, como o de FHC, Collor, Sarney já estão completamente esquecidos, as investigações não foram levadas até o fim, ou foram abafadas, a divulgação pela grande mídia sempre foi bem menor do que está sendo agora. Porque a grande mídia, somente um débil mental não sabe, defende os interesses das elites, pois a grande mídia é da elite. E as elites estão vibrando em ver o PT metido em corrupção, como elas, as elites, sempre estiveram. Foi assim que enriqueceram e se mantiveram no poder. As direitas, que defendem os interesses dos ricos (e que convencem muitos pobres a defendê-las), das grandes empresas, dos latifundiários, dos conservadores, daqueles que querem manter o status quo, porque esse status quo lhes favorece, sempre odiaram o PT. Porque afirmam, entre outras coisas, que o PT “dá” dinheiro para pobres. Não aceitaram perder o poder, que era seu desde a ditadura. 


Não que o PT tenha sido um exemplo de esquerda. Mas foi melhor que qualquer governo direitista, com sua fachada de “ordem e progresso”, que tenha governado o Brasil nos últimos 50 anos. Por essas e outras é que a nossa justiça, que sempre foi elitista, direitista e conservadora, com raras exceções, quer agora colocar a culpa de tudo somente no PT. Que necessidade havia de Lula ser algemado para depor? Só a necessidade da mídia de mostrar um showzinho para os que não querem saber de justiça, querem saber de ver o Lula preso. Lula foi citado por delatores uma única vez. O que já é muito. Mas Aécio, apenas para ficar no “heroí” de muitos que dizem “lutar contra a corrupção”, já foi citado 5 vezes. Onde está o showzinho da “prisão” de Aécio? Eduardo Cunha, que queria o impeachment da Dilma, usando um termo popular, está mais sujo do que pau de galinheiro. Ainda não vi Cunha sendo levado a força e algemado para depor. A quase totalidade da bancada do PP gaúcho na Câmara foi citada na Lava-Jato. Alguém viu algum mandado de prisão preventiva contra algum desses nobres políticos? De modo que repito: a balança está pesando só para um lado. Nossa justiça continua fazendo seus fiascos. 



09 março 2016

mundotrágico

motosserras
motocerros
motossangas
matamorros
matassorros
matadouros

maremotos
maresmortos
maresmudos
mardemonstros
mardemedos
mardemerdas

amazônico
mal-ozônico
magrocórrego
agrotóxico
agrotúmulo

mundocômico

07 março 2016

Concordas?

de nada adiantam
os teus coros a quatro vozes
levados aos quatro ventos
já tantas vezes
já tantas fezes

ou os teus acordes
com cordas
no pescoço
ou as notas da tua missa
que a massa
nem mais nota

humanidade... é inútil:
tu nem acordas
nem tens concerto



05 março 2016

Nível dos mares está subindo e pode elevar-se em mais de 1 metro nas próximas décadas

A notícia divulgada em fins de fevereiro sobre os estudos de cientistas norte-americanos sobre a recente elevação do nível dos oceanos e publicados em revistas científicas dos EUA parece não ter chamado muito a atenção dos brasileiros, preocupados que estão em prender o Lula e deixar o Aécio solto. 

Sou um dos caras que mais enche o saco dos otimistas sorridentes bem-sucedidos, dos crentes na inocência e sublimidade do nossa magnífica e avançadíssima civilização. Agora tenho mais uma postagem para incomodá-los. Claro, eles vão dizer que é tudo mentira, um complô de alguns que estão interessados em acabar com a inocente indústria do petróleo e em denegrir a imagem humana para dar motivos à invasão dos alienígenas.


Bem, a seguir, alguns trechos da mentira deslavada (ou melhor, muito bem lavada nas águas dos oceanos):


"O nível dos oceanos subiu mais rapidamente ao longo do século XX do que nos três últimos milênios, devido às alterações climáticas, indica um estudo publicado na segunda-feira.

