07 fevereiro 2021

Ela...

o outro lado
aquilo que não nos é 
que não vemos não estamos não entendemos
interior de floresta jamais pisado
profundo absoluto do oceano
centro impenetrável dos desertos
animais desconhecidos em extinção
notas estranhas de uma cantata de Bach
detalhe mínimo de uma pintura de Da Vinci
região de onde vieram os melhores versos de Poe
autêntica alquimia medieval
compêndios proibidos de ocultismo
pequeno país longínquo da Ásia
lado oculto da lua Júpiter Netuno 
outras galáxias supernovas  buracos negros
fantasmas espíritos aparições
e Ela
a Morte.






03 fevereiro 2021

Desastres vão até o Fim

não existem desastres pela metade
desastres vão até o fim.
é como um destino que se cumpre:
tu pode tentar o que for
não há freio que pare
não há reza que salve
não há esperança que chegue
não o importa o que se diga o que se peça
tudo vai conspirar 
para que o desastre aconteça 
o desastre não olha nem dá ouvidos
nem mesmo vira a cabeça
e não conhece misericórdia.
não há nada que possa ser feito:
um desastre é sempre perfeito.


30 janeiro 2021

A Vez da Morte

nosso mundo é um ocaso
uma tarde que se finda
sol que se põe noite que chega
tudo anoitece tudo se desfaz
nada mais quer mais ser
nada mais a não ser destruição
não é mais tempo de vida
agora é tempo de morte
irão me condenar pelo que digo, eu sei
nunca ninguém aceitou o fim
fosse do que fosse
é preciso ter vivido muitos fins
(e eu vivi)
para se entender a inevitabilidade do fim
e de que um dia ele chega.
mas não é que ele chegue  só de fora
ele também chega de dentro de nós
(talvez ainda mais)
ninguém mais quer viver grandes coisas:
nem grandes sonhos
nem grandes ideais
nem grandes artes
nem grandes amores
agora tudo se resume ao pequeno:
ter emprego dinheiro lazer
e tudo isso é ocaso
é a morte do que um dia foi grande
eu sei que ninguém quer ler isso
mas a vez da morte chegou.
e meu poema morre aqui.


25 janeiro 2021

Para Fortes

as pessoas dizem: seja forte
como se elas fossem fortes.
o que é ser forte?
se segurar em um ponto
em que deu sorte na vida
crendo que fosse mérito?
estou cansando de ver pessoas se esforçarem
tanto ou mais do que as que conseguiram
e não conseguirem nada.
o que existe é esforço com sorte
(a vida também é jogar dados)
ou sem sorte, mas não propriamente mérito.
mas voltando, o que é ser forte?
é não chorar é não sofrer?
ou é negar que se quer chorar e que se sofre?
é resistir?
mas quem é que chorando não resiste?
ser forte é NÃO ser humano?
ser forte é dar sorrisos falsos
enquanto por dentro a desgraça 
(sem que se saiba) consome?
(nem digo mentindo ao mundo
mas a si mesmo)
é se afirmar em redes sociais
enquanto a vida real está uma merda?
Forte
é quem assume que sente e vive
é quem tem a coragem
de confessar sua dor
e mesmo assim amar.
reconhecer sua fraqueza
num mundo de aparências
é só para fortes.



23 janeiro 2021

Só há juízes no mundo

cada qual é um tribunal.
só há juízes no mundo! onde é que há gente?
ou melhor, onde é que há espelho?
chegamos a um estágio tão avançado e sublime
da humanidade
que ninguém mais erra
ninguém mais tem fraquezas
ninguém mais tem defeitos
só o outro
ah, se o outro comete um erro
oh my god, como pôde?
vamos condenar vamos isolar vamos cancelar!
se não me engano foi o Cristo 
que falava sobre a primeira pedra...
mas isso foi há muito tempo
hoje não há mais humanos
só há juízes
e robôs.

21 janeiro 2021

Viver é não estar nos planos

o que se planeja
não é o que vida:
viver é não estar nos planos
não esperar
é evitar que o vindo
não seja o esperado

só espero pelo que não se espera
que é o que não depende
do inútil do meu esforço
mas de um indefinido não pensado
paisagem em súbito na estrada
susto de inspiração surgida do nada

como pode valer a pena
ser alcançado o que sempre esteve
ao alcance da mão?
a canção que mais nos comove
é aquela que canta
(em nosso íntimo)
o imenso de um não

o que é então
que deve ser como deveria?
melhor é o que não se espera
o que não se vê e nem seria

as mais longínquas estrelas
são vistas apenas
durante noites sombrias

16 janeiro 2021

O que sei fazer

pensei: o que vou escrever agora?
não tinha ideia nem inspiração nenhuma.
e continuo não tendo.
no fundo não vale a pena escrever: 
se ganha poucas coisas
e a principal é inimigos.
mas tenho que escrever alguma coisa
porque é só o que sei fazer
(e olhe lá)
não gosto de ficar dois três dias 
sem escrever nada
me sinto um fracassado
(como se eu não fosse
como se alguém não fosse).
então vou escrever qualquer coisa
alguém há de gostar
há gosto para tudo.
bom, estou ouvindo Katatonia
e bebendo whisky com gelo
lá fora se prepara uma tormenta.
e acho isso perfeito.
mais alguma coisa? ah sim:
foda-se.

