03 agosto 2019

Agora que estou morto

Certo dia, disseram-me que seria bem melhor se eu me matasse.  Obviamente, não acreditei. Mas aos poucos, bem aos poucos, muito gradualmente, através de insidiosos detalhes, de sugestões sordidamente subliminares, de fatos e acontecimentos quase que imperceptíveis, a ideia nefasta do suicídio foi tomando forma no meu universo psíquico...

Na verdade, era algo extremamente difícil, quase impossível, escapar à atuação daquelas sugestões suicidas. Muitas vezes, chegavam a ser mais do que sugestões, tornavam-se mesmo imposições, não imposições violentas ou forçadas, mas imposições daquela categoria que, sem deixar de ser elegante, não nos deixam alternativas. Era como pisar nosso pé com educação, com um doce sorriso no rosto. Diziam-me eles, e me provavam, que todos já haviam se suicidado. E que não se arrependiam. Que assim estariam de acordo com todos aqueles que pensavam no que seria melhor para as nossas existências. Insistiam que eu deveria ser sensato e analisar com racionalidade a questão. Assim exigia a categoria de mundo em que vivíamos.

Durante muito tempo hesitei. Havia algo dentro de mim que me transmitia a sensação de que eles mentiam, ou que, ao menos, omitiam uma parcela fundamental da verdade. Ou ainda que talvez eles estivessem realmente convencidos do que me preconizavam, mas que deveriam ter sido enganados, iludidos por outros, assim como agora intentavam fazer comigo. Seja como for, seus argumentos eram irresistivelmente convincentes, duvidar de suas palavras chegava a ser um sacrilégio.

Com o tempo, descobri que eram sinceros e que estavam
imbuídos das mais nobres boas intenções. O que não significa que estivessem com a razão. Acreditavam no que diziam, pensavam de fato aquelas coisas, que pareciam soar em suas palavras com tanta sensatez e bom senso. Porém, creio que tais pensamentos não eram autenticamente seus, talvez fossem incutidos em suas mentes por outros, ou por algum poder obscuro, que eu desconhecia, algo como uma lavagem cerebral. Agora, a lavagem seria em mim.

Para eles, o suicídio era o padrão a ser seguido. Por não tê-lo ainda cometido, causava-me espanto o isolamento em que aos poucos fui constatando que me encontrava. Quase todos os outros já haviam se matado ou estavam a caminho de fazê-lo. Alguns, para tomarem coragem, antes de cometer seu suicídio, tentavam convencer as demais pessoas a realizar o mesmo. Desejavam veementemente o suicídio em massa. Já outros, após o ato suicida, vinham para provar que agora viviam absolutamente tranquilos, sem nenhum tipo de preocupação, existindo como se não existissem, o que constituía, para eles, o auge de uma vida perfeita, aceita e compreendida por todos. Enfim, acreditavam-se felizes. E muitos vinham, por piedade, para ajudar os que ainda não tinham se matado, dispostos a ensinar e encorajar o maior número possível de suicídios.

Viviam aqueles suicidados com a firme aceitação geral. 
Eram tomados como exemplos, para todos, de pessoas decididas, conscientes de seu lugar no mundo, sensatas, trabalhadoras, vitoriosas, que obtiveram o pleno sucesso na vida. Os outros, os que não se mataram, os poucos, os raros, que ainda insistiam em não se suicidar, eram duramente condenados, acusados de mil e uma tolices, erros, equívocos, fracassos, absurdos e, até mesmo, de infâmias e crimes. De modo que a pressão psicológica para que também se matassem era gigantesca.

Eu, hesitando em me suicidar, era visto com muito maus olhos, naturalmente. Chamavam-me de louco. Não entendiam, os suicidados, o que eu buscava na vida. Era ostensível, para eles, que eu só obteria derrotas e fracassos, desgostos e desilusões, aflições e angústias, miséria financeira, todo tipo de insegurança e de incompreensão, que sentiria na pele a crueldade do mundo, talvez me tornasse um pária, um marginalizado, e provavelmente acabaria meus dias na mais completa solidão, sem família, sem amigos, sem trabalho, talvez até mesmo em um hospício ou na prisão.