Entre  1900 e 2000, os oceanos e os mares do planeta subiram cerca de 14 centímetros, por causa do degelo, principalmente no Ártico, revelaram os autores de estudos publicados na revista científica norte-americana Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).

Os climatólogos estimaram que, sem a elevação da temperatura do planeta observada desde o início da era industrial, a subida do nível dos oceanos teria correspondido a menos da metade observada nos últimos cem anos.

O século passado “foi excepcional em comparação com os últimos três milênios e a elevação no nível dos oceanos acelerou nos últimos 20 anos”, disse Robert Kopp, professor do departamento de Ciências da Terra da Universidade Rutgers, em Nova Jersey, Estados Unidos.


Os investigadores também calculam que o nível dos oceanos pode aumentar “muito provavelmente" de 51 centímetros para 1,3 metro durante este século "caso o mundo continue a ser tão dependente de energias fósseis'."

Aqui, a notícia completa.


03 março 2016

e eu rio

os humanos falam
em planos metas objetivos
e nem sabem
se estão vivos

querem chegar a um ponto
e quando chegam (se chegam)
é só isso
e pronto

o que a vida nos ensina
é que não somos nós
que levamos a vida:
é a sina

as pessoas babam
em planos metas objetivos
e eu rio:
não sabem que o único plano
é ao que nos leva as águas sábias
do rio

01 março 2016

de Quando Morreste*

quando morreste
não que tiveste morrido
mas nem soubeste
o que houveste de vivo
ou que nem és o que foste
e talvez nem foste
o que em ti te morreste:
não tiveste sede
e cedeste

acabou-te o olhar
bem antes do acima
(per)deste-o abaixo
a palmo por palmo
do sonho enterrado
errado

agora
(con)tentaste
em varrer o teu pó
(so)correm-te astros
pelo (v)entre das coxas
e vomitaste nas mesas
entre polenta e certezas
as (des)entranhas já roxas

e sorrias
como quem pensa que ama
deixando à mostra
pelo véu da boca
uma pérola de ostra
e um (re)pasto de lama

e nem há arte
que possa falar-te

*Poema reelaborado e republicado

28 fevereiro 2016

A Literatura feita no Brasil hoje: Chatice e Sorrisinhos

A literatura nacional encontra-se na sua pior fase. Os bons escritores e poetas, os realmente bons escritores e poetas, são raros. Na poesia, entre os mais conhecidos ainda vivos, são bem poucos os que aprecio. Gosto de Affonso Romano de Sant'Anna, Adélia Prado (até por ali), Ferreira Gullar da fase antiga (todos já bastante velhos). Gostava do Manoel de Barros, falecido há pouco, esse sim um grande poeta. Aprecio um pouco também Carlos Nejar, o que não se pode dizer o mesmo de seu filho, Fabrício Carpinejar, um chato de carteirinha. Mas nenhum desses poetas realmente me entusiasma. 

Considero a literatura feita hoje em dia no Brasil, de uma forma geral, claro que sempre há exceções, de uma convencionalidade temática entendiante, e mais ainda, de uma quase total ausência de força, de "pegada", de visceralidade.  Seja na poesia, seja na prosa. É tudo quase sempre muito certinho, comportado, "bonitinho", parnasiano ou piegas. Com algumas louváveis exceções (muitas vezes sem o devido reconhecimento), nossos escritores gostam de ficar passando mensagenzinhas positivas, "construtivas", em prol da "ordem e do progresso", da "edificação" da moral, do "saber levar a vida", enfim, aquela coisa de escrever com sorrisos e simpatia, que não funciona mais em nosso mundo caótico e decadente. Ou então, caem em intelectualismos vazios e insuportáveis. É tudo de uma chatice homérica.  

Faltam aos escritores e poetas brasileiros em geral a agressividade, a perturbação, a maldição, o marginalismo necessários para se dizer algo que valha nos nossos tempos. Falta a sinceridade do que se diz, é tudo infestado de pompas e artificialismos. Nossa situação nas Letras é dantesca. 

