25 abril 2009

Catástrofe

na minha cidade
não há catástrofes:

não têm tornados
não vêm ciclones
nem furacões
não têm vulcões
nem terremotos
nem tsunamis
nem bomba atômica
enfim...

é que estão todas elas

Todas!

devastando meu peito
dentro de mim

23 abril 2009

Ode ao Gato


Sou um verdadeiro amante dos gatos. E de todos os felinos em geral. São seres fascinantes e misteriosos. Sendo assim, sinto-me na obrigação de publicar aqui a magnífica "Ode ao Gato" de autoria de Artur da Távola. O texto já deve ser conhecido de alguns, mas não de todos. Como disse o próprio autor, que ele consiga o milagre de iluminar os corações dos que não gostam e maltratam esses nobres felinos. O que tenho a dizer sobre este texto é que ele é perfeito, e que eu gostaria de o ter escrito.


ODE AO GATO


Artur da Távola


Bichos polêmicos sem o querer, porque sábios, mas inquietantes, talvez por isso.
Nada é mais incômodo que o silencioso bastar-se dos gatos.
O só pedir a quem amam. O só amar a quem os merece.


O homem quer o bicho espojado, submisso, cheio de súplica, temor, reverência, obediência. O gato não satisfaz as necessidades doentias do amor. Só as saudáveis. Lembrei, então, de dizer, dos gatos, o que a observação de alguns anos me deu. Quem sabe, talvez, ocorra o milagre de iluminar um coração a eles fechado? Quem sabe, entendendo-os melhor, estabelece-se um grau de compreensão, uma possibilidade de luz e vida onde há ódio e temor? Quem sabe São Francisco de Assis não está por trás do Mago Merlin, soprando-me o artigo?


Já viu gato amestrado, de chapeuzinho ridículo, obedecendo às ordens de um pilantra que vive às custas dele? Não! Até o bondoso elefante veste saiote e dança a valsa no circo. O leal cachorro no fundo compreende as agruras do dono e faz a gentileza de ganhar a vida por ele. O leão e o tigre se amesquinham na jaula. Gato não. Ele só aceita uma relação de independência e afeto. E como não cede ao homem, mesmo quando dele dependente, é chamado de arrogante, egoísta, safado, espertalhão ou falso. "Falso", porque não aceita a nossa falsidade com ele e só admite afeto com troca e respeito pela individualidade.


O gato não gosta de alguém porque precisa gostar para se sentir melhor. Ele gosta pelo amor que lhe é próprio, que é dele e ele o dá se quiser.O gato devolve ao homem a exata medida da relação que dele parte.Sábio, é espelho. O gato é zen. O gato é Tao. Ele conhece o segredo da não-ação que não é inação. Nada pede a quem não o quer. Exigente com quem ama, mas só depois de muito certificar-se. Não pede amor, mas se lhe dá, então ele exige. Sim, o gato não pede amor. Nem depende dele. Mas, quando o sente, é capaz de amar muito. Discretamente, porém sem derramar-se. O gato é um italiano educado na Inglaterra. Sente como um italiano mas se comporta como um lorde inglês.


Quem não se relaciona bem com o próprio inconsciente não transa o gato. Ele aparece, então, como ameaça, porque representa essa relação precária do homem com o (próprio) mistério. O gato não se relaciona com a aparência do homem. Ele vê além, por dentro e pelo avesso. Relaciona-se com a essência. Se o gesto de carinho é medroso ou substitui inaceitáveis (mas existentes) impulsos secretos de agressão, o gato sabe.


E se defende do afago. A relação dele é com o que está oculto, guardado e nem nós queremos, sabemos ou podemos ver.Por isso, quando surge nele um ato de entrega, de subida no colo ou manifestação de afeto,é algo muito verdadeiro, que não pode ser desdenhado.É um gesto de confiança que honra quem o recebe, pois significa um julgamento. O homem não sabe ver o gato, mas o gato sabe ver o homem. Se há desarmonia real ou latente, o gato sente. Se há solidão, ele sabe e atenua como pode (ele que enfrenta a própria solidão de maneira muito mais valente que nós).


