30 setembro 2012

A Pós-Moderna História de Chapeuzinho Vermelho (de Sangue)


A bela Chapeuzinho verde-limão, contrariada e com muita má-vontade, levava em uma pequena sacola os remédios para sua avó, conforme ordenara sua mãe. Eram medicamentos contra a hipertensão e a diabete, adquiridos gratuitamente em uma farmácia popular. Os tempos mudaram. O mundo está melhor.  

Chapeuzinho detestava ir à casa de sua avó, porque ela deveria seguir uma trilha por entre a mata, e a natureza causava respulsa à bela menina, de pele tão branquinha. Reclamava dos mosquitos, tinha medo das cobras nojentas, repugnava-lhe ter que atravessar a pontezinha sobre o riacho, pois receava que ela pudesse cair, já que era muito velha. A ponte, não a menina. E cairia naquela água suja, imunda, pois há muito o riacho não era mais virgem. Volta e meia, poderiam ser observadas algumas fezes flutuando naquelas águas plácidas.

            O canto dos pássaros não a comovia, antes, a irritava. E a beleza das árvores? Na cidade ela até gostava, mas no meio do mato não tinha graça nenhuma, todas aquelas árvores ali amontoadas, quase todas iguais.  Era uma menina urbana e moderna, preferia passear nos shoppings e contemplar as vitrines das lojas, como toda boa consumidora que adorava andar sempre muito bem arrumadinha. De modo que somente visitava sua avó quando era obrigada por sua mãe. Nesses momentos maldizia aquela velha rabugenta que fedia a fumaça de fogão. E maldizia sua mãe também, aquela mulher antiquada e autoritária.

            Porém, logo ao tomar a trilha que levava à casa de sua avó, Chapeuzinho foi surpreendida ao perceber que grande parte da mata havia sido cortada e queimada. A ausência da vegetação, no entanto, não a incomodava em absoluto, era até melhor, porque assim ela poderia pegar um pouco de sol, “andava muito branca”, diziam suas amigas.  Só o que lhe perturbava era o cheiro de fumaça do mato queimado, que a deixava ainda mais irritada. Caminhando pela trilha, Chapeuzinho chutou o casco seco de um tatu que fora tostado. “Bicho sujo! Que nojo!”, exclamou pra si mesmo. Logo adiante, viu o corpo de uma capivara que havia sido abatida a tiros. Chapeuzinho sorriu ironicamente. É que uma de suas amigas gordinhas tinha o apelido de “Capivara”. “Mas que bicho mais feio essa tal de capivara.”

            Chapeuzinho estranhou não ouvir tantos cantos de aves como das outras vezes. Melhor assim, pensou. Já estava muito mau-humorada mesmo, e o silêncio seria melhor, ou até cantarolar algum sertanejo universitário ou pagode. Caminhando um pouco mais, a menina avistou o cadáver de um cachorro-do-mato. Estava queimado. Nesse instante, Chapeuzinho lembrou-se das histórias de sua avó, quando contava sobre o lobo-guará, belo e antigo animal que nunca mais fora visto nas imediações. Apesar de sua avó insistir que o lobo-guará era um animal dócil e inofensivo, Chapeuzinho não acreditava. A velha devia estar caduca, ou na sua insistente e irritante mania de defender a natureza, exagerou nas qualidades do lobo. Para Chapeuzinho, lobo era lobo. E lobo era sempre mau. Não merecia viver. Deu graças pelo animal não existir mais por aquelas bandas. Imaginem se ela cruzasse com um lobo-guará pelo caminho! O animal estúpido poderia agredi-la e até matá-la.

            Finalmente, atravessando a floresta em grande parte queimada e devastada, Chapeuzinho chegou à casa de sua avó, que vivia sozinha. Como batera várias vezes à porta, e sua avó não atendia, resolveu entrar. Encontrou-a deitada inerte sobre a cama. Chapeuzinho tentou reanimá-la. Foi inútil. Sua avó estava gelada, não respirava, devia estar morta. Chapeuzinho entrou em pânico. Não gostava muito de sua avó, não ficou realmente sensibilizada ao verificar sua provável morte, porém, o problema é que ela não sabia o que fazer estando sozinha diante de uma pessoa sem vida. Olhou pela porta e não avistou ninguém pelas redondezas. Da porta mesmo, gritou por socorro algumas vezes. Um caçador, que passava pelas imediações carregando um saco de tatus e perdizes, ouviu os gritos da menina e dirigiu-se até a casa.