13 janeiro 2021

Alarme

viver é estar atento
é ver o óbvio como sendo óbvio
(e olha que não é fácil)
se não tivermos antena
nada vale a pena

o melhor é que não nos escape nada
nem o mínimo movimento que se esconde
o como o onde o cada
o que não pode o que não há-de
como a presa percebe a cobra
como a cobra pressente a presa

há que se sentir
cada pulsar de veia
todo sinal que vibre
como o tigre persegue a presa
como a presa se esquiva ao tigre

há que se captar o gesto o cheiro a íris
o sonho o vago o sem-saída
que eu esteja sempre atento
no sangrar do crepúsculo do tempo
no que está aqui fora
e mais ainda
ao que está lá dentro

11 janeiro 2021

A Doença

nós somos os doentes de um mundo doente
e o mundo está doente porque nós o adoecemos
nós somos os doentes e a doença
doentes da doença que nós mesmos causamos
e tudo adoece ao nosso redor:
os rios têm febre alta
os animais vomitam sangue
as árvores têm hemorragias
as aves tossem sem parar
os mares estão cobertos de chagas e feridas
o céu está pálido e com fadiga
as flores não conseguem respirar
os campos têm rachaduras na pele
as florestas têm tremores e não conseguem se erguer
e as cidades têm cancer
e nós somos as células cancerígenas


31 dezembro 2020

Poema de Ano-Outro

ano-novo? que é que terá de novo nisso?
como que as pessoas esperam algo de novo
se continuamos sendo os velhos bostas de sempre?
como se a mudança viesse de fora e não de dentro
como se o que mudasse fosse a humanidade
e não o ser humano
como se o novo viesse por decreto
ou pela simples passagem do tempo
que novo que haverá dentro das mesmas regras
das mesmas convenções dos mesmos limites dos mesmos padrões?
todo mundo pensa em novo
mas ninguém muda como pensa
todo mundo fala em novo
mas segue o modelo que já está pronto
e olha com cara feia a quem segue diferente
quem quer mudar seus conceitos?
olhar pelo olhar do outro?
admitir que tem culpa que está errado?
quem é que olha pra seu coração e confessa:
"eu tenho que ser melhor"
quem é que se propõe a amar mais?
então até me falem em ano-outro
mas não me falem em ano-novo.


28 dezembro 2020

Coisas que Não Consigo (e Mahler)

eu não consigo olhar filme dublado
não consigo comer comida recém saída do fogo
não consigo usar roupas claras
não consigo tomar cerveja no inverno
frio exige vinho ou destilado
não consigo ver um gato sem admirá-lo
não consigo gostar de matemática
não consigo dormir cedo
(a não ser em caso de real necessidade, mas é complicado)
não consigo entender quem não gosta de animais
não consigo entender gente que não gosta da natureza
nem mesmo quem gosta um pouco
que negócio é esse de gostar um pouco?
natureza é para ser amada adorada idolatrada
não consigo ler poesia só mentalmente
tem que se usar a voz e sentir a sonoridade das palavras
não consigo escutar música baixa
não consigo imaginar uma reunião
divertida de amigos sem música
não consigo ficar um dia sem ouvir música
e eu não consigo ter esperanças nesta humanidade
(eu disse NESTA)
ainda mais agora enquanto escuto
as sinfonias de Mahler.






25 dezembro 2020

Beethoven e a Solemnis: "De todo o Coração"


Certo músico escreveu que se Beethoven tivesse composto SOMENTE a Missa Solemnis, já seria considerado um gênio da música. Na partitura da Missa, o seu Opus 123 (ou seja, é da mesma época da 9ª Sinfonia, Opus 125, da sua última fase) Beethoven escreveu "De todo o coração".  E de fato o é: música composta de todo o coração, de toda alma, da genialidade mais profunda. Trata-se de uma das maiores obras musicais de todos os tempos, tão alta, tão poderosa, tão imponente, tão revolucionária quanto a Nona Sinfonia, mas bem menos conhecida do grande público. Há obras bem menores de Beethoven, bem menos expressivas, como a bagatelle Für Elise, que  são muito mais conhecidas.