Até que não vendo saída, cercado por todos os lados, pressionado por aqueles que supostamente vinham me ajudar e convencido por seus irrepreensíveis e avassaladores argumentos, decidi-me pelo meu suicídio.

E o cometi. Agora sou um suicidado. Sinto uma moderada tranquilidade que, no entanto, não é sinônimo de paz. Casei-me com outra suicidada, não creio que realmente a ame. E isso também não importa. Ela também não deve me amar de uma forma verdadeira. Aliás, quem ama de verdade? Temos uma linda filha, que, com o tempo, também aprenderá a se suicidar. Assim desejamos, assim devemos desejar. Vivemos de forma relativamente segura, com uma regular independência financeira. Não temos grandes preocupações. Praticamente, não há alterações nos dias de nossa rotina, creio que atingimos, de forma mediana, todos os nossos medianos objetivos. Sim, objetivos moderados. Grandes objetivos, ideais, vastos sonhos são sempre inatingíveis. E trazem dores insuportáveis. Aprendi que devemos sempre evitá-los.

Tenho um bom emprego, trabalho 40h por semana, não é muito, há alguns suicidados que trabalham bem mais. Não é o emprego de meus sonhos, admito, um pouco estressante, é verdade, meio sem graça, mas paga bem. Nos fins de semana, saímos para nos divertir, tomamos umas cervejas, jantamos fora, às vezes viajamos, é uma vida agradável. E é isso. Não há muito que acrescentar. Não me interesso pelas coisas que acontecem no mundo exterior, a não ser aquele interesse indiferente de quem assiste a um telejornal. Lamento as tragédias, sorrio com as boas notícias, mas também o que poderia fazer por elas? 

Sou, agora, uma pessoa sossegada, não quero nada mais que venha me inquietar, perturbar o meu morno sossego. Agora sou como todos. Agora estou morto.

01 agosto 2019

Dedicatória à Noite

entre o haver da noite
o que há por trás dos entes
do ventre da mata
que a manhã
desentranha e mata?

é isso talvez que me alta:
ver que o que há
(sendo ou não comigo)
vai em frente
numa cósmica noite
mais longa mais funda mais vasta

há o sempre haver da noite
e os seres que no atrás da mata
não existem entre os que não entreveem

trago no meu ser
como quem traga
grandes goles de álcool-éter
essa desestranhada estrada
que assim como eu:
é culpada!
em sempre haver a Noite...

30 julho 2019

Alguns Chutes na Bunda do (Des) governo Bolsonaro

A seguir, uma reunião de postagens que realizei na minha página do Facebook, sem alterações:

 - Finalmente, com Bolsonaro, estamos no caminho de ser uma Venezuela: ditadura imbecil, censura hipócrita, caos social, ausência de investimentos, desemprego e pobreza em alta, educação e saúde sucateadas, nepotismo descarado... Bom, pelo menos a Venezuela não entrega suas riquezas de mão beijada para os EUA e nem permite tão absurda destruição ambiental.

- Dizer que preocupação ambiental é "coisa de vegano" é um dos maiores atestados de idiotice e ignorância de que tenho conhecimento. Como se fosse só o vegano que precisasse de um planeta preservado para viver. Com vocês, o maior idiota da história da política brasileira, Jair Messias Bolsonaro. Mas teve vegano e vegetariano e defensor da natureza que votou nele. Pra esses, meus parabéns!

- Líder indígena é assassinado por garimpeiros, helicóptero do Ibama recebe tiros de madeireiros para que não faça fiscalização, filho do presidente vira embaixador por vontade do próprio presidente, desemprego, desmatamento, pobreza em alta, e o presidente diz que é tudo mentira e quer proibir quem divulga as informações, doentes sem remédio, educação sem verbas, universidades sem dinheiro pra pagar a luz... e por aí vai. Eis o caos anunciado do desgoverno Bolsonaro.

