Versos Diretos n°86, 87 e 88

n°86: versos ao pôr-do-sol

para se subir
até o alto dos céus 
é preciso se passar
pelo vivo do sangue
para se sentir a força do sangue
é preciso se olhar
para o início do céu

n°87: escrever para quê(m)?
escrever para além.

n°88: poetas e mulheres
têm um ponto em comum:
ambos derramam sangue

constantemente 

e não podem deixar

transparecer.
a diferença

é que nos poetas

o sangue...

(porque o sangue 

é sempre uma expressão)

vem pela palavra.

Perguntas a um Felino

Felino...
qual gênio da ciência 
engendrou o agudo absurdo da tua visão
o vasto dos teus ouvidos
o impossível do teu olfato?
qual gênio da arquitetura
projetou a elegância encantadora 
do teu caminhar e do teu porte?
qual gênio da música
compôs desde a complexidade
indecifrável dos teus miados
até a imponência assombrosa 
dos teus rugidos?
qual gênio da pintura 
plasmou em ti tão contemplativo
prazer em te admirar?
qual gênio da poesia
te pôs tanta profundidade no olhar?

Decepção

um corvo sino batia
eram fúnebres da tarde
a hora dos lobos massacrarem ovelhas 
e amei pela tempestade
um martelo esmagava as rosas
e derramava as ondas vermelhas
vinham nuncas madrugadas
cheirei sangue no ventre das luas
corriam sonhos das tuas pernas nuas
Deus debochava os meus medos
as onças engoliam as fadas
Satã cantava os teus dedos
o sol sorria desgraças
e de noite em noite eu caía
(tu muito bem o sabes)
no mortal inútil da poesia

Versos Diretos n°83, 84 e 85

n° 83: quanto mais você se doar 
menos terá valor o que você doa

n°84: a situação do mundo nunca foi tão séria
enquanto os humanos nunca foram tão bobos 

n°85: a vida é um pêndulo:
não conseguimos parar no meio.
quando conseguimos algo
que está em um lado
para onde fomos
queremos o outro lado
onde está o outro algo
que já deixamos

Para os Dias do Fim

que não haja interesse das gentes
em nada daquilo que eu digo.
só os vagos de outros mundos
só os longes mais profundos
só os lagos submundos
para que tu os digas comigo.

que não haja nenhuma luz diurna
em todos os sonhos que eu sigo.
só os leopardos lunares
só os febrentos olhares
e estas asas pelos ares
para que tu os sintas comigo.

que ninguém desvende o mistério
do tanto que me sou antigo.
mas meus olhos derramados
mas meu sangue respingado
meu coração aniquilado
para que tu os chores comigo.

ah que ninguém nunca conheça
a imensidão do meu castigo.
só a esperança acabada
a poesia asfixiada
a minha arte assassinada
para que tu nos sangres comigo.

tenho todo um segredo de fim
que me carrega sobre o perigo.
dou-te a minha noite amanhecida
a minha vida consumida
a minha alma (quase) destruída
para que tu te morras comigo.

Ser em ti

a Arte
não é quem tu és 
para ti
mas o que o artista
toca em ti 

Poema para o Fim

só a Arte
e o Amor
podem ser tudo
para mim.

Constatação

por mais que eu tente
por mais que eu faça 
por mais que eu peça
por mais que eu Seja
por mais que eu erre
por mais que eu ave
por mais que eu alto
por mais que eu água
por mais eu que venha
por mais que eu vinho
por mais que eu ame
por mais que eu chore 
por mais que eu crime
por mais que eu sonhe
por mais que eu lute
por mais que eu noite
por mais que eu toque 
por mais que eu sofra
por mais que eu sangue
por mais que eu viva
por mais que eu morra
por mais que eu diga
nunca vai ser
aquilo que eu sinta 

Ser Ave

I - ah quem me dera ser ave
para do que céu
eu ter a chave 
e além das feridas farpadas
voar como quem leve 

