01 dezembro 2013

Isto que não foi Dito

venho dizer que não digo
escrevo estas palavras
para afirmar que as não escrevi
aliás  nunca afirmo nada
nem o que foi afirmado

que fique estado
que não estive aqui
nem sei o que é estar
nem me posso saber
ou deixar de saber
qualquer algo que seja
ou deixe de ser
porque vem a ser um ato
e nunca realizo um ato
ou deixo de o realizar
acredite que não há por que
em acreditar-me

eu não me sou possível
e já provei
que não me podem provar:
é óbvio que não me existo
isto que fiz ou criei
está visto (ou nem visto)
que não foi feito ou criado

não há nenhuma palavra aqui
que tenha por si uma vida
e que diga alguma coisa
é só vento perdido no ar
fruto de acaso irrealizado
que ao fim resulta em nada
e que se formaram porque se formaram
sem causa motivo ou consequência
(e se houver não há de mim)

ao que se conclui
que não tenho existência
(e nem se pode concluir nada)
e não me podem falar de meu eu
que nem constitui um eu
e estejas certo
que o que aqui leste
não foi por ti lido

29 novembro 2013

Alguns Chutes na Bunda, por Bukowski

Trechos de alguns romances:

"Se, um dia, eu pudesse ver UMA pessoa fazendo ou dizendo algo incomum me ajudaria a seguir em frente. Mas são rançosos, bolorentos. Não há emoção. Olhos, ouvidos, pernas, vozes, mas... nada. Congelam-se dentro de si mesmos, se enganam, fingindo que estão vivos."



"Poluição, violência, ar envenenado, água envenenada, comida envenenada, o ódio, a impotência, tudo. A única coisa bonita na terra são os animais, e já estão sendo dizimados, cedo estarão extintos, com exceção dos cavalos e ratos de estimação. É tão triste, não admira que você beba tanto."

"É uma sabedoria básica: Onde quer que a multidão vá, corra na outra direção. Eles estão sempre errados. Por séculos estiveram errados e sempre estarão errados."

"As pessoas se acostumavam tanto a ver merda que não mais percebiam que era merda."

E um poema:

Sozinho com todo mundo

a carne cobre os ossos
e eles colocam uma mente
ali dentro e
algumas vezes uma alma,
e as mulheres quebram
vasos contra as paredes
e os homens bebem
demais
e ninguém encontra o
par ideal
mas seguem na
procura
rastejando para dentro e para fora
dos leitos.
a carne cobre
os ossos e a
carne busca
muito mais do que mera
carne.
de fato, não há qualquer
chance:
estamos todos presos
a um destino
singular.
ninguém nunca encontra
o par ideal.
as lixeiras da cidade se completam
os ferros-velhos se completam
os hospícios se completam
as sepulturas se completam
nada mais
se completa.

Charles Bukowski

27 novembro 2013

Lei e Justiça

dentro do mundo humano
existem dois algos
que se parecem mas se opõem:
a lei
e a justiça.
tanto
que quanto
mais há leis
há menos justiça

lei
é quando alguém decide por nós
o que nós devemos fazer.
justiça
é o que se deve fazer

lei
é o que alguns decidiram
como sendo verdade.
justiça
é que é a verdade

seguir as leis
é estar de acordo
com o status quo.
fazer justiça
é estar de acordo
com sua própria consciência

talvez as melhores leis
são as que não dizem não...
talvez, quem sabe?
a melhor justiça
seja a feita
com as próprias mãos

25 novembro 2013

de Religiosos e Homens Bons

I

hoje
as pessoas
não entram em religiões
para acabar com seus erros
mas para encontrar outros errados
para os justificar e perdoá-los:

se passam por justas
honradas bondosas honestas
até que alguém pise
nos seus escondidos calos

II

toda a imagem
de um “homem bom”
não passa de maquiagem e balela
é um oásis-miragem
que se desfaz
quando se vai à sua casa
e se espia pela janela