E a crítica literária no Brasil é mais imbecil ainda: premia esse tipo de literatura até a exaustão. É só ver quem faz parte da nossa magnânima "Academia Brasileira de Letras".  Olhem com atenção na foto acima: Sarney, Funaro, Roberto Marinho, FHC... É só ver quem são os escritores premiados por aqui. Por exemplo: a mediocridade de um David Coimbra, que só escreve merda. 


Em termos de literatura, nossos hermanos, os argentinos, nos dão de 10x0. Os brasileiros que escrevem deveriam seguir o conselho de Bukowski (um tipo de escritor que o Brasil nunca produzirá), que está em seu poema "então queres ser escritor?":


"a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças."

25 fevereiro 2016

do Lado Bom da Vida

o melhor da vida
é que tudo que fosse vivido
não fosse vivido como sendo
só aquilo que é
mas como algo que estivesse além
como se no momento que se vive
se vivesse um outro alto
mais profundo e mais do ser

como se no momento que se age
se sentisse que há um sonho
que só em sonho vem

ah quem dera eu pudesse
que em qualquer algo que eu faça
ou com qualquer alguém que eu fale
eu tivesse (somente em mente e alma)
os efeitos de uma taça

                             

23 fevereiro 2016

Bairrismo e Atraso


Desde janeiro deste ano, estou morando em Santa Maria. Percebo como os santa-marienses são menos bairristas que os santiaguenses. Não que não tivesse percebido o bairrismo santiaguense antes. É algo que salta aos olhos. Mas agora resolvi escrever um breve comentário a respeito. 

A verdade é que Santiago é uma das cidades mais bairristas do RS. Os gaúchos em geral são bairristas. Para a grande maioria dos santiaguenses, tudo que é de Santiago, ou está em Santiago, ou é feito em Santiago, ou vem de Santiago, enfim, é o melhor que há. É claro que algumas vezes pode ser assim mesmo. Mas também é claro que muitas vezes não é. Mesmo assim, o bairrismo santiaguense não deixa ver, ou, se deixa, não quer admitir.

Considero o bairrismo uma qualidade mais negativa do que positiva. Não sou bairrista. Já fui bairrista pelo RS em dias passados. Deixei de ser. Não penso, como muitas pessoas, que bairrismo é necessariamente uma demonstração de amor pela terra. É, antes, uma ausência de senso crítico, uma cegueira, uma espécie de fanatismo, enfim, uma burrice.

O bairrista acaba por não ver ou não querer ver os defeitos da sua cidade, estado, região, enfim. Consiste num tipo de patriotismo utópico e estúpido localizado. Quem não vê os defeitos, ou se faz que não vê, não pode ou não quer corrigi-los. Se não os corrige, não avança, não sai do atraso, não percebe em que ponto as coisas podem ser melhoradas, não identifica onde estão os erros. E, se tudo é bom, se tudo está bem, para quê mudar? Uma pessoa que "se acha" tanto, que não percebe seus próprios defeitos, acaba, um dia, caindo, sendo vítima desses mesmos defeitos. 

O RS, os gaúchos, sofrem de um bairrismo crônico há décadas. E há décadas o RS vive uma inegável decadência sócio-econômico. Estou certo de que as duas coisas estão relacionadas. Falta autocrítica aos gaúchos, como falta aos santiaguenses. E, quando alguém, no meio de bairristas, realiza essa crítica, a percepção do que está errado, é mal visto, é criticado por querer mudanças, é, até mesmo, odiado.  Bairrismo é atraso.




21 fevereiro 2016

"Onde me encontro nada me convida"


Fernando Pessoa foi uma fonte inesgotável de poesia. Era, na poesia, algo como Mozart na música: a arte fluía desses gênios desde muito cedo (desde a infância) e de forma assombrosamente abundante, numa inspiração quase sem interrupções. Viveu quase que exclusivamente para a poesia como Mozart viveu quase exclusivamente para a música. Ainda hoje, são encontrados obras inéditas de Fernando Pessoa,  o maior poeta da língua portuguesa e um dos maiores de todos os tempos. Abaixo um dos seus perfeitos e enigmáticos sonetos:

Quem me roubou...