- Lógica de um bolsonete: institutos estão errados, estatísticas estão erradas, ambientalistas estão errados, cientistas estão errados, escritores estão errados, professores estão errados, jornalistas estão errados... Só o Bolsonaro tá certo.

- Lembra da reforma trabalhista do Temer em 2017? Diziam que era pro bem do povo, que com ela o desemprego iria diminuir, que era melhor ganhar menos, ter menos direitos, mas ter emprego. O Bolsonaro votou a favor. Mas hoje, você perdeu direitos, a média salarial diminuiu e o desemprego aumentou. Mas você acreditou na falácia da reforma, como agora você acredita na reforma da previdência, que se resume a duas coisas: você vai trabalhar mais e ganhar menos. Você não percebe que essas reformas, e tudo mais nesses governos, são APENAS para favorecer o lucro das grandes empresas. É o governo para os ricos. E você é só um burro. E um robô.

- O Bolsotário disse que é a favor do trabalho infantil, justificando que quando ele era criança ele ajudava o PAI dele no trabalho. Será que ele dá essas declarações por burrice pura e simples ou por maldade? Ou pelos dois? Como ele pode ser tão imbecil e cruel comparando um trabalho de ajudar os pais (se é que ele realmente fez, porque mais mente do que fala) com a exploração absurda e desumana, semiescrava, que muitas grandes empresas cometem com crianças que para elas, as empresas, não passam de robozinhos controlados, pouco importando suas vidas, saúde ou futuro?






28 julho 2019

Esquecimento (Cair no)

os humanos deixaram-se
tanto se esqueceram
que já nem se sabe o que foi esquecido
nem se sabe  o que já nem foi
aquilo que houvera sido
de tanto que  não foram
que já agora nem são
tanto não são
que acabaram por não ir

fizeram tantas coisas
que nem chegaram a existir
formaram tantas cidades
onde nem se viu viverem

ao bem pouco que foi feito
deu-se o nome de Arte
que é o que se seria
se o humano chegasse a sê-lo:
o homem não-sendo
ainda foi à arte
para voltar ao Ser
mas se deixou
a destruir tudo o que É
agora sendo só nada
está o homem que não-é
entre o cair
e o des-ser

25 julho 2019

Perdendo Tempo

Fernando Pessoa já perguntou?
“o que é o tempo para que eu o perca?”

ler um romance
no lugar de ganhar dinheiro
é perder meu tempo?

ouvir música
no lugar de ler o romance
é perder meu tempo?

se eu brincar com um gato
no lugar de ouvir verdades
perderei meu tempo?

só me inspirar sem fazer nada
é perder meu tempo?

se eu entender toda a humanidade
sem sair da minha preguiça
(que necessidade que há
de se sair da preguiça
para se entender a humanidade?)
vou perder meu tempo?

se o irreal é a perda do tempo
o real seria o seu ganho?
quem determina o que é real?
e ainda que o real seja o real
o que há de ganho nisso?

a falsa felicidade de todos
veio do ganho de tempo?

ganharei meu tempo
planejando o tempo?
ou ganharei meu tempo
fazendo o que sei que não quero
para ter o que penso que quero?

ganhar tempo é ser útil a mim
e  à humanidade?

mas o que seria útil a mim
e à humanidade?

(ser produtivo
é um ato falho.
não produzir nada de útil
é o mais difícil trabalho)

23 julho 2019

de Humanidade, Ditadura, Liberdade

I - o mais absurdo da humanidade
é haver gente que vê saída
para o absurdo da humanidade

II - têm razão os que querem a volta da ditadura:
acaba-se com os males por decreto:
se alguém fez um mal, ninguém viu, porque é proibido
(não proibido fazer o mal, mas vê-lo)
e se ninguém viu, é porque o mal nem existiu

III - Liberdade não é só se dizer o que se pensa:
é pensar o que se vive
viver o que se sente
sentir o que foi dito
e saber o que está escrito