23 novembro 2013

a um Amigo

gato quieto
sentado no meio do pátio
tu
que sentes tudo
sem perderes o gelo
eu sei que tu sabes
sem me dizer palavra:
olha por mim
como se eu te orasse
ora por mim
como se eu morresse

gato
tu és todo sentido
e indiferença
vês o sentido do todo
e o todo sem-sentido
da humanidade em sentença

no teu passo felino
há à presa perigo
porque nele há silêncio
e a quem te agride com pedra
tu respondes mistério

gato meu amigo
exemplo de homem
a ser seguido

22 novembro 2013

Roessler e Augusto dos Anjos: dois Profetas Ambientais

É, pode-se dizer que o foram. Henrique Luiz Roessler, poucos sabem quem foi. Falecido há 50 anos, gaúcho de Porto Alegre, foi um dos primeiros ambientalistas brasileiros, preocupava-se com a destruição ambiental em uma época em que quase todos achavam que isso era uma grande bobagem. Ainda hoje há gente que pensa que é bobagem. A historiadora Elenita Malta Pereira lançou este ano o livro "Roessler - O Homem que Amava a Natureza".

Roessler deixou frases proféticas como estas: "Sempre que a atividade humana interfere nas imutáveis leis da natureza provocando o desequilíbrio ecológico, ela se vinga terrivelmente". 

Foi dos primeiros a denunciar os crimes ecológicos. Disse sobre o Rio do Sinos, quando ainda não era tão sujo como hoje: "Tudo é lançado no rio, como se fosse lata de lixo ou esgoto cloacal".

Sobre o massacre de animais: "Milhões de animais são sacrificados anualmente em nome da ciência". 

A historiadora Elenita afirma sobre Roessler: "Ele tinha essa concepção da natureza como algo sagrado, quase religioso. Associo um pouco isso com o Romantismo alemão".

Já o Augusto dos Anjos, poeta hoje consagrado,  respeitado até fora do Brasil pela sua extrema originalidade, em seu tempo quase não obteve nenhum reconhecimento. Porém,
estudiosos de sua obra afirmam de forma convicta que várias de suas poesias previram acontecimentos catastróficos com a humanidade, como a 2ª Guerra Mundial e as explosões nucleares no Japão.  Ele foi, sem dúvida, como diz um de seus poemas, "Espião da cataclísmica surpresa..."


E também o foi na questão ambiental, lá nos primórdios do século XX.  É o que vejo no soneto abaixo:


A Árvore da Serra

- As árvores, meu filho, não têm alma!
esta árvore me serve de empecilho…
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros… no junquilho…
Esta árvore, meu pai, possui minha alma!…

- Disse – e ajoelhou-se, numa rogativa:
“Não mate a árvore, pai, para que eu viva!”
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!

Augusto dos Anjos

Também um dia, abraçados em troncos de árvores cortadas, os homens nunca mais se levantarão da terra.
(Acima, o desastre da mortandade de peixes no Rio do Sinos há alguns anos.)

20 novembro 2013

dos Bandidos Antigos

já nem mais ladrões-bandidos
se fazem como antigamente:
antes assaltavam bancos
(havia até robins hoods)
de rostos abertos
e peitos francos
com coragem e colhões
para desafiar governos
e autoridades de fato

hoje
não passam de ratos
menininhas do sistema
encolhidas atrás das leis
debaixo das asas
dos governantes
nem as bolas
são como antes:

não têm a personalidade
para cuspir sangue e catarro
e se escondem como chinas
para fumar um cigarro


18 novembro 2013

da Música, que é Mistério

a música é um mistério
(mas só
quando sendo música)
e como tal não se pode
nem de porre
podê-lo ou sabê-lo

há princípio,
precipício
a sete notas acima
ou sete palmos abaixo
e depois
céu a mais
verbo não-verbalizado
sem vice-versas
nem (des)entendimentos
equivocados:
é o que se é
para cada ser que o seja

à música
não há necessidade de selo
ela não se carta
não se mensagem:
quem ouve
é que deve sê-lo
e só a si cabe o vale
estando ou não ele
seja um algo ou desalgo
um agora estar vago
um se ver sem ter nada
um ninguém se saber
sem vencer o não visto:

ainda que a música
diga dizeres
não se pode dizer
que foi sendo como dito.
o que vale é o que som
infinital e arquetípico
absoluto
desanalítico

desde o canto do galo
ao galopar do cavalo
é um elevado alto
ditado de não-dizer
que é mister
misteriá-lo