Quem me roubou quem nunca fui e a vida?
Quem, de dentro de mim, é que a roubou?
Quem ao ser que conheço por quem sou
Me trouxe, em estratagemas de descida?

Onde me encontro nada me convida.
Onde me eu trouxe nada me chamou.
Desperto: este lugar em que me estou,
Se é abismo ou cume, onde estão vinda ou ida?

Quem, guiando por mim meus passos dados,
Entre sombras e muros que me deu
A súbita fusão dos mudos fados?

Quem sou, que assim me caminhei sem eu,
Quem são, que assim me deram aos bocados
À reunião em que acordo e não sou meu?


Fernando Pessoa (que na imagem acima está preparando a alma para criar mais arte.)

19 fevereiro 2016

A Humanidade é uma Piada

a humanidade
é uma grande piada
(se alguém de fora
nos observa
mais ri do que chora)

Deus é um irônico
o homem é um ridículo:
a ciência é como um lunático
que sonha em dominar o cósmico
sem ter limpado a própria bunda:
a ciência é dos histriônicos
o mundo é dos homúnculos

a humanidade
é uma gargalhada:
governos, autoridades
são mais babacas
do que o povo de palhaços
que vive de cagadas

o ser humano é uma piada
mais desgraçada
a cada ano
só não é piada
a arte
porque nem vem do humano


                             

17 fevereiro 2016

A Ode ao Gato, de Neruda, e o Dia Mundial do Gato

Dia 17 de fevereiro é o Dia Mundial do Gato. Muita gente não gosta de gatos, ou prefere outros animais a gatos. Entendo. O gato não é um animal fácil, tem personalidade própria e não é submisso como o cachorro, que aceita ordens sem questionar. Sou apaixonado por gatos desde a infância. São animais de uma profundidade e de uma inteligência que passam bem longe do óbvio. Não é fácil compreendê-los. Mas quando se os compreende, nem que seja o mínimo, sentimo-nos intensamente amados por esses animais indomáveis e misteriosos. Já escrevi poemas aos gatos. Mas hoje não publico um meu.


A lista de escritores amantes dos gatos é grande: Pablo Neruda, Vinicius de Moraes, Jorge Luis Borges, Charles Baudelaire, Victor Hugo, Edgar Allan Poe, H.P. Lovecraft, Mário Quintana, Goethe, e muitos outros. E Neruda escreveu um dos melhores poemas sobre gatos que conheço: A  sensacional "Ode ao Gato". É o que publico hoje:

Ode ao Gato (Pablo Neruda)

Os animais foram
inacabados,
longos de cauda, tristes
de cabeça.
pouco a pouco foram-se
formando,
tornando-se paisagem,
adquirindo sinais, graça, voo.
O gato,
só o gato
apareceu completo e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.

O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente gostaria de ter asas,
o cão é um leão confuso,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser somente gato
e todo o gato é gato
desde o bigode ao rabo,
desde pressentimento a ratazana viva,
desde a noite escura até aos seus olhos de ouro.

Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa única
como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
é firme e subtil como
a linha da proa de uma nave.
Seus olhos amarelos
deixaram uma única
ranhura
para lançar as moedas da noite.

Oh pequeno
imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu,
das telhas eróticas,
o vento do amor
na tempestade
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no chão,
cheirando,
desconfiando
de tudo o que é terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.

Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
das habitações
insígnia
de um
veludo já desaparecido,
certamente não há
enigma nesse teu modo,
não és talvez mistério,
todo o mundo te conhece e tu pertences
ao habitante menos misterioso,
talvez todos o creiam,
todos se creiam donos,
proprietários, tios,
de gatos, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos
do seu gato.