Se há pessoas agressivas em torno ou carregadas de maus fluidos, ele se afasta. Nada diz, não reclama. Afasta-se. Quem não o sabe "ler" pensa que "ele não está ali". Presente ou ausente, ele ensina e manifesta algo.Perto ou longe, olhando ou fingindo não ver, ele está comunicando códigos que nem sempre (ou quase nunca) sabemos traduzir. O gato vê mais e vê dentro e além de nós. Relaciona-se com fluidos, auras, fantasmas amigos e opressores. O gato é médium, bruxo, alquimista e parapsicólogo. É uma chance de meditação permanente a nosso lado, a ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério.


O gato é um monge portátil à disposição de quem o saiba perceber. Monge, sim, refinado, silencioso, meditativo e sábio monge, a nos devolver as perguntas medrosas esperando que encontremos o caminho na sua busca, em vez de o querer preparado, já conhecido e trilhado. O gato sempre responde com uma nova questão, remetendo-nos à pesquisa permanente do real,à busca incessante, à certeza de que cada segundo contém a possibilidade de criatividade e de novas inter-relações, infinitas, entre as coisas.


O gato é uma lição diária de afeto verdadeiro e fiel. Suas manifestações são íntimas e profundas. Exigem recolhimento, entrega, atenção. Desatentos não agradam os gatos. Bulhosos os irritam. Tudo o que precise de promoção ou explicação, quer afirmação.Vive do verdadeiro e não se ilude com aparências. Ninguém em toda natureza aprendeu a bastar-se (até na higiene) a si mesmo como o gato! Lição de sono e de musculação, o gato nos ensina todas as posições de respiração ioga. Ensina a dormir com entrega total e diluição recuperante no Cosmos. Ensina a espreguiçar-se com a massagem mais completa em todos em todos os músculos, preparando-os para a ação imediata. Se os preparadores físicos aprendessem o aquecimento do gato, os jogadoresreservas não levariam tanto tempo (quase 15 minutos) se aquecendo para entrar em campo.


O gato sai do sono para o máximo de ação, tensão e elasticidade num segundo. Conhece o desempenho preciso e milimétrico de cada parte do seu corpo, a qual ama e preserva como a um templo.Lição de saúde sexual e sensualidade.


Lição de envolvimento amoroso com dedicação integral de vários dias. Lição de organização familiar e de definição de espaço próprio e território pessoal. Lição de anatomia, equilíbrio, desempenho muscular. Lição de salto. Lição de silêncio. Lição de descanso. Lição de introversão. Lição de contato com o mistério, com o escuro, com a sombra. Lição de religiosidade sem ícones. Lição de alimentação e requinte. Lição de bom gosto e senso de oportunidade. Lição de vida, enfim, a mais completa, diária, silenciosa, educada, sem cobranças, sem veemências, sem exigências. O gato é uma chance de interiorização e sabedoria posta pelo mistério à disposição do homem."

21 abril 2009

Eu...

queria deixar
meu eu que é
para ser
o ser que sou
sinto-me ser do sonho
nascente dos ocasos
um largo lago de fins
que me sobra sobre
tristeza e vale
sangrei-me de febres
e em tudo que não fui
estive...
dormi-me de mares
lembrando o ar
da tua alma
queria...
sentir tua essência em sede
em crise
mas estou-me em nada
em nada do que é pensável
e se assim digo de mim
minto

dos iminentes venho
e o todo que sinto
é o tudo que tenho

18 abril 2009

Só Uma...

eu poderia dizer
que para mim tu és Noite
escuro-estrela de espaços longe
que me cai nos olhos entre lua infinda
mas uma só coisa que eu diga
já basta...

eu poderia dizer
que para mim tu és Sonho
arcanjo-insânia entre visões do além
mergulho em asas pela luz-mistério
mas uma só coisa que eu diga
já basta...

eu poderia dizer
que para mim tu és Alma
magia-febre entre fantasma em fogo
de vida e morte pelo fim humano
mas uma só coisa que eu diga
já basta:
sim, eu te amo.

17 abril 2009

Um Monstro

eu sou um monstro?
sou um monstro
porque sou eu?
desculpa
mas não sou tu
eu não estou ali
eu saí dos trilhos
que me disseste
para segui-los
e fiz os meus
então sou monstro
porque meus olhos
não são os teus?
porque não foi em ti
que eu fui buscar
o que senti?
porque eu fui eu
em tudo aquilo
que eu pensei?
me desculpa
mas te decepcionei
quebrei tua norma
e fiz a minha
da minha forma
voando alto
como o urubu:
posso ser monstro
mas não sou tu

15 abril 2009

O que é a Inspiração?


