I - do poema futuro:
em cadáverso
um cadáver
em cadáestrofe
uma catástrofe
II - do tempo:
o problema do tempo
é que um dia ele chega
e quando chega
o tempo que passou
não chegou:
o tempo é sempre
insuficiente
21 julho 2019
19 julho 2019
A Nossa Queda
não verás saída
para o que te selaram
como preço
pois verás um cerco
que te prensa
e um circo de esterco
que te apreça
é só este charco que te acerca:
desde o que pensas
(que é o que te ditam as imprensas
a te enfiar pelo rabo)
até essa pressa
de consumir a todo apreço
o que te ditam as empresas
a transbordar pelo ralo:
o que te espera
é só esse vaso
sanitário
de modo que a Nossa Queda
é só questão de preço e passo
ao abismo
só o que resta é o alerta:
todas essas eras de alarde
o Tempo com desprezo
esmaga cedo ou tarde
para o que te selaram
como preço
pois verás um cerco
que te prensa
e um circo de esterco
que te apreça
é só este charco que te acerca:
desde o que pensas
(que é o que te ditam as imprensas
a te enfiar pelo rabo)
até essa pressa
de consumir a todo apreço
o que te ditam as empresas
a transbordar pelo ralo:
o que te espera
é só esse vaso
sanitário
de modo que a Nossa Queda
é só questão de preço e passo
ao abismo
só o que resta é o alerta:
todas essas eras de alarde
o Tempo com desprezo
esmaga cedo ou tarde
17 julho 2019
Pequena Marcha Fúnebre com os Pés numa Poça de Sangue
como não falar da morte
que nos olha tão constante
nestes dias que nos mostram
que nos vêm os corvos
que nos vêm os corvos
como não falar no horror
que nos vem de todo lado
com este sangue que nos lembra
de que nós já fomos
de que nós já fomos
nunca a morte foi tão forte
nos cravou tão longa garra...
ah esses olhos que recordam
de que já não somos
de que já não somos
quem me dera fosse amor...
mas a morte nunca esteve
perto mais perto tão perto
e só quem sente é quem sabe
de que vêm os mortos
que nos olha tão constante
nestes dias que nos mostram
que nos vêm os corvos
que nos vêm os corvos
como não falar no horror
que nos vem de todo lado
com este sangue que nos lembra
de que nós já fomos
de que nós já fomos
nunca a morte foi tão forte
nos cravou tão longa garra...
ah esses olhos que recordam
de que já não somos
de que já não somos
quem me dera fosse amor...
mas a morte nunca esteve
perto mais perto tão perto
e só quem sente é quem sabe
de que vêm os mortos
de que vêm os mortos
de que estamos mortos
de que estamos mortos
15 julho 2019
Eu não sou o que Digo
o meu verso nada tem a ver do que penso
por mais que seja o que penso o meu verso
a arte que por ele passa quando passa
vem de um outro todo que nem tenho
vento que se vaga não comigo
lago que se nada no não-dito
deixo que passe o que se passa por mim:
a quem importa aquilo que me sinto
e o que corre no sangue do que tenho?
de que vale o vale que me afundo?
o verso é vasto longo e fundo
vai muito além do que nem está em mim:
por que querer que ele fale de um eu?
por que querer que ele diga o que (nem) sou
por que o verso tem que ser o que é meu?
por mais que seja o que penso o meu verso
a arte que por ele passa quando passa
vem de um outro todo que nem tenho
vento que se vaga não comigo
lago que se nada no não-dito
deixo que passe o que se passa por mim:
a quem importa aquilo que me sinto
e o que corre no sangue do que tenho?
de que vale o vale que me afundo?
o verso é vasto longo e fundo
vai muito além do que nem está em mim:
por que querer que ele fale de um eu?
por que querer que ele diga o que (nem) sou
por que o verso tem que ser o que é meu?