            Chapeuzinho sentiu-se aliviada com a chegada do caçador, e pediu que ele fizesse algo para ajudá-la com a avó. O caçador disse que nada faria, pois a velha já estava morta. Provavelmente, fora o coração. E, por outro lado até seria bom. Afinal, a avó de Chapeuzinho não passava de uma velha chata, rabugenta, caduca, que com suas manias ecológicas vivia tentando impedir que os caçadores entrassem em suas matas. Felizmente, aquela velha imbecil estava agora morta, e ele e seus amigos poderiam caçar à vontade e extrair a madeira de suas terras. Não que já não o fizessem há algum tempo de forma clandestina. Porém, agora teriam mais liberdade e menos estresse para fazê-lo. O que seria muito justo.  Aquelas terras deveriam ser úteis para alguma coisa além de servir de abrigo para sapos e macacos barulhentos.

            Chapeuzinho então, vendo que seria inútil pedir auxílio ao caçador, decidiu voltar para sua casa e comunicar à mãe sobre o ocorrido. No entanto, o caçador a impediu, puxando-a pelo braço e falando em seu ouvido:

- Que é isso, mocinha gostosa, fica mais um pouco. Vamos aproveitar que estamos sozinhos aqui... Com essas roupinhas aí e com essa carinha de safada, tu tá pedindo pra levar, hein.

            Chapeuzinho tentou resistir, empurrando o caçador, mas ele era, obviamente, muito mais forte e conseguiu subjugá-la, derrubando-a no chão. E arrancou suas roupas com fúria e sofreguidão, esbofeteando seu rosto delicado para que ela parasse de gritar. Baixou as calças e, segurando o pênis, exclamou estupidamente:

            - Olha como é grande! Isso é pra te comer melhor, hahaha!

            E penetrou brutalmente a coitada Chapeuzinho. A violência do caçador durante o estupro causava na menina fundos cortes que sangravam copiosamente. A menina, não suportando a dor, esperneava incessantemente, até que em um momento logrou acertar com força seu joelho nos testículos do caçador. Este se enfureceu ainda mais, “Onde se viu uma putinha dessas dando coices nos meus ovos!”, gritou. Indignado, agarrou a cabeça de Chapeuzinho e a bateu violentamente contra o chão por várias vezes, até que ouviu o barulho de seu crânio rachando e sentiu alguns respingos de sangue em seu rosto vermelho de ódio e de monstruoso apetite sexual.

            E, no corpo já sem vida de Chapeuzinho, o caçador prosseguiu o estupro, prosseguiu até dilacerar o órgão sexual da menina, até deixá-lo em carne viva e expor as suas entranhas. Em seguida, apanhou sua espingarda e o saco com tatus e perdizes que largara em um canto, e fugiu pelo que restava da mata, abandonando o cadáver ensanguentado de Chapeuzinho. Agora sim, vermelho.

            Quando saía da floresta e aproximava-se do riacho, o caçador assustou-se com a revoada de um enorme e agourento urubu inteiramente negro que estava pousado sobre uma rocha à beira d’água. Com o susto, o caçador escorregou nas pedras lisas e úmidas, bateu brutalmente a cabeça na rocha e estirou-se fulminado sobre as pedras. Seu crânio abriu-se com a violência do choque, e pedaços sanguinolentos de sua massa encefálica podiam ser vistos à beira do riacho, em uma poça de sangue.

            Dias depois, seu corpo foi encontrado pela polícia. Os policiais tiveram trabalho para afugentar o bando de urubus que fazia um banquete arrancando seus intestinos. Um dos policiais poderia jurar que os murmúrios lúgubres dos urubus quando afugentados assemelhavam-se muito a risadas...

Moral da história: a justiça tarda, mas o urubu não falha.

28 setembro 2012

Permita-me...*


permita-me
que eu me apresente
pois quando eu venho
já é tarde demais...

a minha face
não se revela no antes
mas não que eu não esteja
entre o todos
estou
como sendo um filho
criado em oculto
que nem se conhece
e nem se sabe que se cria

sou o filho de quem me negam
e quando ainda não sou conhecido
levo a face incógnita
que se parece amor
como se eu fosse um outro
daquilo que é o ser em mim

estão todos certos
de que eu nunca serei
que me sou impossível
e que minha vinda
é o próprio absurdo
filho bastardo
que julgam abortado

a princípio
enquanto cresço
eu nem existo
mas quando venho
(e eu sempre venho)
curvam-se à minha face

o meu nome?
O Horror

* Poema inspirado em O Coração das Trevas, de Joseph Conrad

26 setembro 2012

Coisas...