Eu não.
Eu não concordo.
Eu não conheço o gato.
Eu tudo sei, a vida e seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica,
o gineceu com seus extravios,
o por e o menos da matemática,
as depressões vulcânicas do mundo,
a pele irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
têm seus olhos números de ouro.



15 fevereiro 2016

Ser Odiado

ser odiado
e durante o almoço
pôr o garfo na ferida
é o ato mais difícil
do que se chama vida

ser odiado:
sair do trilho
daquele traçado com farelo
sorriso amarelo
e quirela de milho

ser odiado:
dizer a quem pensa que ama
que raras vezes esse amor
vai além
que prazer na cama

ser odiado:
mostrar um infame sinal
que quem pensa
o melhor de si 
é um cegueta
do próprio mal

ser odiado:
lembrar a muito macho
que não passa de palhaço
lembrar a muito rico
que não passa de pinico
lembrar a muita bela
que não passa de cadela

ser odiado:
lembrar-lhes que os finais vêm
e um outro algo
ainda mais além

a César o que é de César
e a Bruto o que é de Bruto:
ser odiado
é o mesmo que ser justo



13 fevereiro 2016

Versos a Wagner

Há 133 anos, 13 de fevereiro de 1883, falecia o maior compositor de óperas da história da música, o alemão Richard Wagner. Wagner, foi um revolucionário e um polêmico. Ainda hoje, sua obra e sua vida suscitam as mais diversas interpretações, algumas beirando o absurdo. Não é a intenção desta postagem debater sobre as polêmicas wagnerianas. Em postagens passadas, escrevi sobre o assunto. O caso é que Wagner era um forte e um gênio no sentido profundo da palavra, e, como tal, permanece incompreendido. Entre Wagner e Brahms (com relação às adversidades do século XIX), sempre ficarei com Brahms. Mas cada um cumpriu papéis diferentes. E, na ópera, ninguém se compara a Wagner. Escrevi o poema abaixo em 2012. Mas o reelaborei em grande parte. E republico como uma humilde homenagem.

Versos a Wagner
trompa e trovão é teu trono
pulsa em teu punho um mistério
do alto em que o símbolo estrada
alma que se ergue em espada
além do pulso do etéreo

fúria o sonoro do sol
céu o marcial do vermelho
vi largo que algo se erguia
raio no sangue do dia
olhos no ocaso do espelho

e luz que se arma e de força
à forca o que é não-ser:  Fafner
tormenta à íris de Deus
e um toque à chama dos teus
pois entre o horizonte há Wagner     

11 fevereiro 2016

Somos todos bois de canga ou robôs?


Gaúcho de Alegrete, Sergio Faraco, no auge dos seus 75 anos, é um dos grandes contistas brasileiros da atualidade. Em seu conto "A Era do Silício", faz-nos uma descrição das mais acertadas do homem moderno: desumano, inumano, condicionado, robotizado. Vamos a ela:


"Ela era apenas um dígito na unidade binária que a controlava, desde os esconsos de um longínquo mainframe. Ela e todas os que ali trabalhavam.   E para consolidar a excelência dos seus serviços, já renegavam seus sentidos, já não reconheciam sentimentos,  já eram soldados da era do silício, e até prefeririam que lhes substituíssem as células nervosas por plaquetas de transistores, diodos e circuitos integrados. Já não eram inteiramente humanos, e, ao invés de algozes, eles também eram as vítimas, marchando como marcham os bois de canga, a pontaços de picana. E eu, perguntou-se o homem, serei como eles?"


Esse é o nosso retrato. Abstenho-me de maiores comentários.


09 fevereiro 2016

da Saída da Humanidade

I - muito se fala
sobre uma saída para a humanidade:
os termos estão errados:
muito se deveria falar
sobre a saída DA humanidade

II - para a humanidade
não há saída
a não ser que a humanidade
saia de cena:
é uma pena

III - para onde quer que se olhe
não há nenhum lado a ser olhado:
tudo já foi corrompido
consumido
ou contaminado

de modo que a única saída
é admitir-se culpado
e aceitar a pena