17 novembro 2013

A Inutilidade e a Babaquice do Horário de Verão

A humanidade vem tentando estender sua sobrevida através de paliativos inúteis e ridículos. Um deles é o Horário de Verão, adotado não só pelo Brasil, mas também por vários outros países. Muitos não gostam desse horário artificial. Eu sou um deles. A impressão que tenho é que estou sempre com uma hora de minha vida sendo roubada, ou confiscada, e que estou sempre correndo contra o tempo. Sem falar que, sendo um amante da noite, detesto esse prolongamento do dia. Há os que gostam, bom para eles. Mas isso não seria problema se realmente o Horário de Verão solucionasse alguma coisa. Não passa, no entanto, de um engodo, mais uma enganação desta civilização imbecil que adora se enganar.

A economia geral de energia no Brasil por ano com o Horário de Verão gira em torno de 0,5%. É muito pouco, mas até seria alguma coisa, se houvesse outras medidas para economia energética sendo tomadas. No entanto, o que ocorre é que o Brasil e toda a humanidade o que fazem é estimular e promover o "desenvolvimento" e o consumo cada vez mais e mais e mais. "Há que se desenvolver, produzir mais, indústria a todo vapor, deve haver dinheiro para o consumo, o progresso não pode parar...", enfim, todos esses clichês que já estamos exaustos de ouvir. E para produzir, obviamente, é preciso mais energia, cujo consumo cresce todos os anos. E com o consumo de energia, cresce o esgotamento das fontes não renováveis e vamos enchendo nosso país de hidrelétricas com todas as suas catástrofes ambientais. 

 No Brasil, a demanda energética vem crescendo na média de 5% por ano. Ou seja, 10 vezes mais do que a economia com o Horário de Verão. E então? Esse horário não passa de um paliativo incômodo e, no fundo, inútil. Lembra-me o caso daquelas pessoas que dizem que estão fazendo regime, e, no almoço, comem lasanha com molhos, batata frita, maionese, ovo frito, bacon... tudo acompanhado com Coca-Cola light. A Coca light é o o Horário de Verão. 

Mas alguns, ou muitos, querem acreditar que estamos evoluindo.  Só se evolução for chegar a um colapso para o qual não haverá saída. 

15 novembro 2013

das Aparências

I

as pessoas preferem
os legumes e frutas
mais bonitinhos
lustrosos e grandes
sem machucados
inchados e plenos:
ou seja
aqueles
impregnados de veneno

II

quando há
impreenchíveis vazios
conteúdos de nada
e vergonhosas cagadas
é que se ostentam
as gordas fachadas

III

as pessoas gostam
de sorrisinhos simpáticos
musiquinhas alegres
balinhas de leite
e de mentiras docinhas
cobertas de enfeite

13 novembro 2013

A Masturbação da Humanidade

um dia
humanidade
(ou ser humano)
no sonho de ser o que não foste
deixaste levas
de palavras em lavas
e promessas orgasmas...
agora?
larvas
não lavradas
pelas águas levadas
e livros largados
esporreados mal-lidos

e agora
a tua ilusão?
letra a letra
pelos esgotos
vão tuas palavras não-livres
de grão em grão
se esvazia tua ampulheta
e gota a gota
se extingue o gozo
da tua punheta

11 novembro 2013

Por que as pessoas não se admitem culpadas?

é, por que não
se admitem culpadas?
não se admitem nem para si
que por mais que se pensem de algo
não passam de vagos e de nadas

não passam de pés
empoçados na lama
não passam de pós
esperando por covas
não passam de trovas

não refletem
e não se refletem
mereceriam espelhos
e tundas de relho

se acham perfuminhos de frascos
que uma brisa faz em cacos
heroizinhos de fiascos
produtores de gases
homens que fazem
fezes

eu confesso-me que não-sou-me
bebi demais
e vomitei o que nem tinha
depois de um dia
que não fiz nada que prestasse
caí da cama de lado
acordei-me e concordo-me
culpado