ali onde olhos
canto de noite
e um  outro
canto de atrás
de um outro
olho de noite
de outro ausente
invisível de paz

sensação
do que não é
e se acima
cinza de névoa
longe vapor
de café e mágoa
vista vaziada
que se veste de nada
mar sem algo
nem alga
ausência de oceano
onde me estranho
em que não haja
o que não alma
e nem se alta
algum desígnio
propenso ou denso
e nem saudade
e nem se importa
se se enfurece
ou se acalma

um lugar ali
onde olhos
que não está
nem no cá
nem que vi

25 setembro 2012

Obrigado, Shostakovich


Em 25 de setembro de 1906, nascia, em São Petersburgo, Rússia, o genial compositor Dmitri Shostakovich (1906-1975). O texto a seguir não conta a história de Shostakovich, não trata de sua vida, não é uma análise, não é uma dissertação. É um agradecimento em forma de uma humilde homenagem a um dos meus compositores favoritos. Portanto, é um texto altamente subjetivo, é uma forma de expressar a minha visão da obra daquele que considero como o maior compositor nascido no século XX.

Obrigado, Shostakovich, por mostrar ao homem do século XX o que o homem do século XX era. E ainda é. Porque o agora é o fruto do século XX. Obrigado por colocar a humanidade em seu devido lugar. Obrigado por não sonhar, mas ter pesadelos. Por dizer à tua época, à nossa época, a todas as épocas aquilo que cada uma das épocas não gostaria de ouvir. Obrigado pela verdade quase palpável da tua música. Pela expressão do teu mundo que indicou o caminho que a humanidade seguiria nos anos presentes e subsequentes.  

Obrigado, Shostakovich, por não ter piedade ou sentimentalismos. Obrigado, por desnudar o ser humano sem misericórdia, por retirar o ranço de todas as suas máscaras, das suas falsidades, hipocrisias e mentiras. Obrigado por devastar nossos ouvidos com a imensidão da miséria humana. E por debochar, ridicularizar, fazer escárnio, escracho de toda a vergonha desses ideais falhos que ainda insistem em apregoar que nos levarão a algum lugar, que atingirão algum substancial objetivo. Obrigado pela força apocalíptica do teu pessimismo. Pelo teu cuspe na cara do homem. Do homem da riqueza e da empresa. Do homem da guerra e da política. Do homem do nada e da desgraça.

Obrigado, Shostakovich, pela gravidade tensa e ao mesmo tempo sarcástica da forma como nos revelaste. Obrigado pelo teu pesar rítmico sem freios e sem meio-termos. Pela tua obsessão nervosa em expressar o caos e a loucura, a desesperança e a fatalidade. Aquilo que persistem em negar. Em esconder. Em esquecer. Obrigado pela coragem da tua obra. Pela fúria dos teus compassos.  Pela sombra das tuas notas densas. Pelo áspero tom de nunca que atravessa as ondas do teu tempestuoso mar.

Obrigado, Shostakovich, pelo teu mistério. Pela névoa aflita das tuas florestas noturnas. Pela morte que paira em cada canto das tuas funerárias partituras que nunca cedem. Pelo agouro de entre céus nublados. Pelo desconhecido que falou através de ti. Talvez sem mesmo tu conheceres. Pelo grito insano entre risos e ânsias que preenche a treva dos tempos. Obrigado pela tua angústia frente à existência.

E obrigado por venceres. Por te ergueres assustador e invencível diante do vazio humano. E, obrigado, com tua sombria vitória, por teres desvendado nossa essência. E o nosso ego. Eu te agradeço, amigo, pela companhia, pela catarse, pela compreensão. Obrigado, Shostakovich.

23 setembro 2012

Não Disse


entre um
sim
e um
som
silêncio
segredo
entre um
nada
e a calma
nada
se abala
nem nunca
que passa
entre
um sol
e sonata
o sempre
se alaga
e um verso
vazio
de nada
de adaga
ao longe
ao largo
ao vago
se sangra
em adágio
de água
que pedra
nenhuma
perturba
ou afaga
nem nada
(a)tinge
no lago
sereno
de selva
tranquilo
de sopro
distante
que nada
infringe
se sábio
se silvo
serpente
se sonho
se esquece
se fogo
se ascende
e ao fim
eu não disse
nem algo
nem vale
nem nada

21 setembro 2012

Dia da Árvore. Motivos para Comemorar.

Hoje é o Dia da Árvore. O que poderíamos comemorar?...

Bem, podemos comemorar o que disse Maria Helena Bassan Benedetti, agrônoma da Secretaria do Meio Ambiente (SEMA-RS):

"Nunca na história desse estado, assistiu-se a tamanha devastação das nossas matas (as que sobraram, pois temos menos de 10% do que havia!) como nesses últimos meses. A situação parece uma avalanche... Sem controle e crescente a cada dia.


Grande parte da destruição é respaldada por licenciamentos irregulares, principalmente neste período eleitoral.

