Ausência

 o sol massacrante 

nos lembrará a ausência das árvores 
a garganta ressecada
nos lembrará a ausência da água
o mundo sem inocência 
nos lembrará a ausência dos bichos 
a vida sem graça 
nos lembrará a ausência das artes

os olhares vazios
nos lembrarão a ausência do amor

o que se precisa fingir

nos lembrará a ausência do ser

a vida acabada 
nos lembrará a ausência da vida.

Três Grandes Histórias

I - História da Arte

AMor-te

II - História da Humanidade 

era o Paraíso

mas quiseram o paraíso

e virou o Inferno

III - História da Vida Humana

vir

não saber para que veio

nem para onde ir

ir

Distância

sempre busquei que minha poesia
fosse pura como o olhar da Morte.
aquele olhar que a si se basta 
que se pertence a si mesmo 
e não se entrega não se dobra não se vende.
quis minha poesia pura
como as tormentas
que não dependem da humanidade.
que minha poesia falasse por si
sem temer a reação dos outros 
sem querer prêmios honrarias 
nem sorrisos nem aplausos.
quis minha poesia pura
longe dos falsos agrados das mídias
a léguas das homenagens dos governos 
a anos-luz das esmolas das empresas.
quis minha poesia pura
como o sangue dos animais extintos
pura como a noite a solidão
pura como o olhar do Fim
que fosse apenas do meu Ser
e talvez o único de bom

que viesse de mim.

Versos Diretos n° 63, 64 e 65

n°63: poeta
não é detergente de louça 
para poder ser neutro.

n°64: nunca confunda 
vida com arte:
vida é só o que se vive
arte é o que se vive 
mais a verdade.

n°65: na vida 
tudo tem um preço. 
disso todo mundo sabe 
mas todo mundo 
faz como eu
que sempre esqueço.

Ave Lua Cheia de Graça

ave da Lua plena de nua
sente o que digo
por entre o que névoas 
por dentro o que águas
salve da Lua cheio de tua
ouve o que sinto
por noites segredos
de beijos e mágoas
marte da Lua que olhas das ruas
de vinho entre lágrimas 
de sangue entre os lábios
mares da Lua de fins e corujas
que toca o que olhos 
que bebe o que lagos
que sabe o que gatos
por onde quer que flutua...
na minha alma
é sempre Lua.

Mané*

* Além-Paráfrase do poema "José", de Carlos Drummond de Andrade 

e agora, Mané?
o mundo acabou
tua casa se foi
o clima mudou
teu tempo já era
tua vida está morta
teu pênis murchou.

e agora, Mané?
você que plantava soja
que cortava árvores
que caçava bichos 
envenenava aves?
o campo secou
tua empresa faliu
a chuva se foi 
o rio assoreou 

está sem saúde
está sem sentido 
está sem razões
tem dinheiro na mão 
mas o dinheiro 
já não resolve nada
queria ir pro mato 
mas mato não há mais 
queria ir pra praia
mas o oceano inundou
e a terra está seca
e o ar está seco
e a tua soja incendiou

e agora, Mané?
as promessas não vieram
os salvadores não vieram
as esperanças morreram
e tua família chorou 
as certezas caíram
e tudo mentiu
e o calor é infernal
e tudo era falso
e tudo passou

e agora, Mané?
se você tivesse
se você possuísse
se você fosse dono do planeta 
mas o mundo não é teu
a natureza não é tua
e a natura te destruiu
e o planeta te matou.

e agora,  Mané?
pra onde foi teu sorriso
pra onde foi tua risada
pra onde foi tua confiança
pra onde foi teu otimismo?
sozinho na fumaça
você caminha, Mané
pra o fundo do abismo.

Poema em Linha Torta

Deus até pode ser grande
mas o ser humano é minúsculo
menos que os micróbios
que apodrecem as feridas:
pelo menos os micróbios
cumprem sua função.
mas aí alguém vai dizer:
"ah mas tem os gênios 
que fizeram isso e aquilo..."
pois é, mas esses gênios
foram em vida desprezados
pelos ditos humanos.
e quem foi disse que gênios
são seres humanos?
o ser humano é uma desgraça.
único ser que destrói a casa onde mora
mata sua própria mãe
e anda rindo estúpido pelas ruas.
todo mundo sabe do que falo.
queria olhar para um olhar
e ver uma só gota de lágrima
de esperança.
mas estão todos ocupados demais
nas suas aparências de serem felizes
nas suas poses de terem sucesso.
são todos uma piada.
como debochou Fernando Pessoa:
"todos os meus conhecidos
têm sido campeões em tudo".

ok, campeões.
quanto a mim
deixo o meu olhar
pairando em tudo
que ainda tiver vida
em tudo que for água
em tudo que for ar
em tudo que for canto
por tudo que chorar

que corre em minhas veias.
me sinto melhor
com tudo que partir.
 