10 novembro 2013

Planeta Terra no Séc. XXI: são recordes atrás de recordes (pena, que negativos)

O recente supertufão Haiyan, que devastou as Filipinas e pode ter deixado mais de 10 mil mortos, considerado pelos meteorologistas como o maior tufão já registrado, chegando a ter ventos de absurdos 400km/h, ultrapassando o limite da escala de tufões, que vai até 8 (o Hayan chegou a 8,1), engrossa a lista de recordes catastróficos que vêm assolando nosso planeta neste novo século. Alguns otimistas sorridentes acham que tudo não passa de "acidentes de percurso" e que a humanidade, apesar dos "percalços", caminha muito bem, obrigado. Já eu diria que são sintomas de uma lenta e insidiosa enfermidade planetária que levará a humanidade a um colapso total. Enfermidade obviamente causada pelos próprios humanos e sua civilização altamente evoluída. 

Como as pessoas geralmente têm memória curta, vou cometer o ato louvável de lembrar de alguns recordes que nos encherão de orgulho:

1 - Em 2005, o sul dos EUA foi destruído por um dos furacões mais potentes e destrutivos da história, o Katrina.

2 - Em 2004, o tsunami mais mortal já registrado matou quase 300 mil pessoas no Sudeste asiático.

3 - Em 2011, o Japão sofreu o maior terremoto dos últimos dois séculos, chegando ao limite da escala Richter, 9.0, e causando um tsunami gigantesco que originou o desastre nuclear da Usina de Fukushima.

4 - Em 2005, a Amazônia brasileira sofreu a pior seca já registrada em sua história, que chegou a secar rios e regiões alagadas onde até então era considerado impossível a ocorrência de estiagens.

5 - O ano de 2010 é considerado o ano mais quente desde que se iniciariam as medições de temperatura média da Terra. E outros 10 anos do século XXI estão entre os mais quentes já registrados. 

6 - Em 2004, o Brasil teve o registro do primeiro furacão a atingir a América do Sul, o furacão Catarina, que atingiu o Sul do Brasil.

7 - Em 2012, a Groenlândia sofreu um degelo recorde em suas geleiras, atingindo os absurdos de 97% de derretimento. 

8 - O ano de 2007 é considerado o ano com o maior número de desastres naturais da história da humanidade.


9  - A ocorrência de desastres naturais aumentou 268% no Brasil após o ano 2000.

10 - Neste século, os prejuízos causados por desastre naturais já chegaram a 2,5 trilhões de dólares.


Vou parar por aqui, mas tem mais, muito mais, é só pesquisar. Quem quiser contribuir com algum recorde do tipo, por favor, deixe nos comentários. (Acima, as imagens impressionantes do maior tufão da história.)

08 novembro 2013

Poemeto para as Nossas Águas

e o barquinho limpinho
de papel
a flutuar tranquilo
sobre a vibração suave
do ondular das águas
para lá e para cá:
mar 
de...
mer
da...
mar 
de...
mer 
da...
mar 
de...
mer da...

07 novembro 2013

o homem que não muda

com a muda
de árvore
nas mãos miúdas
espera o homem
(que nunca muda)
mudar o mundo

o homem que não-muda
entre a merda e o medo

e a poesia muda
como quem observa
um morto
como sendo grave
a poesia em silêncio
como sendo árvore

05 novembro 2013

Três Chutes Não-Poéticos

I

a poesia
ocupa cada vez
menos espaço
porque o homem
já está saturado
esgotado
explodindo
de vazio

II

o que há de mais antiquado
que escrever
“sublimemente”?
primeiro
é contra as regras literárias
segundo
é contra os vazios humanitários
por isso a palavra
nem foi escrita
logicamente

III

há homens
que acham que dizem algo
dizendo
o que (não) tem a dizer...
poderiam poupar-nos
da sua fra(n)queza


03 novembro 2013

Não Voto em Filho da Puta*

prezado
senhor candidato:
com todo respeito
vou pegar o meu voto
e enfiar no teu rabo
de rato

não me venhas
com apertadinhas de mão
podres imundas infectas
de micróbios de corrupção
e das mais fedorentas melecas

no ranço do teu sorrisinho
de boca amarela e fingida
deixo o voto do meu catarro
mijo ressaca e sarro
tuas alegrezinhas
musiquinhas
ridículas
enfia
nos teus orifícios propícios
que eu sei muito bem
quais são as alegrias
das campanhas políticas:

queres
passeatas
carreatas
mamatas?

conchavos
conluios
canalhas?

tratados
tramoias
trapaças?

sobre a merda do teu santinho
apago meu cigarro vadio
ah, e senhor candidato
nobremente
vai à puta que pariu!