O mais grave disso tudo é a perda de água que essa
s atitudes provocam, por redução da área de infiltração e por escoamento superficial. O resultado disso tudo nós sabemos, porém, a maioria teima em ignorar que a água é um elemento vital e indispensável não só a vida, mas para o desenvolvimento das atividades produtivas.
A produção agrícola está a necessitar de maior volume de água... A população aumentando... Quando iremos acordar?"


O que mais podemos comemorar? Ah, as secas recordes em todo o planeta neste ano de 2012, desde aqui, Rio Grande do Sul, passando pelo centro do país, chegando ao México,  EUA e Canadá. Milhões e milhões de árvores que viraram fumaça. Na Europa, países como Portugal, Espanha, Inglaterra, Grécia viram o pouco que resta de suas matas sendo consumido por queimadas incontroláveis.

Também podemos comemorar o avanço sem controle da desertificação na África Subsaariana, na Índia, na Rússia e na China. Podemos comemorar a devastação causada pela mineração nas florestas equatoriais e tropicais da África Central. E também o aniquilamento das florestas da Indonésia para se plantar dendê, usado, entre outras coisas, em chocolates. 

Também é digno de comemorarmos a construção sem freios de hidrelétricas ao redor do mundo, principalmente aqui no Brasil, inundando quilômetros e quilômetros de florestas virgens. E por aí vai, bah, há muito o que se comemorar no dia de hoje.

E o nosso Novo Código Florestal, hein? Maravilha! Comemoremos!

E não penses, amigo, que plantando uma árvore vais realmente contribuir com o que verdadeiramente importa para as árvores, para os animais e para os seres humanos. Plantar uma árvore no quintal, no terreno, na frente da casa, fazer um matinho de eucalipto no meio do campo vai salvar o quê? Mesmo que todos plantemos, de nada adianta. Bem, é melhor do que não plantar nada. Mas o que importa mesmo são as florestas originais, as vegetações nativas. Uma floresta não é um amontoado estúpido de árvores, é todo um ecossistema incrivelmente equilibrado, com leis próprias, únicas, que não podem ser quebradas, nem pelas plantas, nem pelos animais, muito menos pelos seres humanos. Uma vez desfeito o equilíbrio, o reflorestamento artificial de muito pouco contribui para se retornar ao que era, mesmo que seja com árvores nativas. Os animais não mais estarão ali. Os cursos de água já terão sido irremediavelmente alterados. Matas de reflorestamento quase sempre se tornam desertos verdes. Florestas sem vida.

Reflorestar é, no fundo, inútil, em termos de vida planetária e biodiversidade. Devemos é preservar as vegetações restantes de qualquer forma, a qualquer custo. Mas não é o que pensam os governos ao redor do planeta. Desde Santiago até a Indochina. Comemoremos.


19 setembro 2012

Manifesto Inflexível


eu não concedo
não sou
de concessões
não suavizo
não volto atrás

eu não agrado
não dou o braço
não busco a paz
não mais
não me retrato
não retrocedo
(se um dia eu fiz
eu me arrependo)

não dou ouvidos
radicalizo
definitivo
e sem sorrisos
eu ironizo

eu não perdoo
não alivio
não temporizo
não acredito

faço miséria
e mau poema...

nem sinto pena

18 setembro 2012

O que é se importar?


o que é se importar?
é se achar importante?
ou talvez se vir
de algum lugar que não
para outro lugar que sim?
se importar
é comprar de fora
a si próprio?

ou será
que se importar
é deixar de portar
o que nunca se teve?

ou talvez
seja abrir
portas ao contrário...
ou deixar de abrir
as portas
que nunca se viu?

afinal
o que é se importar?

sei lá...
eu não me importo.

17 setembro 2012

Poemerda à Civilização


dente
cariado
dentre
caído
quedado
por dentro

destecla
de piano
de
cadência
de marcha
de fúnebre

de década
em década
de cágono
desmontado
a com passo
de cágado

peito
desfeido
de peido

engasgo
gago
caco
caralho

falo falhado
de falácia
de falência

a humanaidade...
farelo
e decadência.

14 setembro 2012

O que ouve?


silêncio
no que há em torno
do que me vou tornando

observa
(silente)
há um som oculto
em tudo
que  não se revela..
(a chama que queima
surge do o quê da vela?)

aquilo que desejo
deseja em mim de qual onde?
por que desejo um algo
e não outro
que se esconde?
e o que não desejo
por que silencia?

o que é então que calava
pelo entre
da tua voz que sorria?...

o que forma tornados em torno?
o que houve naquilo que ouve?
qual o distante
do que se é longe?

há algo mais
ou de menos?
verbo que verba somente sinais
que algo que há na tua voz
para um vós
que não me escutais?...