13 julho 2019
A Próxima Guerra
a próxima guerra
dos homens sem água
será pela mágoa
sedenta
de um mundo morto sem trégua
por homens mortos à míngua
A Próxima Guerra
dos homens sem alma
será pela água
barrenta
e de sangue esgotado por terra
e da vida envolvida por fogos
A Próxima GUERRA
dos homens sem vida
será pela alma
num mundo afogado nas trevas
de um poço sem água sem fundo
A PRÓXIMA GUERRA
dos homens sem nada
não será mais por moedas
mas por um pedaço de pedra
de merda
dos homens sem água
será pela mágoa
sedenta
de um mundo morto sem trégua
por homens mortos à míngua
A Próxima Guerra
dos homens sem alma
será pela água
barrenta
e de sangue esgotado por terra
e da vida envolvida por fogos
A Próxima GUERRA
dos homens sem vida
será pela alma
num mundo afogado nas trevas
de um poço sem água sem fundo
A PRÓXIMA GUERRA
dos homens sem nada
não será mais por moedas
mas por um pedaço de pedra
de merda
10 julho 2019
A Propósito da "Reforma da Previdência": (Só)Trabalhe! *
quando eles dizem: "Trabalhe!"
eles querem dizer: "SÓ trabalhe!"
é a melhor forma de dominação:
quem só trabalha
não tem tempo para ler
não ... para ouvir
não ... para ver
não ... para pensar
não ... para sentir
não se inquieta
não questiona
não contempla
não tem tempo para a vida
quem não vive
não se importa com o que vive
não ... com o que sofre
não ... com o que morre
a era pós-humana
a era pós-tudo
quer só máquinas quer só robôs
porque eles SÓ trabalham
quando eles dizem: "Trabalhe!"
eles querem dizer "SÓ trabalhe!"
eles só não dizem só
porque não é só
isso
*Poema elaborado em junho de 2017.
eles querem dizer: "SÓ trabalhe!"
é a melhor forma de dominação:
quem só trabalha
não tem tempo para ler
não ... para ouvir
não ... para ver
não ... para pensar
não ... para sentir
não se inquieta
não questiona
não contempla
não tem tempo para a vida
quem não vive
não se importa com o que vive
não ... com o que sofre
não ... com o que morre
a era pós-humana
a era pós-tudo
quer só máquinas quer só robôs
porque eles SÓ trabalham
quando eles dizem: "Trabalhe!"
eles querem dizer "SÓ trabalhe!"
eles só não dizem só
porque não é só
isso
*Poema elaborado em junho de 2017.
07 julho 2019
Sentença
a cada árvore plantada
há mil derrubadas
tantas
quem nem deixam sinais
a cada água que é clara
há mil esgotadas
tantas
que nem se nota o horror
a cada animal que é amado
há mil massacrados
tantos
que nem se olha ao redor
a cada balada composta
há mil baladas na testa
sangue
que é tudo o que nos resta
a cada beijo que é dado
há mil beijos fingidos
e ainda mais outros mil
daqueles malditos
e tenho escrito
há mil derrubadas
tantas
quem nem deixam sinais
a cada água que é clara
há mil esgotadas
tantas
que nem se nota o horror
a cada animal que é amado
há mil massacrados
tantos
que nem se olha ao redor
a cada balada composta
há mil baladas na testa
sangue
que é tudo o que nos resta
a cada beijo que é dado
há mil beijos fingidos
e ainda mais outros mil
daqueles malditos
e tenho escrito
05 julho 2019
Mensagem da Ruína
finda teu rastro em ruína
enfia o rabo no reto
risca da face da terra
teu rosto-resto em ruína
homens de raça-ruína
reles que roem e rastejam
porcos que arrancam e arrastam
num riso de reza em ruína
roídos seres-ruína
na rua em ranhos e ratos
de ranço e raiva rodeados
roucos de caos e ruína
rompida em fome e ruína
se rega em rugas tua alma
as rãs arranham o teu réquiem
e rolam ao rol das ruínas
homem em rápida ruína
larga ao raio tua rosa
rasga essas roupas de rico:
junta-te à Nossa Ruína.
enfia o rabo no reto
risca da face da terra
teu rosto-resto em ruína
homens de raça-ruína
reles que roem e rastejam
porcos que arrancam e arrastam
num riso de reza em ruína
roídos seres-ruína
na rua em ranhos e ratos
de ranço e raiva rodeados
roucos de caos e ruína
rompida em fome e ruína
se rega em rugas tua alma
as rãs arranham o teu réquiem
e rolam ao rol das ruínas
homem em rápida ruína
larga ao raio tua rosa
rasga essas roupas de rico:
junta-te à Nossa Ruína.