21 julho 2019

Sem muito o que Dizer

I - do poema futuro:

em cadáverso
um cadáver
em cadáestrofe
uma catástrofe

II - do tempo:

o problema do tempo 
é que um dia ele chega
e quando chega
o tempo que passou 
não chegou:
o tempo é sempre 
insuficiente

19 julho 2019

A Nossa Queda

não verás saída
para  o que te selaram 
como preço
pois verás um cerco 
que te prensa
e um circo de esterco 
que te apreça

é só este charco que te acerca:
desde o que pensas
(que é o que te ditam as imprensas
a te enfiar pelo rabo)
até essa pressa
de consumir a todo apreço
o que te ditam as empresas
a transbordar pelo ralo:
o que te espera
é só esse vaso
sanitário

de modo que a Nossa Queda
é só questão de preço e passo
ao abismo
só o que resta é o alerta:
todas essas eras de alarde
o Tempo com desprezo
esmaga cedo ou tarde

17 julho 2019

Pequena Marcha Fúnebre com os Pés numa Poça de Sangue

como não falar da morte
que nos olha tão constante
nestes dias que nos mostram
que nos vêm os corvos
que nos vêm os corvos

como não falar no horror
que nos vem de todo lado
com este sangue que nos lembra
de que nós já fomos
de que nós já fomos

nunca a morte foi tão forte
nos cravou tão longa garra...
ah esses olhos que recordam
de que já não somos
de que já não somos

quem me dera fosse amor...
mas a morte nunca esteve
perto mais perto tão perto
e só quem sente é quem sabe
de que vêm os mortos
de que vêm os mortos
de que estamos mortos

15 julho 2019

Eu não sou o que Digo

o meu verso nada tem a ver do que penso
por mais que seja o que penso o meu verso
a arte que por ele passa quando passa
vem de um outro todo que nem tenho
vento que se vaga não comigo
lago que se nada no não-dito

deixo que passe o que se passa por mim:
a quem importa aquilo que me sinto
e o que corre no sangue do que tenho?
de que vale o vale que me afundo?

o verso é vasto longo e fundo
vai muito além do que nem está em mim:
por que querer que ele fale de um eu?
por que querer que ele diga o que (nem) sou
por que o verso tem que ser o que é meu?

13 julho 2019

A Próxima Guerra

a próxima guerra 
dos homens sem água
será pela mágoa
sedenta
de um mundo morto sem trégua
por homens mortos à míngua

A Próxima Guerra
dos homens sem alma
será pela água
barrenta
e de sangue esgotado por terra
e da vida envolvida por fogos

A Próxima GUERRA
dos homens sem vida
será pela alma
num mundo afogado nas trevas
de um poço sem água sem fundo

A PRÓXIMA GUERRA
dos homens sem nada
não será mais por moedas
mas por um pedaço de pedra
de merda

10 julho 2019

A Propósito da "Reforma da Previdência": (Só)Trabalhe! *

quando eles dizem: "Trabalhe!"
eles querem dizer: "SÓ trabalhe!"
é a melhor forma de dominação:
quem só trabalha
não tem tempo para ler
não ... para ouvir
não ... para ver
não ... para pensar
não ... para sentir
não se inquieta
não questiona
não contempla
não tem tempo para a vida

quem não vive
não se importa com o que vive
não ... com o que sofre
não ... com o que morre

a era pós-humana
a era pós-tudo
quer só máquinas quer só robôs
porque eles SÓ trabalham

quando eles dizem: "Trabalhe!"
eles querem dizer "SÓ trabalhe!"
eles só não dizem só
porque não é só
isso

*Poema elaborado em junho de 2017.