II - no vinho a vela
só ao vento se cala
tudo aquilo que te eleva
(nunca te esquece)
vem do que se escreve

do que se fala
do que se canta

do que se toca

do que te voa
do que te asa

Os Caminhos do Poeta

um escritor tem dois caminhos
ou escreve o que os outros querem ler
com um sorriso idiota na cara
(a literatura do agrado)
e aí nem é escritor
ou escreve o que lhe dita sua consciência
não importando a quem doa o que doer
(acreditem, dói mais em quem escreve)
e se enche de odiadores.

em qualquer um dos casos
vai dar merda.

O Que Nos Mata

o que mata não é a vida.

o que mata 

é a burocracia para se viver 

as dependências disso e daquilo

toda a papelada 

o monte de números

o sem fim de senhas

as ordens os compromissos 

as responsabilidades inúteis 

os horários os dias marcados 

o se matar pelo trabalho

por um troco mais de nada

o que nos fazem 

engolir goela abaixo

para fazer parte 

de uma sociedade falida

de um mundo sem sentido 

de uma civilização que se acaba.

(tudo isso para sobreviver

numa humanidade acabada)

o que mata  

são as falsas necessidades

é tudo aquilo 

que INVENTAMOS que PRECISAMOS

para viver

mas que na verdade 

só serve para a morte

e para o horror.

(e o que precisavámos 

era tão simples: só um pouco 

de amor...)

Versos Diretos n° 80, 81 e 82

 n°80:  "o que foi que eu fiz?"
é o que nos perguntamos

quando olhamos 

para trás 

e reconhecemos um erro fatal

sem remédio.
essa é a pergunta que a Humanidade se faz
em meio ao seu tédio.

n°81: tanto Deus
quanto o Diabo
são misteriosos
e as suas presenças diretas
(ou por seus enviados)
perturbam
para um lado ou para 

o outro.
são extremos
e os extremos se tocam.
por isso o Yin e Yang.

n°82: esquecemos de tudo que vale a pena
para ficar com tudo que não vale a alma.
de tudo nos esquecemos
e nos fodemos.

Deixa Sangrar

qual foi a última vez que tu chorou?
não o choro do medo da raiva 

do desespero
não o choro da dor

do horror
ou o choro amargo do erro 
mas sim o choro do que se sente
o choro da alma da emoção 
que nos traz algo de fundo

algo de vivo do coração.

quando foi a última vez

que tu te emocionou?
que deixou tua alma 
percorrer teu corpo e tua mente?

quando foi a última vez 

que tu foi gente?

que deixou o sangue escorrer
e que sentiu o quanto 

o sangue importa?
quando foi a última vez que tu foi tu
e deixou o teu Ser ( o Teu Ser)
bater na tua porta?

deixa a lágrima se ir
deixa o sangue escorrer
viver é sangrar e sentir:
a vida é só o que tu sente
é só o sentimento que fica 
é só o sentimento que vibra:
um dia tu irá lembrar com saudade
o quanto teu sangue era quente
o quanto tua lágrima era viva.

Último

sou o último representante 

de um mundo sem representantes

isto é, não sou nada

porque meu mundo nem é mais

nem eu na verdade existo

sou na verdade um misto

entre o que foi 

e o que há-de morrer

ninguém nunca me viu

sou tão nada

que nem O quem me enviou

se é que existiu.

tu que me olhas

nem sabe o que é que vê.

sou algo tão antigo

que no meu tempo

nem havia fé.

tudo o que faço

já morreu

isso que de mim me veem

nem sou eu.

nem sei se sou o enviado 

de um reino extinto

que para manter a verdade

minto.

sou o último da minha estirpe

e isso é certo.

só o que sobrou

foi o massacre do meu coração

que a deixar seu rastro de sangue

se mantém aberto.