03 julho 2019
Pós-Humano
as pessoas confundiram viver
com o que se faz para viver:
vive-se para um meio
e nunca se chega a nada
as pessoas confundiram vida
com o preço que se paga pela vida:
apenas se paga o preço
e não se vive
o objetivo da vida
tornou-se o cansaço para o descanso
para que se (al)canse de novo
o mesmo objetivo (al)cansado
a se (al)cansar
chama-se de vida
os pós que nos caem entre os dedos
para o vazio de (não) se viver
com o que se faz para viver:
vive-se para um meio
e nunca se chega a nada
as pessoas confundiram vida
com o preço que se paga pela vida:
apenas se paga o preço
e não se vive
o objetivo da vida
tornou-se o cansaço para o descanso
para que se (al)canse de novo
o mesmo objetivo (al)cansado
a se (al)cansar
chama-se de vida
os pós que nos caem entre os dedos
para o vazio de (não) se viver
01 julho 2019
Governo Eduardo Leite: seis meses de Sartori
Eduardo Leite, do PSDB, é o novo Sartori. Ou melhor, é um Sartori piorado, por ser mais hipócrita. Elegeu-se através do conceito subjetivo de "Oposição Consciente" ao governo Sartori, criticando, durante a campanha de 2018, principalmente, a política contra os serviços e servidores públicos exercida de forma impiedosa pelo governo PMDB durante seus quatro anos de desmonte do Estado e de venda do patrimônio público. Leite, na campanha, declarou: "Não é preciso parcelar salários. Dinheiro não falta. O que falta é um bom gerenciamento e reorganização do fluxo de caixa."
No entanto, uma vez eleito, o governador pelo PSBD, na prática, traiu seu discurso e os que nele votaram com a esperança de que a situação fosse alterada. Mantém exatamente a mesma política de Sartori: opressão e descaso com os servidores públicos, arrocho salarial, autoritarismo, sucateamento dos serviços oferecidos à população gaúcha, ausência de combate às regalias e à sonegação, renúncia fiscal, privatizações e entrega do patrimônio do Estado etc.
Na verdade, assim, como os quatro anos do governo Sartori, esses seis meses de Eduardo Leite não são propriamente um governo, mas um desgoverno de desconstrução e desmonte, no que se alinha ao desgoverno federal de Jair Bolsonaro. São seis meses de um oceano de nada, de confusão e desorientação, em que o preço é pago, principalmente, pelos servidores públicos e pela população em geral que não tem o devido retorno dos impostos que paga.
No caso específico da Educação, a situação é ainda mais grave. Além dos atrasos e parcelamentos salariais que atingem todo o funcionalismo público, e já entraram no seu 43º mês, o Magistério gaúcho sofre com uma ausência absoluta de reposição salarial desde o início do governo Sartori. Já são 4 anos e 6 meses sem reajuste. Não fosse isso o bastante, escolas sofrem por falta de verbas, professores contratados são demitidos durante licença-saúde, a lei do piso continua a não ser respeitada e não há nenhum tipo de diálogo ou negociação com os professores.
Dessa forma, a paralisação desta segunda, dia 1º de julho, é um sinal claro de que, para os professores estaduais, a situação está insustentável, e que se não houver algum tipo de sinalização por parte do governo Eduardo Leite de que de fato negociará, medidas mais drásticas deverão ser tomadas pelo Magistério do RS.
30 junho 2019
A Época da Ausência
I - a cada passo dado pela humanidade
morre um otimista
que não percebe o passo
e não sabe que morreu
II - acreditar (ainda)
nesta civilização
como sendo civilização
é algo menos de ingênuo
e mais de perverso
III - dizem que vivemos tempos de desespero.
discordo.
para o desespero é necessária a consciência
de que se perderam as esperanças.
essa consciência não a temos:
vivemos tempos de vazio
vivemos a época da ausência
morre um otimista
que não percebe o passo
e não sabe que morreu
II - acreditar (ainda)
nesta civilização
como sendo civilização
é algo menos de ingênuo
e mais de perverso
III - dizem que vivemos tempos de desespero.
discordo.
para o desespero é necessária a consciência
de que se perderam as esperanças.