07 julho 2019

Sentença

a cada árvore plantada 
há mil derrubadas 
tantas 
quem nem deixam sinais 

a cada água que é clara 
há mil esgotadas 
tantas 
que nem se nota o horror 

a cada animal que é amado 
há mil massacrados 
tantos 
que nem se olha ao redor 

a cada balada composta 
há mil baladas na testa 
sangue 
que é tudo o que nos resta 

a cada beijo que é dado 
há mil beijos fingidos 
e ainda mais outros mil 
daqueles malditos 

e tenho escrito

05 julho 2019

Mensagem da Ruína

finda teu rastro em ruína
enfia o rabo no reto
risca da face da terra
teu rosto-resto em ruína

homens de raça-ruína
reles que roem e rastejam
porcos que arrancam e arrastam
num riso de reza em ruína

roídos seres-ruína
na rua em ranhos e ratos
de ranço e raiva rodeados
roucos de caos e ruína

rompida em fome e ruína
se rega em rugas tua alma
as rãs arranham o teu réquiem
e rolam ao rol das ruínas

homem em rápida ruína
larga ao raio tua rosa
rasga essas roupas de rico:
junta-te à Nossa Ruína.

03 julho 2019

Pós-Humano

as pessoas confundiram viver 
com o que se faz para viver: 
vive-se para um meio 
e nunca se chega a nada

as pessoas confundiram vida 
com o preço que se paga pela vida: 
apenas se paga o preço 
e não se vive

o objetivo da vida 
tornou-se o cansaço para o descanso 
para que se (al)canse de novo 
o mesmo objetivo (al)cansado
a se (al)cansar

chama-se de vida 
os pós que nos caem entre os dedos
para o vazio de (não) se viver

01 julho 2019

Governo Eduardo Leite: seis meses de Sartori

Eduardo Leite, do PSDB, é o novo Sartori. Ou melhor, é um Sartori piorado, por ser mais hipócrita. Elegeu-se através do conceito subjetivo de "Oposição Consciente" ao governo Sartori, criticando, durante a campanha de 2018, principalmente,  a política contra os serviços e servidores públicos exercida de forma impiedosa pelo governo PMDB durante seus quatro anos de desmonte do Estado e de venda do patrimônio público. Leite, na campanha, declarou: "Não é preciso parcelar salários. Dinheiro não falta. O que falta é um bom gerenciamento e reorganização do fluxo de caixa."

No entanto, uma vez eleito, o governador pelo PSBD, na prática, traiu seu discurso e os que nele votaram com a esperança de que a situação fosse alterada. Mantém exatamente a mesma política de Sartori: opressão e descaso com os servidores públicos, arrocho salarial, autoritarismo, sucateamento dos serviços oferecidos à população gaúcha, ausência de combate às regalias e à sonegação,  renúncia fiscal, privatizações e entrega do patrimônio do Estado etc.

Na verdade, assim, como os quatro anos do governo Sartori, esses seis meses de Eduardo Leite não são propriamente um governo, mas um desgoverno de desconstrução e desmonte, no que se alinha ao desgoverno federal de Jair Bolsonaro. São seis meses de um oceano de nada, de confusão e desorientação, em que o preço é pago, principalmente, pelos servidores públicos e pela população em geral que não tem o devido retorno dos impostos que paga.

No caso específico da Educação, a situação é ainda mais grave. Além dos atrasos e parcelamentos salariais que atingem todo o funcionalismo público, e já entraram no seu 43º mês, o Magistério gaúcho sofre com uma ausência absoluta de reposição salarial desde o início do governo Sartori. Já são 4 anos e 6 meses sem reajuste. Não fosse isso o bastante, escolas sofrem por falta de verbas, professores contratados são demitidos durante licença-saúde, a lei do piso continua a não ser respeitada e não há nenhum tipo de diálogo ou negociação com os professores.

Dessa forma, a paralisação desta segunda, dia 1º de julho, é um sinal claro de que, para os professores estaduais, a situação está insustentável, e que se não houver algum tipo de sinalização por parte do governo Eduardo Leite de que de fato negociará, medidas mais drásticas deverão ser tomadas pelo Magistério do RS.