Absorvente

minha alma é um rio
de correntezas mortais

que leva  a luz e a sombra

de toda água que cai
de toda vida que vai
minha alma é o resultado fatal
do que vai além do real
é o destino e a hora
de todo olho que chora
é pra onde se escorre 
tudo aquilo que morre...

minha alma 
é como um absorvente 
encharcado de sangue 
de tudo aquilo 

que se sente.

Amor de Gato

o amor dos gatos 
é o amor que as pessoas 
tem como o ideal 
mas que nunca conseguem atingir.
o gato não ama por apego
não ama por dependência 
não ama por submissão
não ama por medo de ficar só
não ama por obrigação 
nem legal nem moral nem social
nem mesmo instintiva 
nem por gratidão.
o gato não ama alguém 
só porque esse alguém 
o alimenta.
ele pode respeitar esse alguém 
sem o amar. 
o gato ama porque escolheu amar.
e escolher amar é saber
quem o fez por merecer o seu amor.
porque um gato sabe 
do seu imenso valor
e não se doa a qualquer um
por qualquer coisa.
e uma vez amando 
seu amor é discreto e inabalável
sutil fiel e constante.
o amor do gato é uma escolha
feita com muito cuidado
e uma vez escolhida é definitiva.
perpassa toda a vida 
e prossegue depois da morte.

Soneto (Sem) Sentido

nos vastos vales dos quais fui um membro
perdi estas cruzes todas elas vivas
me viram corvos perpassar por shivas
eu tudo aquilo que não fui me lembro

caía um mundo sobre meus intensos 
ouvi de um selo que beijou-me em fronte
só eu sozinho a convencer Caronte 
com meu martelo mais mortal mais tenso

perdi perdões que não te arrependi-me
eu sou aquilo que não tive e sinto 
e o teu desejo que pedi é um crime

um cristo leu-me pelo vinho tinto
e fui beijar-te em alto horror sublime:
te deixo em versos do meu Ser ex-tinto.

Um Corte Fundo na Artéria Aorta

eles destroem tudo o que há 
de belo na vida:
florestas campos rios e mares 
tudo o que voa e canta 
tudo o que nada pula corre ou anda 
e vibra pelo planeta
envenenam água terra e ar
massacram a inocência 
dos olhares dos animais
cagam para o belo ou expressivo ou profundo
que há nas artes
todos os dias asfixiam nossa capacidade de amar
de viver de sonhar
aniquilam nossa saúde física e mental
nos jogam no vazio de uma vida sem sentido
e mesmo assim todos os dias

querem nos enfiar goela abaixo
com um sorriso babento na cara
a hipocrisia
de "ver o lado belo da vida".
a vida atual é um corte fundo
em nossa artéria aorta.
esta civilização vai acabar
e por um motivo absurdamente simples:
ninguém se importa.

mas por incrível que pareça
minha alma metralhada
não está morta

porque quanto mais sangue 

minha alma verte

mais alta ela se ergue.

Versos Diretos n° 77, 78 e 79

n°77: não é verdade que o Universo 
não liga para nós:
ele se diverte nos debochando.

n°78: inspirações são como oportunidades:
são apenas breve sinais 
que não dependem só de nós 
e se deixamos passar
elas não voltam mais.

n°79: Sobre o Fim do Mundo:
não, o mundo não vai acabar . 
o mundo continua.
o que vai acabar é o SEU mundo.

A Vez da Morte

nosso mundo é uma tarde que se finda
tudo anoitece tudo se desfaz
nada mais quer ser.

nunca ninguém aceitou o fim
é preciso ter vivido muitos fins
para se entender a inevitabilidade do fim.
mas ele não chega só de fora
também chega de dentro
(talvez ainda mais).

ninguém mais quer viver grandes coisas:
nem grandes sonhos
nem grandes ideais
nem grandes artes
nem grandes amores
agora tudo se resume ao pequeno:
ter emprego dinheiro lazer

e tudo isso é ocaso
é a morte do que um dia foi grande
a vez da morte chegou
e meu poema morre aqui.