essa consciência não a temos:
vivemos tempos de vazio
vivemos a época da ausência
28 junho 2019
Sangue em Minhas Mãos
olho para o mundo que me cerca
e me sinto mal
olho para as pessoas que me cercam
e me sinto pior
olho para a morte que se acerca
e não me sinto vivo
olho para a vida entre cercas
e nem me sinto
não posso me sentir satisfeito
enquanto bilhões nem comida
têm para sua satisfação
não posso me sentir realizado
enquanto meu planeta
e tudo que nele vive
é aos poucos massacrado
anquilado
destruído
não existe sucesso algum
em meio ao fracasso desta civilização
o que se chama felicidade
não passa de mesquinharia
quem se julga feliz
é só um egoísta
e me sinto mal
olho para as pessoas que me cercam
e me sinto pior
olho para a morte que se acerca
e não me sinto vivo
olho para a vida entre cercas
e nem me sinto
não posso me sentir satisfeito
enquanto bilhões nem comida
têm para sua satisfação
não posso me sentir realizado
enquanto meu planeta
e tudo que nele vive
é aos poucos massacrado
anquilado
destruído
não existe sucesso algum
em meio ao fracasso desta civilização
o que se chama felicidade
não passa de mesquinharia
quem se julga feliz
é só um egoísta
26 junho 2019
Ladrão com Honra
há o ladrão covarde
e o ladrão com honra:
o ladrão covarde
entra pra política
vira deputado
ou abre uma empresa
ou funda uma igreja
(ou tudo isso junto)
para poder roubar
com a lei do lado
veja bem:
eu não escrevi
que TODO político empresário pastor
quis sê-lo por ser ladrão
(é preciso que se diga
pois há quem entenda
tudo errado)
já o ladrão com honra
(sejamos francos)
assalta bancos
e o ladrão com honra:
o ladrão covarde
entra pra política
vira deputado
ou abre uma empresa
ou funda uma igreja
(ou tudo isso junto)
para poder roubar
com a lei do lado
veja bem:
eu não escrevi
que TODO político empresário pastor
quis sê-lo por ser ladrão
(é preciso que se diga
pois há quem entenda
tudo errado)
já o ladrão com honra
(sejamos francos)
assalta bancos
23 junho 2019
O Homem Correto
Abordaram-me durante uma manhã de sol. Disseram que eu estava indo para o trabalho pelo caminho errado. Garantiram-me que, para meu próprio bem, eu deveria seguir por outro caminho. Protestei que, para mim, o caminho que percorria naquele momento era perfeito, que eu sempre o fizera, e que não via por que outro seria melhor. Mostraram-me então o caminho que eu deveria percorrer. E não somente naquele dia, mas por todos os outros em que eu fosse trabalhar. Caso não fosse por ele, seria punido. O que era, segundo eles, perfeitamente justo, uma vez que era tudo para o meu próprio bem.
Convencido, passei, daquele dia em diante a ir trabalhar somente pelo caminho que me fora orientado. Não vi nenhuma vantagem em fazê-lo, creio que era até um pouco mais longo do que o que percorria anteriormente. Mas se eles estavam tão certos que era para o meu bem, como poderia contrariá-los? Sem contar que, se não o fizesse, seria punido. Não me esclareceram, no entanto, que tipo de punição eu sofreria.
Dias depois, estava almoçando em minha casa, quando ouvi batidas na porta. Atendi. Eram eles. Traziam-me algumas viandas com variados tipos de comida, conforme verifiquei instantes depois. Imaginei que as viandas fossem o seu almoço. Convidei-os para entrar e almoçar. Recusaram, declarando que aquela comida não era para eles, mas para mim. Naturalmente, eu deveria pagar pela comida. E o fiz. Acrescentaram que já haviam se encarregado de realizar a encomenda de meu almoço, e que o mesmo seria entregue sempre por volta do meio-dia no meu endereço por um menino escolhido por eles. Eu deveria pagar o almoço ao menino. Todos os dias. E comer, ao menos durante o almoço, somente o que havia nas viandas.
Eram alimentos cuidadosamente escolhidos para a minha mais perfeita saúde. Retruquei que não gostava de vários alimentos que ali estavam. Responderam que isso não fazia diferença, eu deveria comer e me habituar a eles. Era para o meu próprio bem. Caso me recusasse a me alimentar somente com os alimentos das viandas, seria severamente punido. Tive que aceitar.