*Poema reelaborado e republicado e deixado em homenagem a alguns pré-candidatos Brasil afora.

02 novembro 2013

Dois Palmos pra Dentro

algumas pessoas
tanto falam em conhecer-se a verdade
que a verdade
já não fala ao que eles conhecem

enquadram a verdade
em determinados quadrados
e desconhecem a que está
a algumas próximas quadras

passam pelas ruas
a perpassar passadas
e não percebem a verdade
pela qual passam a dois passos

das abertas palmas das mãos
largam flores e palmas
mas não apanham a verdade
que passaram a dois palmos atrás

ou perderam
a dois palmos pra dentro

29 outubro 2013

Fragmento Absurdo de Uma Existência Futura nº5 - Quatro Golpes de Pá na Cabeça

Não se podia falar sobre o assunto. Nenhum comentário. Ninguém podia. Nem nas ruas nem em qualquer outro local público. Até mesmo em casa era perigoso. Quem o fizesse seria preso de imediato, caso fosse descoberto. O que não era algo difícil de acontecer, pois os malditos agentes e espiões do governo estavam por toda parte.  Havia escutas em todos os lugares. Era a lei do novo governo mundial. Foi necessário centralizar o governo da humanidade para, diziam eles, evitar que o pânico injustificado e errôneo se espalhasse por todos os cantos do planeta e então imperasse o caos. Qualquer um que falasse do assunto era considerado criminoso porque com sua irresponsabilidade alarmista e desinformada estaria espalhando um pânico talvez fatal por entre a população pouco esclarecida. Essa era a justificativa deles. Dos membros do governo mundial.
Claro que o governo mundial era formado por membros dos países ricos. Ou que se achavam ricos. A interminável e crescente crise econômica, a cada dia agravada pela aniquilação ambiental e pelas definitivas e radicais alterações climáticas, vem fazendo tabula rasa das “potências” mundiais. Países subdesenvolvidos, desenvolvidos, em desenvolvimento... Não faz mais sentido. Tudo faz parte da mesma merda.
Uma puta de uma mentira, é claro. Primeiro que o caos já impera absoluto há muito tempo. Segundo que o pânico não só é justificável como somente imbecis mantêm-se calmos diante da situação absurda em que nos encontramos como espécie, acreditando nas besteiras estúpidas dos governos e de suas ciências falidas. Imbecis, ou então pessoas que alimentam uma indiferença suprema, como a minha. Pouco me importa que a humanidade inteira apodreça. Talvez seja o que merecemos.  A civilização há tempos vem cavando sua sepultura. Uma hora tem que cair no buraco que cavou.
Mentiras deslavadas, falsas verdades, silêncios impostos a força (com subornos, ameaças, prisões ou mortes, por exemplo), versões distorcidas, engenhosas histórias inventadas, farsas escancaradas, belas e luminosas teorias sem pé nem cabeça, ocultação de fatos, enfim, o arsenal para manter a população sob controle  não tem fim. Mas começa a ruir, e as coisas começam a se acelerar. Há coisas que já não se pode esconder.
Principalmente, depois daquele colossal terremoto em terras do Primeiro Mundo. Ou do ainda chamado “Primeiro Mundo”. Mais de 400 mil mortos. Que se sabe. E mais algumas dezenas de milhares de desaparecidos. Talvez centenas. Foram pegos de surpresa.  Não paravam mais de achar corpos. Até que desistiram de procurar. Procurar mais seria fazer a população se chocar e sofrer desnecessariamente. Diziam. Já estavam mortos mesmo, fazer o quê? Que importava encontrar ou não agora seus corpos.
A ciência, já em franca decadência, não havia previsto nada. Ou, se previu, escondeu, acreditando que conseguiria evitar o pior. Eles sempre tentam evitar o pior. Ou melhor, dizem que tentam evitar o pior. E que trabalham em prol do bem da humanidade. Tudo fachada.  Conversa fiada para os palhaços. Trabalham para manter o status quo das coisas. Ou seja, dominantes e dominados, os que produzem e os que consomem, os que lucram e os que pagam. E consumir, basicamente, é o grande ideal da humanidade do século XXI. Poder consumir sempre e mais. E os que produzem convencem muito bem de que se deve consumir sempre e mais. Mas uma hora tinha que explodir. Só ninguém, ou quase ninguém, esperava que fosse do jeito que está sendo. Os filhos-da-puta ainda tentam mascarar com inúmeros atos sórdidos. Mas não está dando. Ele já está muito perto.
            Bom, mas eu falava naquele terremoto. Aqui na cidade miserável onde vivo também houve um. O primeiro da história nesta região. Não foi, obviamente, tão intenso quanto aquele na Europa. Mas matou gente, centenas delas, soterradas pelas ruínas de prédios. Minha casa não chegou a ser afetada. Mas me ofereci como voluntário para ajudar a socorrer os milhares de feridos. Cheguei a resgatar, ou tentei resgatar, uma menina de não mais que seis anos de idade dos escombros. Sua perna direita estava presa por umas ferragens gigantescas. Não havia como tirá-la dali. Eu estava sozinho. Chovia. Tive que serrar sua perna na altura do joelho. Eu havia trazido algumas ferramentas de casa, entre elas minha serra de açougueiro. O sangue esguichava na minha cara. Os berros da menina eram insuportáveis. Serrei a perna e tirei-a de lá. Carreguei-a sangrando por quase um quilômetro em busca de ajuda médica. Não encontrei nenhuma. Pensei em levá-la para minha casa. Mas seria inútil, eu não poderia fazer nada e ela morreria em poucas horas. Então, exausto, larguei seu corpo e disse a ela. “Mocinha, não tem jeito, nem eu nem mais ninguém pode te ajudar”. Ela ainda chorava, chamando pela mãe, quando morreu.