Não é música fácil, de se compreender com facilidade, exige uma, duas, três, quatro, várias audições, o que não a torna inacessível, pelo contrário, seu caráter é tão poderoso e impressionate que assombra a qualquer ouvinte já na primeira vez que a escutar. E mesmo sem muita concentração.

Também não é, como muitos devem imaginar, música de caráter meramente religioso, apesar do seu nome (uma missa) e de sua letra (é a letra da tradicional missa do cristianismo antigo, cantada em latim), pois a missa na música já havia se transformado em mais um gênero à serviço dos grandes gênios.

A Missa Solemnis vai muito, muito além. Beethoven não era um homem propriamente religioso. Também não era ateu. Entendia Deus como uma força, uma potência universal que abrangeria a tudo e a todos. Beethoven era um panteísta. E assim é o caráter da Missa Solemnis. Um sobre-humano monumento à essa força universal, uma obra-prima absoluta de expressão do Cosmos, do amor entre todos os seres, advinda do Ser, é a materialização musical da alma do universo.

A 2ª missa de Beethoven, ou seja, a Solemnis, finalizada em 1823, não é a única grande missa da história da música. Bach compôs a sua fenomenal Grande Missa em Si, Mozart tem a Grande Missa em Dó, Schubert, Bruckner, Haydn, entre outros, também criaram nesse gênero obras excepcionais. Mas a Solemnis de Beethoven possui algo que a torna única, inigualável, e não se sabe dizer exatamente o que é. Talvez a força descomunal, a inovadora potência instrumental, a inusitada violência sinfônica, talvez os coros alucinados, dilacerados entre o sofrimento e a glória, entre a angústia e a grandeza, entre o tragédia e o amor. Talvez tudo isso junto e ainda mais.

A Missa Solemnis é Beethoven em seu auge. É o que há de mais elevado no gênio de Bonn. É o que há de mais elevado na Arte. É arte "de todo o coração" para o coração dos homens.

Acima, um trecho da Missa Solemnis, o Gloria, em uma das melhores interpretações dessa obra gigantesca: a da Concertgebouw Orchestra, com o grande Bernstein na regência.

22 dezembro 2020

O que Falta aos Homens

não precisamos de mais mente
precisamos de mais coração.
inteligência sem coração se transforma em vazio
em maldade em destruição.
desconfia de toda pessoa 
que despreza o coração e o sentimento:
é ou será um perverso um tirano.

precisamos de mais coração:
quem ama um árvore
não corta uma árvore
quem ama um animal
não caça ou maltrata um animal
quem ama um rio um mar
não joga lixo nas águas
quem ama sua terra não destrói sua terra.
quem mantém o seu coração
entende e sente compaixão pelo sofrimento
e evita o sofrimento dos outros
busca aliviar as dores e reduzir as injustiças
só o coração traz, ao menos, a empatia
(eu nem vou falar de amor).
inteligência não significa sabedoria.

não é inteligência que falta:
o que falta é sensibilidade.
a ausência de coração
está destruindo nosso planeta
e a humanidade.

21 dezembro 2020

Poema de Natal a um Urutau



naquela noite de Natal
tu serás tu mesmo:
enquanto os homens se mostram
tu te escondes
como se nem fosses.

tu não estás nem aí
para o que os homens fizeram de 2020
ou de todos os anos que passaram 
tu és pássaro
és noite e oculto
tu existes no teu não estar
não sendo nada além de Ser
és um verbo que se fantasma
grito do não-dito
és um lamento-punhal
és toda a Dor 
de uma era final
quem te vê quando cantas?
quem te sente quando choras?
o que cantas é um susto
que não nos deixa sinal
por isso este poema
ninguém te vê ninguém te quer por perto
porque dizem que és ave-funeral
mas tu sabes, Urutau
que ninguém também 
vê o Natal.


Obs.: o urutau é uma ave noturna que se utiliza muito bem da sua incrível capacidade de camuflagem. Por isso, raramente é vista. Vive da Costa Rica até a Argentina. Seu nome, urutau, em tupi-guarani significa "Ave-Fantasma". O motivo do nome, além de sua quase "invisibilidade", é que o seu canto melancólico é uma espécie de gemido muito triste, que lembra um lamento humano. 