Como reconhecer um falso poeta

falsos poetas apresentam várias ou todas
das seguintes características:

- muito aparecem
pouco escrevem

- quando escrevem
não dizem nada de novo
(ou nada de nada)

- são um risco para diabéticos
com suas positividades açucaradas
seus doces de sorrisos com calda
suas autoajudas melosas

- são otimistas bobos 
e acham que tudo vai ficar bem 
com a humanidade 

- acham que podem escrever
sem ler nada ou muito pouco
ou que vão escrever apenas lendo
sem viver nada

- quando são criticados
ou quando alguém não gosta
do que escreveram
eles se importam

- não gostam ou são indiferentes 
a gatos

- preferem estar nos eventos
do que aos ventos da vida

- procuram sempre ser moderados em tudo 
vivem só de meio termos

- são chatos pra caralho

Versos Diretos nº 60, 61 e 62

nº60: aquilo que há
do outro lado da sanga
do outro lado do cerro
do outro lado da sorte
é o mesmo que há
do lado de lá
da Morte.

nº61: assim como o destino
de todo organismo
está gravado nos genes
de cada célula

(o destino apenas corre

como um rio)
o destino de toda humanidade
está gravado no olhar
de cada ser humano.
e o destino 

é o vazio.

nº62: o amor é o topo
de uma montanha.
há que se manter no topo
porque a subida é um sacrifício
e a descida é um avalanche.

Morte em Vida

o que mata não é a morte
o que mata é a vida não vivida
aquelas coisas que passam
nunca ditas nunca havidas
o que mata
são aquelas coisas não-sentidas
massacradas oprimidas
é aquela ponta de faca
sempre cravada na ferida
são aquelas coisas não-sabidas
desprezadas esquecidas
o que mata não é a Morte
(tão sublime sempre erguida)
o que mata é a morte
que se morre ainda em vida.

Receita

estava bem fresco

recém tirado.

era enorme

daria uma boa refeição.

com uma faca bem afiada

o piquei em pequeníssimos pedaços

temperei apenas 

com o sal das lágrimas

e coloquei refogar na panela.

não pode ficar muito

pois precisa sair do fogo

ainda com sangue

pingando sangue.

eles estavam esperando

ansiosos:

tigres leões onças leopardos.

apesar de grande

daria apenas uma provinha 

para cada um.

dividi em vários pratos

comeram 

e ficaram lambendo os beiços

sujos de sangue

querendo mais.

disse a eles que não havia mais.

eu tinha apenas um coração.

e agora eu estava em paz.

Soneto Distante de Tudo

noites se longínquam sobre meus quandos
tudo que se vai som sobre o que é mim
tudo que se esvai toca-me de fim
aos corvos dentre cósmicos sangrando

meus olhos mágoam cada vez mais cantos
sonatam por saturnos serafins
sinto as galáxias que derramam sins
sobre as distâncias dos finales tantos

lábiam em minhas veias teus olhares
violinam pelas névoas as finadas
se urânia minha febre pelos mares

torno as palavras em aves aladas
pra que percorram os mais findos pulsares
e beijem teus nuncas sem dizer nadas.

Prometeus

um lembrete daquilo
que prometeste
que predisseste
que prometrova
que proteudeus
que promeutraste
que prameussangue
que protestaste
que preteriste 
que praminhatosse
que problemaste
que proclamaste
que promeurrastro
que postergaste
que proferiste
que pré-feriste
que prementiste.

é por isso que Prometeus
roubou o Fogo de Deus.

Tristeza é coisa de Luxo

tristeza não é pra qualquer um.
tristeza é só pra quem ainda está vivo
é só pra quem sente
e sentir não há preço que pague
é coisa rara é artigo de luxo.
tristeza é coisa de mago
é coisa de bruxo.
tristeza é coisa de anjo
daqueles caídos 
há tanto tempo
que nem me lembro mais.
tristeza é pra quem tem sangue
e já tingiu de vinho
as paredes dos jamais.
tristeza é sintoma de alma
é coisa de quem ama
tristeza só sente
quem ainda tem a Chama.