            Prossegui caminhando pela região do desastre. Já quase mais ninguém ajudava a encontrar sobreviventes. Talvez não houvesse mais. Parei quando uma mãe se escabelava pelo filho morto esmagado. Gritava desesperada:

             - Aqueles desgraçados, eles são culpados da morte do meu filho, matem aqueles desgraçados, me ajudem, façam alguma coisa! Eles são culpados, dizendo merdas, aqueles desgraçados, matem eles, sempre mentindo, sempre dizendo que tudo está bem, que tudo está sendo controlado, mentirosos filhos-da-puta, alguém mate aqueles desgraçados, pelo amor de Deus, ajudem uma pobre mãe!

Então, em poucos minutos, surgiram três homens com uma pá. Eram homens do governo. Agarraram a pobre mulher pelos braços e pelos cabelos, arrastaram-na até um canto escuro. Não perceberam que eu os observava. Mataram a mulher com uns quatro golpes de pá na sua cabeça. Depois, encheram de ferimentos seu corpo e cobriram-no de barro. Assim, ela pareceria ter sido tão somente mais uma vítima do terremoto. E a polícia não investigaria mesmo.

         A mulher havia falado demais num lugar público. Mesmo que não houvesse ninguém naquele merda de lugar devastado, sempre se corre o risco de alguém ouvir. Eu, por exemplo, ouvi. Tive a sorte de estar escuro e de não me verem. É como eu disse. Ninguém pode falar nada. Deve-se fingir que não se percebe o que está ocorrendo. Mas não adianta mais. Ele já veio, já está visível. Não sei que tipo de mentira estão dizendo agora, não tenho mais acompanhado as notícias fajutas do jornais, todos controlados pelo governo mundial. Mas a farsa está ruindo como aquele prédio ali adiante. Aliás, quando o prédio cair, aqui, deste ângulo em que estou, dará para vê-lo, triunfante.