16 dezembro 2020

Beethoven, nos teus 300 anos, eu estarei morto


Beethoven, tu faz hoje dois séculos e meio de eternidade
um gênio e um ser humano
e emocionante pra caralho.
(alguns vão reclamar do meu palavrão, foda-se.)
tua música é profunda e é sincera
é imensa e é simples: é simples
fala direto ao coração: basta sentir.
não é difícil como pensam aqueles
que nunca pararam para te ouvir:
é música de alma para alma
é música para quem ama música
(ou só pra quem gosta, nem precisa amar)
é MÚSICA. ponto.
é música para quem tem olhos
para quem tem boca
para quem tem peito
para quem sofre para quem luta
para os vitoriosos para os derrotados
para quem vive para quem morre
para as lágrimas para  os sorrisos
é música para quem ama
é sangue para quem ama.
Beethoven, tu sofreu como um filhodaputa
e quase te matou
mas decidiu viver putodacara
para nos ensinar a amar.
Beethoven, obrigado por resistir
e por sentir por todos nós.
eu teria sido pior (ainda pior) se não fosse tu.
então, bêbados, como tu gostava,
vamos comemorar!
Salud!


15 dezembro 2020

Eles vão ficar horrorizados

há uma vida que não a vivida
onde deveríamos estar
mas os caras querem nos convencer
de que a vida é só isso que esta aí
esse rastejar cego de vermes
que sempre seguem a mesma linha
sempre na mesma fôrma no mesmo molde 

esses caras querem que a vida
seja só os meios de se viver:
trabalhar comer cagar trabalhar
dormir levantar trabalhar morrer
e nas horas de folga se preocupar
em ter que trabalhar para pagar
o que nem se pode viver
e não se chegar a fim nenhum
a não ser chegar ao fim
mas eles querem que isso seja a nossa vida
e que agradeçamos com um sorriso
a chance de sobreviver sem sentido
para deixar uns poucos mais ricos
(que por coincidência são eles)
sendo só mais um entre um monte de uns

para eles o sonho a natureza a arte o amor 
pensar sentir  passear e ver 
são só coisas fúteis que não valem nada 
(mas só quando é para os outros)

e se você mandar eles à puta que pariu 
eles vão ficar horrorizados 
enquanto eles é que são o horror.


13 dezembro 2020

a uma Serpente


entre o sim e o sol
silencia o segredo
calma de alma
que nunca passa
teu sempre sábio
som de sonata
calma da água 
que nada (a)tinge
que pedra alguma
nem mancha nenhuma
perturba (a)funda
infringe.
olhar de fogo frieza
lâmina adaga
que ninguém enfrenta
ou afaga
sangra teu sopro
sereno em veneno
saga  teu sonho
em cosmos distantes
teu silvo hipnótico
a que tudo se rende
e teme teu dente
para sempre serpente.

09 dezembro 2020

Só para quem gosta de Gatos


um gato pode sofrer
mas não se desespera
pode estar triste
mas nunca abatido
pode perder tudo
mas nunca fica sem nada
um gato, se não tiver quem lhe ampare
ele se vira
se não tiver quem lhe alimente
ele caça
se não tiver quem lhe ame
ele se ama
um gato pode ser humilhado
mas nunca perde a majestade
pode estar faminto
sem perder a presença de espírito
pode estar um farrapo
mas sua graça leveza agilidade
inteligência sentidos elegância
permanecem.
um gato é uma obra prima
enquanto o homem é uma vergonha.
e aí está a Sophie
que não me deixe mentir como um homem.


07 dezembro 2020

Não me confundam com o que escrevo

minha poesia  não dá concessões
não suaviza não ouve opiniões
minha poesia é como um basta
que não agrada não dá o braço
não busca a paz (não mais)
não se retrata não retrocede
não se arrepende
não volta atrás
não dá ouvidos
radicaliza definitiva
poucos sorrisos
quando ironiza.

minha poesia está cansada
já não perdoa não alivia.
minha poesia
é de tristeza
dilacerada
angústia extrema
é de um luto
absoluto
quase divino.
é só um aviso
que não dá chances
não acredita
e faz miséria
e mau poema.

nem sente pena.

é a minha poesia
não sou eu 
não é o que eu sou.
mas ela fica
e eu logo me vou.

06 dezembro 2020

Adeus, Humanidade

 alguém poderia questionar:
"por que tu escreve? ou
pra quê?
quase ninguém mais lê
muito menos poesia
e se lê entende muito pouco
se é que entende
e mesmo que entenda 
não dá muita atenção
entra por um olho e sai pelo outro"

eu responderia
que isso é escrever pelos outros
mas eu escrevo por mim e para mim
é para o meu bem
(com amáveis exceções)
se for bom para os outros, melhor
se não for, eu escrevi
bem ou mal aí está: obra feita.

mas outros ainda poderiam argumentar:
"não há mais nada a ser dito
tudo o que se diz hoje
já foi dito antes
e de forma melhor por gente melhor."

eu responderia
que não deixa de ser verdade
mas completaria dizendo que ainda
há algo a ser dito:
o Adeus.