30 junho 2019

A Época da Ausência

I - a cada passo dado pela humanidade
morre um otimista
que não percebe o passo
e não sabe que morreu

II - acreditar (ainda)
nesta civilização
como sendo civilização
é algo menos de ingênuo
e mais de perverso

III - dizem que vivemos tempos de desespero.
discordo.
para o desespero é necessária a consciência
de que se perderam as esperanças.
essa consciência não a temos:
vivemos tempos de vazio
vivemos a época da ausência

28 junho 2019

Sangue em Minhas Mãos

olho para o mundo que me cerca
e me sinto mal
olho para as pessoas que me cercam
e me sinto pior
olho para a morte que se acerca
e não me sinto vivo
olho para a vida entre cercas
e nem me sinto

não posso me sentir satisfeito
enquanto bilhões nem comida
têm para sua satisfação
não posso me sentir realizado
enquanto meu planeta
e tudo que nele vive
é aos poucos massacrado
anquilado
destruído

não existe sucesso algum
em meio ao fracasso desta civilização
o que se chama felicidade
não passa de mesquinharia
quem se julga feliz
é só um egoísta

26 junho 2019

Ladrão com Honra

há o ladrão covarde
e o ladrão com honra:
o ladrão covarde
entra pra política 
vira deputado
ou abre uma empresa
ou funda uma igreja
(ou tudo isso junto)
para poder roubar
com a lei do lado

veja bem:
eu não escrevi
que TODO político empresário pastor
quis sê-lo por ser ladrão
(é preciso que se diga
pois há quem entenda 
tudo errado)

já o ladrão com honra
(sejamos francos)
assalta bancos

23 junho 2019

O Homem Correto

Abordaram-me durante uma manhã de sol.  Disseram que eu estava indo para o trabalho pelo caminho errado. Garantiram-me que, para meu próprio bem, eu deveria seguir por outro caminho. Protestei que, para mim, o caminho que percorria naquele momento era perfeito, que eu sempre o fizera, e que não via por que outro seria melhor. Mostraram-me então o caminho que eu deveria percorrer. E não somente naquele dia, mas por todos os outros em que eu fosse trabalhar. Caso não fosse por ele, seria punido. O que era, segundo eles, perfeitamente justo, uma vez que era tudo para o meu próprio bem. 

Convencido, passei, daquele dia em diante a ir trabalhar somente pelo caminho que me fora orientado. Não vi nenhuma vantagem em fazê-lo, creio que era até um pouco mais longo do que o que percorria anteriormente. Mas se eles estavam tão certos que era para o meu bem, como poderia contrariá-los? Sem contar que, se não o fizesse, seria punido. Não me esclareceram, no entanto, que tipo de punição eu sofreria.

Dias depois, estava almoçando em minha casa, quando ouvi batidas na porta. Atendi. Eram eles. Traziam-me algumas viandas com variados tipos de comida, conforme verifiquei instantes depois. Imaginei que as viandas fossem o seu almoço. Convidei-os para entrar e almoçar. Recusaram, declarando que aquela comida não era para eles, mas para mim. Naturalmente, eu deveria pagar pela comida. E o fiz. Acrescentaram que já haviam se encarregado de realizar a encomenda de meu almoço, e que o mesmo seria entregue sempre por volta do meio-dia no meu endereço por um menino escolhido por eles. Eu deveria pagar o almoço ao menino. Todos os dias. E comer, ao menos durante o almoço, somente o que havia nas viandas. 

Eram alimentos cuidadosamente escolhidos para a minha mais perfeita saúde. Retruquei que não gostava de vários alimentos que ali estavam. Responderam que isso não fazia diferença, eu deveria comer e me habituar a eles. Era para o meu próprio bem. Caso me recusasse a me alimentar somente com os alimentos das viandas, seria severamente punido. Tive que aceitar.