Quando abri a última das viandas (eram 5 no total), não havia comida ali, mas uma folha de papel cuidadosamente dobrada. Abri-a e li o seguinte:
“Senhor Gilberto, aqui está uma lista dos livros, revistas, músicas e filmes. São os que você deverá ler, ouvir, assistir durante este mês. Não é necessário ler todos os livros, ouvir todas as músicas, assistir a todos os filmes. Porém, o que senhor desejar ler, ouvir ou assistir, deverá estar incluído nessa lista. Nem é preciso que escrevamos que é para o seu próprio bem. E crescimento individual. Tudo o que está na lista foi selecionado pensando-se exclusivamente em seu bem-estar. É igualmente desnecessário que escrevamos que a punição oriunda do descumprimento destas determinações será exemplar. No mês seguinte, junto com alguma das viandas, virá a lista para o mês em questão. E assim sucessivamente. ”
No mesmo dia, providenciei alguns dos filmes, livros e músicas. Eu não gostava de quase nada do que estava na lista. Porém, estava certo de que, com o tempo, aprenderia a gostar, e que o benefício a mim trazido pelas obras seria extremamente recompensador.
Por vezes, desejava encontrá-los na rua para que eu pudesse agradecê-los por tamanha bondade e consideração por alguém tão insignificante quanto eu. Eu, que trabalho em uma indústria de móveis da manhã à noite e que recebo um salário não mais que razoável. Realmente, eu jamais teria tempo para pensar em todas essas coisas que eles têm pensado por mim. Tenho me sentido bem mais tranquilo. Fico imaginando o que devo ter feito de tão meritoso para receber a preocupação e dedicação deles. E chego à conclusão de que não fiz nada. Aliás, nada faço além de trabalhar e voltar para casa. Nos fins de semana, bebo, melhor dizendo, bebia, uma cervejinha com os amigos.
Digo que bebia, porque não o posso mais fazer. Para meu próprio bem. Há alguns dias, acordei com um telefonema às 3h da madrugada. Eram eles. Rapidamente, pois não podiam desperdiçar seu tempo, disseram-me que eu não deveria mais beber nenhuma bebida alcoólica. Eram nocivas, fosse para a minha saúde física, fosse para a psíquica. Nunca, jamais, eu deveria voltar a ingerir um gole sequer de álcool.
Também não deveria sair mais com meus amigos. No fundo, não eram meus amigos, eles sabiam. E eu deveria sentir-me grato por eles estarem agora me alertando, antes que fosse tarde demais. Antes que eu me perdesse e me transformasse em um ser inútil, absolutamente improdutivo para a sociedade. Exclamei que sim, que minha gratidão era infinita, e lembro que chorei ao telefone as mais sinceras lágrimas.
Então se despediram, muito polidamente, lembrando-me das severas punições em caso de desobediência e acrescentando que no dia seguinte eu receberia algo muito importante. Seria um manual, uma cartilha de como encontrar bons amigos. No final da cartilha, haveria uma breve lista com nomes, telefones e endereços de pessoas que seguramente seriam ótimos amigos para mim. Eu deveria procurá-los o mais rápido possível. Poucas vezes senti-me tão feliz em minha vida.
Certo dia, estava eu em um shopping, experimentando roupas em um provador de uma loja. Enquanto vestia a camiseta que provavelmente levaria, escuto um som de respiração, como se alguém estivesse muito próximo a mim. No meu lado esquerdo havia uma cortina. Parecia ser detrás dela que o som provinha. Abri-a. E ali estavam eles. Logo, declararam que estavam me observando, através de um pequeno orifício na cortina, enquanto eu experimentava as novas roupas. E, com um ar de profunda gravidade e decepção, que me estremeceu, disseram-me que não gostaram nem um pouco das roupas que eu estava pretendendo comprar. Eu não estava os agradando dessa forma. As roupas não combinavam comigo, garantiram, não podiam combinar. Elas não me deixariam melhor como pessoa. Eram de muito mau gosto.
Exclamei, bastante envergonhado, que, fosse como fosse, era o meu gosto pessoal. Eles não quiseram saber. De súbito, retiraram de seus paletós várias sacolas, cada uma com uma peça de roupa diferente. Disseram-me que, a partir daquele dia, para o meu próprio bem e crescimento individual, deveria usar aquelas roupas. E sempre que eu fosse comprar vestimentas novas, deveriam ser naquele estilo e com aquelas cores. Qualquer dúvida, deveria consultar um manual, uma cartilha de bem vestir-se que eles deixariam com a gerente da loja. Em caso de desobediência... eu já sabia. Claro que as roupas que eles me deram não eram de graça. Paguei por elas.