13 setembro 2012

Europa: outro imenso passo atrás*

O texto aqui postado foi retirado do jornal Sul21(aqui). Excelente jornal digital de Porto Alegre, de altíssimo nível e confiabilidade, bem diferente de alguns que conheço. A qualidade do jornal é tão alta que publicou o meu texto abaixo sobre Brahms e Goethe. Brincadeiras à parte, o texto de Antonio Martins aqui postado chamou-me um tanto a atenção porque já há um bom  tempo venho afirmando aqui no blog que a Europa vem passando por um período de ostensível decadência, tanto no aspecto sócio-econômico quanto no cultural. Algo, no mínimo, preocupante, pois todos sabemos que os países europeus servem de modelo para a quase totalidade do mundo ocidental. As últimas grandes crises e momentos de decadência europeias resultaram na 1ª e na 2ª Guerras Mundiais. O texto a seguir corrobora e amplia minhas afirmações. Vamos a ele:


"As hipóteses de pensadores como Manuel Castells e Ignacio Ramonet, que enxergam recrudescimento da luta de classes na Europa e riscos de retrocesso social profundo, ganharam nova força nos últimos dias. Na terça-feira (4/9), o jornal londrino The Guardian vazou o conteúdo de uma carta-ultimato radical, dirigida pela chamada troika(União Europeia, Banco Central Europeu e FMI) ao governo grego. Enviado às vésperas da viagem de uma “comissão de inspetores” a Atenas, e redigida na forma de um elenco seco de exigências, o documento concentra-se nas relações de trabalho.

Requer mudanças profundas – e inimagináveis, há apenas alguns meses – nas leis que protegem os direitos laborais. Além de livrar as grandes empresas de boa parte das leis trabalhistas, concede-lhes ampla redução de impostos, o que debilitaria ainda mais os serviços públicos. Não se trata, porém, de algo limitado à Grécia. Nesta quinta-feira (6/9), ao anunciar novas ações para evitar um colapso financeiro do euro, o presidente do Banco Central Europeu (BCE), Mário Draghi, comunicou que a instituição poderá submeter outros países em dificuldades a semelhantes “medidas de estrita e efetiva condicionalidade”.

A vastidão das propostas exigidas de Atenas levou o site World Socialist a enxergá-las como  ”um retrocesso às condições de trabalho que vigoravam nos países capitalistas durante o século 19″. Não parece haver exagero na imagem. A troika exige explicitamente, por exemplo, o fim da  jornada de 40 horas – que inspirou a maior parte das lutas sociais a partir de 1860 e foi gradualmente conquistada na virada para o século 20. A carta é clara: cobra “flexibilidade ampliada dos horários de trabalho” e especifica: em particular “aumento do número máximo de dias de trabalho, para seis por semana, em todos os setores”.

Estender a jornada laboral, num país onde toda a economia está deprimida, estimulará os empresários a produzir o mesmo com menos empregados. Sintomaticamente, o ultimato também exige que sejam reduzidos em 50% os prazos de aviso prévio e custos indenizatórios das demissões. Mas vai adiante. Pede nova compressão do valor nominal do salário mínimo – já achatado em 21% este ano. Chega ao detalhes: reivindica alterar as leis gregas que estabelecem intervalo mínimo entre as jornadas de trabalho. “A ideia é que os empregadores possam convocar os assalariados a qualquer momento, acabando com a estabilidade dos horários de trabalho”, afirma Panagiotis Sotiris, professor da Universidade do Egeu.

Nem as férias serão preservadas, se as pressões da troika forem aceitas. A carta a Atenas propõe autorizar os empregadores a fatiar o período contínuo de descanso remunerado em dias esparsos, concedidos ao longo do ano. Para os patrões, cômodo e barato – porque permite dispensar os assalariados em períodos de baixa atividade, por exemplo. Para os trabalhadores, equivale à obrigação de permanecer disponíveis, em todas as época do ano, às tarefas definidas pela empresa.

Muitas das exigências contrariam leis e normas gregas – e talvez fosse difícil propor ao Parlamento uma bateria de decisões impopulares. Por isso, a troika tem uma reivindicação de caráter genérico porém devastador, inclusive por humilhar a soberania nacional. Quer desmantelar o sistema atual de fiscalização do trabalho, retirando completamente sua autonomia e colocando-o sob supervisão direta da União Europeia. Ainda que muitas das leis que impedem a super-exploração dos assalariados sejam mantidas, terão pouca eficácia prática. Os funcionários encarregados de garantir seu cumprimento serão comandados por burocratas comprometidos com o sentido geral das novas ordens.