Quando abri a última das viandas (eram 5 no total), não havia comida ali, mas uma folha de papel cuidadosamente dobrada. Abri-a e li o seguinte:

“Senhor Gilberto, aqui está uma lista dos livros, revistas, músicas e filmes. São os que você deverá ler, ouvir, assistir durante este mês. Não é necessário ler todos os livros, ouvir todas as músicas, assistir a todos os filmes. Porém, o que senhor desejar ler, ouvir ou assistir, deverá estar incluído nessa lista. Nem é preciso que escrevamos que é para  o seu próprio bem. E crescimento individual. Tudo o que está na lista foi selecionado pensando-se exclusivamente em seu bem-estar.  É igualmente desnecessário que escrevamos que a punição oriunda do descumprimento destas determinações será exemplar. No mês seguinte, junto com alguma das viandas, virá a lista para o mês em questão. E assim sucessivamente. ”

No mesmo dia, providenciei alguns dos filmes, livros e músicas. Eu não gostava de quase nada do que estava na lista. Porém, estava certo de que, com o tempo, aprenderia a gostar, e que o benefício a mim trazido pelas obras seria extremamente recompensador. 

Por vezes, desejava encontrá-los na rua para que eu pudesse agradecê-los por tamanha bondade e consideração por alguém tão insignificante quanto eu. Eu, que trabalho em uma indústria de móveis da manhã à noite e que recebo um salário não mais que razoável. Realmente, eu jamais teria tempo para pensar em todas essas coisas que eles têm pensado por mim. Tenho me sentido bem mais tranquilo. Fico imaginando o que devo ter feito de tão meritoso para receber a preocupação e dedicação deles. E chego à conclusão de que não fiz nada. Aliás, nada faço além de trabalhar e voltar para casa. Nos fins de semana, bebo, melhor dizendo, bebia, uma cervejinha com os amigos. 

Digo que bebia, porque não o posso mais fazer. Para meu próprio bem. Há alguns dias, acordei com um telefonema às 3h da madrugada. Eram eles. Rapidamente, pois não podiam desperdiçar seu tempo, disseram-me que eu não deveria mais beber nenhuma bebida alcoólica. Eram nocivas, fosse para a minha saúde física, fosse para a psíquica. Nunca, jamais, eu deveria voltar a ingerir um gole sequer de álcool. 

Também não deveria sair mais com meus amigos. No fundo, não eram meus amigos, eles sabiam. E eu deveria sentir-me grato por eles estarem agora me alertando, antes que fosse tarde demais. Antes que eu me perdesse e me transformasse em um ser inútil, absolutamente improdutivo para a sociedade. Exclamei que sim, que minha gratidão era infinita, e lembro que chorei ao telefone as mais sinceras lágrimas. 

Então se despediram, muito polidamente, lembrando-me das severas punições em caso de desobediência e acrescentando que no dia seguinte eu receberia algo muito importante. Seria um manual, uma cartilha de como encontrar bons amigos. No final da cartilha, haveria uma breve lista com nomes, telefones e endereços de pessoas que seguramente seriam ótimos amigos para mim. Eu deveria procurá-los o mais rápido possível. Poucas vezes senti-me tão feliz em minha vida.

Certo dia, estava eu em um shopping, experimentando roupas em um provador de uma loja. Enquanto vestia a camiseta que provavelmente levaria, escuto um som de respiração, como se alguém estivesse muito próximo a mim. No meu lado esquerdo havia uma cortina. Parecia ser detrás dela que o som provinha. Abri-a. E ali estavam eles. Logo, declararam que estavam me observando, através de um pequeno orifício na cortina, enquanto eu experimentava as novas roupas. E, com um ar de profunda gravidade e decepção, que me estremeceu, disseram-me que não gostaram nem um pouco das roupas que eu estava pretendendo comprar. Eu não estava os agradando dessa forma. As roupas não combinavam comigo, garantiram, não podiam combinar. Elas não me deixariam melhor como pessoa. Eram de muito mau gosto. 