Levei-as comigo e experimentei-as somente em casa. De início, foi um choque. Senti-me verdadeiramente ridículo. Aquelas roupas não tinham nada a ver comigo. Porém, mantive firme minha força de vontade e segui as usando. Fui trabalhar com elas. Percebi que todos me olhavam na rua com sorrisinhos mal disfarçados e troçavam de como eu estava me vestindo. Mantive-me altivo e não dei atenção. Idiotas, pensei, que não sabem de nada. Se eles me garantiram, é porque assim eu estou bem melhor. De modo que os dias se passaram, segui usando aquelas roupas, adquirindo outras que não fugissem àquele estilo, e, ao fim das contas, nunca me senti tão bem vestido.
As semanas, os meses, os anos foram seguindo seu curso, e, de tempos, em tempos, eu os encontrava na rua, ou em algum local público, ou em meu trabalho, ou eles vinham até minha casa, com o nobre intuito de me transmitir mais instruções de como eu deveria viver, a melhor forma de se viver. E eles aproveitavam tais ocasiões para me inquirir. Desejavam saber se eu estava cumprindo com todas as determinações que me foram outorgadas. Garanti que sim, simplesmente porque era verdade. E mesmo que eu quisesse mentir, seria uma catástrofe, porque eles sempre sabiam de tudo. E então, com a mentira, a punição seria triplicada.
Questionavam-me apenas para verificar o meu nível de sinceridade. É óbvio que jamais os decepcionei, nunca deixei de agradá-los, sempre agi e me comportei de acordo com o que esperavam de mim, esforçava-me, em suprema abnegação, em mantê-los plenamente satisfeitos. Afinal, eles estavam sempre certos, a razão estava sempre com eles, suas opiniões eram as mais corretas, seus gostos, os mais perfeitos, suas ideias, as mais brilhantes. É assim, que posso fazer?
As últimas instruções que recebi referiam-se a uma lista das mulheres que eu poderia namorar e, posteriormente, casar-me. Não era uma lista longa, havia ali apenas cinco mulheres. Também não eram muito bonitas. No entanto, em hipótese alguma eu poderia escolher para namorar alguma mulher que não estivesse na lista. A punição seria impiedosa. Como deve ser, para que nos mantenhamos na linha. Ainda estou escolhendo qual delas será. Uma vez escolhida, não posso mais trocar. E a moça deve me aceitar em namoro. Ela não tem escolha. E é melhor realmente que não tenha, daria muita confusão. São as leis, justíssimas, para o nosso próprio bem.
É claro que desde que os conheci, minha vida tem se tornado difícil. Mas eu não reclamo, eu não protesto, jamais me rebelo, nunca questiono. Por que o faria? Sei que tudo o que eles fazem, os sacrifícios por mim e por tantos outros, todas as suas instruções, regras, ordens e disciplinas constituem um esforço tenaz em me tornar um exemplo de cidadão, um bom homem em todos os sentidos, cumpridor de seus deveres, um indivíduo correto, que conhece o seu lugar e as suas responsabilidades, que vive sua vida dentro da lei e da ordem estabelecidas e que, apesar de todos os percalços, é um homem satisfeito e bem sucedido.
Lembro que certa vez um antigo amigo, que, graças, nunca mais o vi, perguntou-me: “Mas como assim, eles decidem tudo por ti e tu achas bom?” Eu, sereno, limitei-me a responder: “É claro, por que não acharia, se assim sou feliz?”