Na mesma carta em que incentiva o ataque generalizado aos direitos dos trabalhadores, a troika reivindica redução das contribuições das empresas aos sistemas de Saúde e Previdência, além de isentá-las de outros impostos. Segundo The Guardian, o ultimato estabelece prazo curto para as decisões. A União Europeia estaria insatisfeita com a “paralisia” do novo governo conservador grego, eleito em maio e até agora incapaz de impor os cortes de direitos sociais e serviços públicos que lhe foram exigidos.

Agora, as cartas estão na mesa, segundo o jornal britânico. Ou Atenas executa as exigências do ultimato, ou não receberá a segunda parcela (14,6 bilhões de euros) de um “resgate” indispensável para manter até mesmo as despesas essenciais do Estado – como o pagamento dos servidores públicos e dos aposentados. A alternativa seria emitir moeda própria e deixar o euro – com consequências ainda imprevisíveis, tanto para a Grécia quanto para a moeda comum.

Ao que tudo indica, porém, Atenas pode ser apenas a primeira vítima de uma nova fase do ataque aos direitos sociais na Europa: a partir de agora, ainda mais intenso e coordenado que ao longo dos últimos três anos. Na quinta-feira (6/9), após uma bateria de encontros com governantes europeus (em especial com a chanceler alemã, Angela Merkel), o presidente do BCE anunciou finalmente que o banco passará a comprar títulos públicos de países em dificuldades de rolar suas dívidas nos mercados.

A ação do BCE era esperada há muito, por todos. Por meio dela, países que foram obrigados a elevar em muito as taxas de juros oferecidas aos credores (como Espanha e Itália) poderão ter, a partir de agora, certo alívio. Mas Mário Draghi estipulou, também, algo inesperado. As intervenções do banco não serão automáticas, como ocorre com os bancos centrais de todos os países. Para iniciá-las, o BCE exigirá dos governos em dificuldades que peçam formalmente apoio. Ao fazê-lo, deverão comprometer-se a “contrapartidas estritas e efetivas”. A Espanha seria séria candidata a inaugurar a lista. Angela Merkel encontrou-se, também nesta semana, com o primeiro-ministro Mariano Rajoy e teria exigido este novo passo.

Os mercados financeiros comemoraram o anúncio de Draghi. As bolsas de valores subiram acentuadamente hoje, em toda a Europa e em Nova York. Tendo em vista o sentido das medidas que se pretende impor às sociedades, só se pode ver, na celebração, o “recrudescimento da luta de classes” mencionado por Castells e Ramonet."

*Antonio Martins (autor do texto) é editor de Outras Palavras.

(Na imagem, o quadro "A Decadência dos Romanos", de Thomas Couture)

12 setembro 2012

Brahms e Goethe - A trágica Rapsódia para Contralto

"Compus uma canção nupcial para a condessa Schumann. Porém, faço-o com raiva."

Johannes Brahms, sobre a Rapsódia para Contralto. Logo, os amigos leitores entenderão melhor.

Em 1869, Brahms compôs uma das suas melhores obras vocais, a Rapsódia para Contralto, Coro Masculino e Orquestra, Op.53. A Rapsódia foi composta sobre trechos de um melancólico texto de Goethe, o poema Viagem  de Inverno pelo Harz. Não é a única obra de Brahms baseada em textos de Goethe, antes ele já havia composto a magnífica cantata profana Rinald. Sem falar nos diversos lieder de Brahms que musicaram poemas do grande poeta alemão . Goethe inspirou uma penca de  compositores do romantismo, desde Beethoven (Egmont, por exemplo), passando por Schubert , Schumann, e vários outros. E não poderia ser diferente, uma vez que Goethe dominou a literatura universal em sua época, foi um precursor do romantismo artístico e legou-nos obras de uma grandeza e profundidade incomparáveis.

Mas falemos da Rapsódia de Brahms. A sua história não é exatamente o que se pode chamar de feliz. Depois de sua famosa paixão por Clara Schumann, mulher do seu amigo Schumann, Brahms se apaixonou por uma filha do casal, Julie. Devia ser bem parecida com a mãe. Mas o desafortunado Brahms deveria ter previsto que adviria outro desastre amoroso em sua triste sina. Antes do compositor se declarar, soube que Julie iria se casar com o conde italiano Victor Radicati di Marmorito. Fazer o quê? Concorrer com um conde italiano não dá. Escreveu Clara: "Contei a Brahms antes de qualquer pessoa. Parecia não esperar por uma notícia como esta e ficou transtornado."  Bah, e ainda o Brahms foi o primeiro a saber... Resultado, para fugir da paixão por Julie, Brahms compôs a trágica rapsódia. O curioso é que Goethe, quando escreveu o poema em questão, estava fugindo da sua paixão por Charlotte von Stein. 