Do Eterno Retorno

este é o último canto
do conto eterno que conto
em que me encontro e retorno
e sempre em torno ao meu rosto
o teu encanto me conta
o que pra sempre me resta
o que deixei de meu rastro
este é o último conto
em que pra sempre me canto
e pelo céu que me arrasto
revolto volto no entanto
com sangue e verso em meu pranto
em vulto vida revolta
contam comigo os meus olhos
que viam além da minha conta
olhando acima da lama
além de tudo que ama
restou-me só a minha alma.

Da minha obsessão por Sangue

a história da humanidade
é a história do sangue
do quanto foi aquecido
pelas paixões que nos arrastam
do quanto foi derramado
pelos horrores que nos devastam
este sangue em minhas mãos 
é minha história não contada
a mesma história desta terra destruída
desta humanidade aniquilada.
o mesmo sangue da guerra
o sangue dos teus olhos quando chora
o sangue do teu corpo quando escorre
o sangue deste amor coagulado
o sangue deste ódio recolhido
o sangue mal resolvido
o sangue nunca provado
o sangue do sol ao se ir a luz
tudo o que se vive
é só um sangue gotejando 
do teu beijo sobre uma cruz.
não te engana:
esta civilização só valoriza o sangue
o sangue do bicho matado
a seiva da planta cortada.
a minha obsessão por sangue
não é só pelo vinho que me salva
ou que me mata
ou pela dor do bicho atropelado
por seu sangue 
derramado pela estrada.
minha obsessão por sangue
não descansa
é como se Cristo fosse crucificado 
todos os dias
e eu visse seu sangue em toda parte 
o sangue é um resumo 
da minha arte.

Decepção

um corvo sino batia
eram fúnebres da tarde
(o lobo os cordeirinhos comia)
e amei pela tempestade.
martelo sangrava as rosas
eram nuncas madrugadas
(cheirei sangue no ventre das pombas)
te voei em serenatas.
furava sonhos com nadas
Deus debochava os meus medos
(as onças devoravam as fadas)
Satã cantava os teus dedos.
o sol sorria desgraças
de noite em noite eu caía
(eu abri pra ti as minhas asas)
no inútil da poesia.

Ode À Onça-Pintada

Tu estás no pódio olímpico

dos maiores felinos do mundo

e és a única com nome fêmino:
é isto que aumenta teu poder
tua elegância teu charme.
rainha absoluta
das florestas da américa
(essa outra terrível mulher).
sublime irmã dos indígenas
temida imperadora das águas
não há boca como a tua
não há mordida com mais força.
quem é que resiste 
à saliva dos teus dentes?
ao toque das tuas unhas?
quem é que não se queima
com as chamas flamejantes 
do sol da tua pelagem?
quem é que resiste
ao fogo concentrado e hipnótico
do teu beethoveniano olhar?
o trovão do teu rugido
retumba pelos temporais.
quando ergueste teu reino
nem havia humanidade.
e a humanidade deixará de haver
mas tu continuarás
pelo mistério
da tua sedutora eternidade.

Versos Diretos n° 57, 58 e 59

n°57: poesia 
é música em estado sólido.
música
é poesia em estado líquido.

n°58: se tu olhares fixo 
no olhar de um felino selvagem
de duas, uma:
ou ele vai ser indiferente 
e cagar pra ti
ou vai te atacar
sem que possas reagir.
assim deve ser a arte:
sem meio termos.

n°59: a arte 
é como o amor:
ambos nos preenchem
de prazer e dor.
é por isso que Vênus
simboliza os dois.

Soneto de Dúvidas

o que será de mim depois do sono?
que astro em chama me olhará no outro dia?
qual sol ouvirá minha voz vazia?
que verso virá do que já me outono?

como se chega ao prometido, como?
com que lábio se estanca uma sangria?
que estrada é que se pega a quem não ia?
destas ruas nuncas, qual a que eu tomo?

que céu de não voltará entre o pesar?
para onde é que sepultaram os abraços?
quem morrerá pra que se possa amar?

quem beberá o sangue que está aos pedaços?
por que este verso não pôde te olhar?
o álcool a música as noites espaços.