20 junho 2019
Corpus Christi
18 junho 2019
De Pessoas e de Animais Selvagens
I - as pessoas dizem saber que tudo passa
as pessoas dizem entender que tudo passa
as pessoas dizem aceitar que tudo passa
as pessoas repetem como robôs que tudo passa
mas se tudo passa
também passa a humanidade
mas isso as pessoas não aceitam:
elas não entendem que se as pessoas morrem
aquilo que elas formam morrerá também
(se tudo que passa também volta
aí já é outro poema)
II - as pessoas que respeito
são as pessoas que respeitam
o que elas não são
aquilo que está o mais longe delas
aquilo que é melhor que elas
aquilo talvez que nem exista
ou que deixará de existir
só respeito pessoas
(por exemplo)
que respeitam animais selvagens
as pessoas dizem entender que tudo passa
as pessoas dizem aceitar que tudo passa
as pessoas repetem como robôs que tudo passa
mas se tudo passa
também passa a humanidade
mas isso as pessoas não aceitam:
elas não entendem que se as pessoas morrem
aquilo que elas formam morrerá também
(se tudo que passa também volta
aí já é outro poema)
II - as pessoas que respeito
são as pessoas que respeitam
o que elas não são
aquilo que está o mais longe delas
aquilo que é melhor que elas
aquilo talvez que nem exista
ou que deixará de existir
só respeito pessoas
(por exemplo)
que respeitam animais selvagens
16 junho 2019
Árvore é Passado
o que é árvore vai passando
porque vem passando o que é progresso.
abram alas
que o progresso quer passar
por cima de tudo
até não restar nada.
o progresso não tem sentido.
a humanidade perdeu o sentido.
o homem atrofiou seus sentidos
de encontrar sentido
de fazer sentido
de ser sentido.
agora, qual sentido seguir?
a árvore passa
no sentido de que passou seu tempo
o progresso passa
no sentido de que dá passos
num passo a passo ao abismo
com o qual em breve
esta humanidade também
será passado.
porque vem passando o que é progresso.
abram alas
que o progresso quer passar
por cima de tudo
até não restar nada.
o progresso não tem sentido.
a humanidade perdeu o sentido.
o homem atrofiou seus sentidos
de encontrar sentido
de fazer sentido
de ser sentido.
agora, qual sentido seguir?
a árvore passa
no sentido de que passou seu tempo
o progresso passa
no sentido de que dá passos
num passo a passo ao abismo
com o qual em breve
esta humanidade também
será passado.
13 junho 2019
Bêbado
ninguém é o que são:
eu mesmo sou tantos eus
que não sou ninguém.
o que somos
somos de não-ser
ninguém aqui é são:
somos todos doentes
há mais vírus na alma
do que bactérias nos dentes
ninguém é o que seja:
não somos nem o que se deseja
só doentes
se julgam sãos.
todo mundo se acha
um épico
mas mais é si mesmo
um bêbado
eu mesmo sou tantos eus
que não sou ninguém.
o que somos
somos de não-ser
ninguém aqui é são:
somos todos doentes
há mais vírus na alma
do que bactérias nos dentes
ninguém é o que seja:
não somos nem o que se deseja
só doentes
se julgam sãos.
todo mundo se acha
um épico
mas mais é si mesmo
um bêbado
11 junho 2019
Homens de Bem
tantos que se julgam homens
mas não passam de bananas
daquelas do mesmo cacho
tantos que se julgam rochas
mas não passam de farinhas
daquelas do mesmo saco
tantos que se julgam mantos
mas não passam de tapetes
daqueles tipo capacho
tantos que se julgam altos
mas não passam de curvados
a lamber botas e sapatos
tantos que se levam a sério
mas não passam de balela
e de piada e esculacho
tantos que desejam aplausos...
e merecem mesmo palmas
como palhaços
mas não passam de bananas
daquelas do mesmo cacho
tantos que se julgam rochas
mas não passam de farinhas
daquelas do mesmo saco
tantos que se julgam mantos
mas não passam de tapetes
daqueles tipo capacho
tantos que se julgam altos
mas não passam de curvados
a lamber botas e sapatos
tantos que se levam a sério
mas não passam de balela
e de piada e esculacho
tantos que desejam aplausos...
e merecem mesmo palmas
como palhaços
09 junho 2019
Vidas-Relógio
quantas vidas-relógio tu tens?
acordar na hora
dormir na hora
chegar na hora
comer dentro da hora
passear dentro da hora
cagar dentro da hora
terminar
antes que o prazo acabe
comprar
antes que o mercado feche
no banco
antes que as 3 horas bata
pagar
antes que a conta vença
...
uau, conseguiste!
e morreste.
acordar na hora
dormir na hora
chegar na hora
comer dentro da hora
passear dentro da hora
cagar dentro da hora
terminar
antes que o prazo acabe
comprar
antes que o mercado feche
no banco
antes que as 3 horas bata
pagar
antes que a conta vença
...
uau, conseguiste!
e morreste.
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