Algum tempo depois, Brahms mostrou à Clara a partitura da Rapsódia para Contralto. Que causou a seguinte reação na viúva de Schumann: "Há muito tempo que não tinha uma impressão tão profunda, fiquei surpreendida pelo tom melancólico de sua música." 

A parte inicial da Rapsódia é de uma profunda, violenta amargura, em que parece soprar o gelado e impiedoso vento do sombrio inverno alemão. A densidade emotiva tão característica de Brahms atinge nessa obra níveis extremos. Porém, como também é característica de Brahms, não há exageros, mas uma escura gravidade aliada a uma beleza solene. Tudo dentro de uma forma rigorosa, equilibrada. Os lamentos e súplicas da contralto, o acompanhamento celestial do coro masculino (que somente entra quando a obra se prepara para a conclusão) e os sentenciadores acordes da orquestra formam um todo admiravelmente coeso, em que um envolve o outro. A obra vai adquirindo contornos mais luminosos conforme ascende em direção ao seu final. Sim, é uma verdadeira ascensão, uma transfiguração, que parte de um sofrimento dilacerante de intensa excitação psíquica até uma grandiosa serenidade plena de amor e compaixão. Sem, todavia, atingir a felicidade.

Brahms escolheu três estrofes do poema de Goethe. Abaixo a tradução:

Viagem de Inverno pelo Harz (trechos utilizados na Rapsódia para Contralto)

Mas ao lado, quem é?
No meio dos arbustos seu destino se perde.
Atrás dele, apenas o farfalhar dos arbustos.
E a grama se ergue novamente,
E a andorinha o engole.

Ah, quem mitigará a dor daquele
Para quem o bálsamo se fez veneno?
Daquele que, em pleno amor,
O ódio humano bebeu?
Antes, escarnecido, agora zombador,
Curte secretamente o torturante egoísmo.

Se há em teu saltéro,
Pai de misericórdia,
Uma nota que fale ao seu ouvido,
Enche o seu coração de misericórdia.
Abre ao nublado olhar
Do caminheiro, sedento,
As fontes infinitas do deserto.

Johann von Goethe

10 setembro 2012

Cacete(te) para um Político


gabinete
palacete
com tapete
camionete

prometeste
de falsete
sem valete
cafajeste

em banquete
garçonete
omelete
alcaguete

governete
peidorrete
sem topete:

Marionete!

08 setembro 2012

Três Pequenas Maldições

I

a diferença
entre o apenas intelectual
e o sábio
é que para o apenas intelectual
não há diferença

II

se aqueles que têm a razão
praticassem a razão
que dizem ser a razão
(sejamos francos)
assaltariam bancos

III

para as leis científicas
entre a humanidade
não existem zumbis

para as leis poéticas
entre a humanidade
só existem zumbis

07 setembro 2012

Que Seja Sobre o Sangue


que seja
o meu verso

sobre o sangue
em areia derramada dura
no nu obsceno
do seio necropsiado
da terra
sangue seco
coagulado pelo pó da enxada
que deserticamente escorre...

que seja
sobre o sangue
ou água-podre
em rio derramado humano
visco de olho negro
no óleo do amargo da margem
que poluidamente escorre...

sobre o sangue
ou seiva-lágrima
em verde derramada queda
o esverdeado do plasma
da vastidão evaporada
que devastadamente escorre...

sangue
ou guará atropelado
pelo horizonte
rubro-vivo-lago
miolo derramado afora
no embora das estradas
que extintamente escorre...

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05 setembro 2012

O Homem Correto (Final)

Também não deveria sair mais com meus amigos. No fundo, não eram meus amigos, eles sabiam. E eu deveria sentir-me grato por eles estarem agora me alertando, antes que fosse tarde demais. Antes que eu me perdesse e me transformasse em um ser inútil, absolutamente improdutivo para a sociedade. Exclamei que sim, que minha gratidão era infinita, e lembro que chorei ao telefone as mais sinceras lágrimas. Então se despediram, muito polidamente, lembrando das severas punições em caso de desobediência e acrescentando que no dia seguinte eu receberia algo muito importante. Seria um manual, uma cartilha de como encontrar bons amigos. No final da cartilha, haveria uma breve lista com nomes, telefones e endereços de pessoas que seguramente seriam ótimos amigos para mim. Eu deveria procurá-los o mais rápido possível. Poucas vezes senti-me tão feliz em minha vida.

