Os dias passavam sombrios e angustiados, e eu principiei a odiar a minha amada. Sim, minha mente me convenceu de que o amor que ela dizia ter por mim ou era uma farsa ou estava com seus dias contados. De qualquer forma, seria absurdo alimentar tal sentimento. Sou um homem do século XXI. Devo seguir a mente, a razão, os argumentos racionais. O coração já nada tem a me dizer... O que farei com os seus ditames? Podem ser muito belos, sublimes, divinos, mas não me levarão a lugar algum a não ser ao sofrimento. Quase que me convenceram, quase caí em suas armadilhas, fiquei dividido, mas a razão venceu a batalha. Nosso tempo decretou a morte do coração, a morte do sentimento. Sentir, agora, é motivo de piada. Não serei eu que farei papel de palhaço.
Sim, decidi matá-la. Quanto mais refletia, mais percebia que minha alma-escrava estava certa em tudo. Dou graças... ao diabo, talvez, ou talvez à minha loucura, por tê-la comigo.
Em uma noite sem lua, fui armado à casa de minha namorada. Tinha a chave da casa. Ela dormia em sua cama. Como era bela... Eu a acordei carinhosamente. Ela não entendeu por que eu ali estava. Esclareci que eu havia descoberto que alguém a odiava, e expliquei-lhe os motivos. Falei como se a pessoa descoberta fosse alguém do seu passado, um antigo namorado. Ela declarava, entre atônita, indignada e nervosa, que isso era um completo absurdo, que jamais se comportou ou se comportaria daquela forma com qualquer namorado, que ela sempre fora e sempre seria absolutamente sincera em seus sentimentos. Queria saber quem era a pessoa, o porquê dela ter dito aqueles horrores a seu respeito e o que eu estava pensando sobre tudo isso. Retorqui que isso eu não poderia dizer, pelo menos por enquanto.
Não sei se por desespero, por raiva, por culpa, ela começou a chorar. Fiquei alguns minutos em silêncio aguardando que ela cessasse seu choro. Quando o fez, levantei-me calmamente do sofá e dirigi-me aos seus ouvidos, sussurrando gravemente: “sou eu que te odeio, minha querida...” Apontei a arma em sua direção. Ela emudeceu. Gaguejando, disse que não podia acreditar no que estava acontecendo. Creio que tentou gritar, mas não conseguiu. Depois, perguntou com dificuldade e suando frio se era algum tipo de brincadeira de mau-gosto. Exclamei que nunca estive tão sério em toda minha vida. Disse-lhe que os motivos de eu a matar estavam bem claros, eu já os havia proferido em sua totalidade. Sabia que ela não me amava. No desespero, balbuciou que fosse quem fosse que me tivesse dito tudo aquilo, era uma mentira deslavada, motivada certamente por inveja de nossa relação. Com extrema frieza, garanti-lhe que não acreditava em uma só palavra do que ela me dizia. Grossas lágrimas principiaram a correr por sua face pálida. Exclamava, em desespero: “Meu Deus! Meu Deus! Tu enlouqueceste completamente, como podes não acreditar que eu te amo, eu te amo!!! Eu permanecia frio, com a arma apontada para seu peito.
Em uma última tentativa, aos prantos, balbuciou: “Tudo bem, tudo bem... se tu não acreditas nas minhas palavras, então, olha para meus olhos... Olha, olha bem para eles, eles te dirão que eu te amo...” Eu os fitei profundamente... seus lindos olhos agora congestionados de sangue e lágrimas... Creio que também chorei, não lembro. E desfechei quatro balaços em seu coração.
(...)
Amanhã, serão completadas duas semanas do meu 33º assassinato. No quarto dia após o crime, a alma de minha namorada substituiu a da antiga vítima. E desde então, a minha nova alma-escrava não para um segundo sequer de chorar. Não aguento mais esse tormento nos meus ouvidos...
Hoje, quando acordei pela manhã, ouvi cantos de pássaros que nunca havia ouvido. Cantos belíssimos. Vinham de meu jardim. Por um momento, fiquei feliz ao ouvi-los. Pensei: “esses pássaros desconhecidos no meu jardim... isso é sinal de que a fauna está se recuperando”... Porém, refleti melhor e dei me conta que não é isso, pelo contrário. Aqueles novos pássaros cantando em meu jardim significam que eles não têm mais matas para viver. Então, o desespero voltou a tomar conta de mim, e voltei a ouvir o choro incessante da minha alma-escrava...
Agora, estou aqui, acabando de escrever esta minha história. Não suporto mais a alma da minha antiga amada chorando ao meu redor. O que ela quer afinal? Encher-me de culpa? Já disse que sim, que a amo, mas não adianta, ela não para de chorar um instante, e eu não aguento mais. Por isso estou aqui, agora, pronto para cometer o meu 34º assassinato e libertar a alma da minha amada. Tão logo acabe esta história, engendrarei outro crime. Aliás, já acabei. O que mais necessita ser contado?... Ah sim, já realizei o ritual de magia negra. Porque depois do crime, não poderei fazê-lo. Não poderei, porque a pessoa, neste momento, que eu mais odeio, sou eu...
(Na imagem, o quadro "Lady Macbeth e os Punhais", de Füssli)