Exclamei, bastante envergonhado, que, fosse como fosse, era o meu gosto pessoal.  Eles não quiseram saber. De súbito, retiraram de seus paletós várias sacolas, cada uma com uma peça de roupa diferente. Disseram-me que, a partir daquele dia, para o meu próprio bem e crescimento individual, deveria usar aquelas roupas. E sempre que eu fosse comprar vestimentas novas, deveriam ser naquele estilo e com aquelas cores. Qualquer dúvida, deveria consultar um manual, uma cartilha de bem vestir-se que eles deixariam com a gerente da loja. Em caso de desobediência... eu já sabia. Claro que as roupas que eles me deram não eram de graça. Paguei por elas.

Levei-as comigo e experimentei-as somente em casa. De início, foi um choque. Senti-me verdadeiramente ridículo. Aquelas roupas não tinham nada a ver comigo. Porém, mantive firme minha força de vontade e segui as usando. Fui trabalhar com elas. Percebi que todos me olhavam na rua com sorrisinhos mal disfarçados e troçavam de como eu estava me vestindo. Mantive-me altivo e não dei atenção. Idiotas, pensei, que não sabem de nada. Se eles me garantiram, é porque assim eu estou bem melhor. De modo que os dias se passaram, segui usando aquelas roupas, adquirindo outras que não fugissem àquele estilo, e, ao fim das contas, nunca me senti tão bem vestido.

As semanas, os meses, os anos foram seguindo seu curso, e, de tempos, em tempos, eu os encontrava na rua, ou em algum local público, ou em meu trabalho, ou eles vinham até minha casa, com o nobre intuito de me transmitir mais instruções de como eu deveria viver, a melhor forma de se viver. E eles aproveitavam tais ocasiões para me inquirir. Desejavam saber se eu estava cumprindo com todas as determinações que me foram outorgadas. Garanti que sim, simplesmente porque era verdade. E mesmo que eu quisesse mentir, seria uma catástrofe, porque eles sempre sabiam de tudo. E então, com a mentira, a punição seria triplicada. 

Questionavam-me apenas para verificar o meu nível de sinceridade. É óbvio que jamais os decepcionei, nunca deixei de agradá-los, sempre agi e me comportei de acordo com o que esperavam de mim, esforçava-me, em suprema abnegação, em mantê-los plenamente satisfeitos. Afinal, eles estavam sempre certos, a razão estava sempre com eles, suas opiniões eram as mais corretas, seus gostos, os mais perfeitos, suas ideias, as mais brilhantes. É assim, que posso fazer?

As últimas instruções que recebi referiam-se a uma lista das mulheres que eu poderia namorar e, posteriormente, casar-me. Não era uma lista longa, havia ali apenas cinco mulheres. Também não eram muito bonitas. No entanto, em hipótese alguma eu poderia escolher para namorar alguma mulher que não estivesse na lista. A punição seria impiedosa.  Como deve ser, para que nos mantenhamos na linha. Ainda estou escolhendo qual delas será. Uma vez escolhida, não posso mais trocar. E a moça deve me aceitar em namoro. Ela não tem escolha. E é melhor realmente que não tenha, daria muita confusão. São as leis, justíssimas, para o nosso próprio bem.

É claro que desde que os conheci, minha vida tem se tornado difícil. Mas eu não reclamo, eu não protesto, jamais me rebelo, nunca questiono. Por que o faria? Sei que tudo o que eles fazem, os sacrifícios por mim e por tantos outros, todas as suas instruções, regras, ordens e disciplinas constituem um esforço tenaz em me tornar um exemplo de cidadão, um bom homem em todos os sentidos, cumpridor de seus deveres, um indivíduo correto, que conhece o seu lugar e as suas responsabilidades, que vive sua vida dentro da lei e da ordem estabelecidas e que, apesar de todos os percalços, é um homem satisfeito e bem sucedido.

Lembro que certa vez um antigo amigo, que, graças, nunca mais o vi, perguntou-me: “Mas como assim, eles decidem tudo por ti e tu achas bom?” Eu, sereno, limitei-me a responder: “É claro, por que não acharia, se assim sou feliz?”