Certo dia, estava eu em um shopping, experimentando roupas em um provador de uma loja. Enquanto vestia a camiseta que provavelmente levaria, escuto um som de respiração, como se alguém estivesse muito próximo a mim. No meu lado esquerdo havia uma cortina. Parecia ser detrás dela que o som provinha. Abri-a. E ali estavam eles. Logo, declararam que estavam me observando, através de um pequeno orifício na cortina, enquanto eu experimentava as novas roupas. E, com um ar de profunda gravidade e decepção, que me estremeceu, disseram-me que não gostaram nem um pouco das roupas que eu estava pretendendo comprar. Eu não estava os agradando dessa forma. As roupas não combinavam comigo, garantiram, não podiam combinar. Elas não me deixariam melhor como pessoa. Eram de muito mau gosto. Exclamei, bastante envergonhado, que, fosse como fosse, era o meu gosto pessoal.  Eles não quiseram saber. De súbito, retiraram de seus paletós várias sacolas, cada uma com uma peça de roupa diferente. Disseram-me que, a partir daquele dia, para o meu próprio bem e crescimento individual, deveria usar aquelas roupas. E sempre que eu fosse comprar vestimentas novas, deveriam ser naquele estilo e com aquelas cores. Qualquer dúvida, deveria consultar um manual, uma cartilha de bem vestir-se que eles deixariam com a gerente da loja. Em caso de desobediência... eu já sabia. Claro que as roupas que eles me deram não eram de graça. Paguei por elas.

Levei-as comigo e experimentei-as somente em casa. De início, foi um choque. Senti-me verdadeiramente ridículo. Aquelas roupas não tinham nada a ver comigo. Porém, mantive firme minha força de vontade e segui as usando. Fui trabalhar com elas. Percebi que todos me olhavam na rua com sorrisinhos mal disfarçados e troçavam de como eu estava me vestindo. Mantive-me altivo e não dei atenção. Idiotas, pensei, que não sabem de nada. Se eles me garantiram, é porque assim eu estou bem melhor. De modo que os dias se passaram, segui usando aquelas roupas, adquirindo outras que não fugissem àquele estilo, e, ao fim das contas, nunca me senti tão bem vestido.

As semanas, os meses, os anos foram seguindo seu curso, e, de tempos, em tempos, eu os encontrava na rua, ou em algum local público, ou em meu trabalho, ou eles vinham até minha casa, com o nobre intuito de me transmitir mais instruções de como eu deveria viver, a melhor forma de se viver. E eles aproveitavam tais ocasiões para me inquirir. Desejavam saber se eu estava cumprindo com todas as determinações que me foram outorgadas. Garanti que sim, simplesmente porque era verdade. E mesmo que eu quisesse mentir, seria uma catástrofe, porque eles sempre sabiam de tudo. E então, com a mentira, a punição seria triplicada. Questionavam-me apenas para verificar o meu nível de sinceridade. É óbvio que jamais os decepcionei, nunca deixei de os agradar, sempre agi e me comportei de acordo com o que esperavam de mim, esforçava-me, em suprema abnegação, em mantê-los plenamente satisfeitos. Afinal, eles estavam sempre certos, a razão estava sempre com eles, suas opiniões eram as mais corretas, seus gostos, os mais perfeitos, suas ideias, as mais brilhantes. É assim, que posso fazer?

As últimas instruções que recebi referiam-se a uma lista das mulheres que eu poderia namorar e, posteriormente, casar-me. Não era uma lista longa, havia ali apenas cinco mulheres. Também não eram muito bonitas. No entanto, em hipótese alguma eu poderia escolher para namorar alguma mulher que não estivesse na lista. A punição seria impiedosa.  Como deve ser, para que nos mantenhamos na linha. Ainda estou escolhendo qual delas será. Uma vez escolhida, não posso mais trocar. E a moça deve me aceitar em namoro. Ela não tem escolha. E é melhor realmente que não tenha, daria muita confusão. São as leis, justíssimas, para o nosso próprio bem.

É claro que desde que os conheci, minha vida tem se tornado difícil. Mas eu não reclamo, eu não protesto, jamais me rebelo, nunca questiono. Por que o faria? Sei que tudo o que eles fazem, os sacrifícios por mim e por tantos outros, todas as suas instruções, regras, ordens e disciplinas constituem um esforço tenaz em me tornar um exemplo de cidadão, um bom homem em todos os sentidos, cumpridor de seus deveres, um indivíduo correto, que conhece o seu lugar e as suas responsabilidades, que vive sua vida dentro da lei e da ordem estabelecidas e que, apesar de todos os percalços, é um homem satisfeito e bem sucedido.

Lembro que certa vez um antigo amigo, que, graças, nunca mais o vi, perguntou-me: “Mas como assim, eles decidem tudo por ti e tu achas bom?” Eu, sereno, limitei-me a responder: “É claro, por que não acharia, se assim sou feliz?”