A inspiração não se explica. Não há conceito que a defina. Não há teoria que a limite. Por mais que alguém tente dizê-la, jamais a dirá. Dirá a “ciência” que a inspiração pode ser explicada por reações químicas no cérebro, assim como ela tenta explicar o que seria a paixão, por exemplo.

Ainda que tais reações possam ocorrer tanto em um caso como no outro, como se pode afirmar com certeza que são tais substâncias e suas interações as causas profundas da paixão ou da inspiração em um ser humano? Suas manifestações físicas impedem suas manifestações espirituais? Ou são reflexos das últimas?

Por que uma coisa impediria a outra? Um técnico de futebol, por exemplo, explicaria que seu time jogou mal ou bem somente porque seus jogadores interagiram bem ou mal? Não há outras causas menos aparentes? Tudo é assim tão simples?

Vejo tais reações químicas cerebrais como o reflexo de uma causa mais profunda, não mecânica, não material. Ainda que se explique toda a vida através de reações químicas, por que há vida em um gato e não há em um automóvel, se ambos funcionam através de reações químicas e princípios mecânicos?

Se a inspiração se resumisse a reações químicas cerebrais, se não houvesse para ela uma causa maior e mais profunda, bastaria se descobrir uma técnica ou uma droga para promover no cérebro tais reações que se faria de qualquer idiota um novo Beethoven, por exemplo. Logo a “ciência” dirá que pode fazer com que qualquer pessoa se apaixone ou se inspire. Da mesma forma que disse no século XIX que não haveria mais doenças para afetar o ser humano no século XX, que todas seriam curadas e erradicadas. Para esta “ciência” que aí está, tudo é controlável e manipulável... É uma pena que a destruição do planeta fugiu ao controle de sua arrogância... E de sua ignorância.

Ninguém nunca me dirá o que é a inspiração. Alguém que não a tenha poderá passar a vida inteira pensando em criar uma grande obra de arte e não a fará. Alguém que tenha naturalmente em si a inspiração criará a essência da obra de um instante para outro, no momento que tiver o “insight” da mesma, ainda que precise de mais tempo para levá-la às suas consequências finais. E nem mesmo o autor da obra saberá explicar de uma forma satisfatória como surgiu em si a inspiração.

Ainda que muitas vezes a inspiração seja apenas 1% de uma obra, e que o restante seja o trabalho sobre ela, sem esse 1% de inspiração, a obra não existirá, assim como uma criança não nasce sem os minúsculos óvulos e espermatozóides.

De onde surgiu a 9ª Sinfonia de Beethoven, por exemplo? De simples reações químicas? Fico com o que pensava o próprio Beethoven: “do céu estrelado acima de nós...”
(Na imagem, "Alegoria do Gênio de Beethoven", de Sigmund Hampel)

13 abril 2009

O Homem

o homem
quando não vive
teoriza

quando não experimenta
acredita

quando é limitado
põe limites

quando é impotente
cria regras

quando não compreende
tem certeza

quando não sente
fala

quando não sabe
discute

11 abril 2009

Para os Profundamente Decepcionados


Eu sou alguém profundamente decepcionado. Há muito perdi minha esperança na sociedade, na humanidade, pelo simples fato de que a conheço extremamente bem... E o e-mail transcrito abaixo em sua quase totalidade, retirado da coluna do jornalista Juremir Machado da Silva de 10/04/2009, é uma forma de ilustrar a minha radical e definitiva decepção. Parabenizo a professora Simone Varoni pelo melhor desabafo de um profissional que já li. E parabenizo o jornalista Juremir por tê-lo publicado e por sua constante defesa do magistério.

E-mail: “Olá, meu nome é Simone Varoni, tenho 32 anos e leciono desde os 18 anos... Eu gosto do que faço, sinto-me alegre em estar na escola e amo meus alunos como amigos. Mas o que eu penso em relação ao futuro desta profissão é bastante assustador e preocupante. Não pretendo me aposentar nesta profissão... O QUE ENTRISTECE É QUE A SOCIEDADE SABE QUE GANHAMOS MAL E NADA É FEITO. Enquanto falta material nas escolas, espaço físico, tempo para o professor planejar, realizar projetos, tempo para fazer uma educação livre de verdade, assistimos diariamente à roubalheira, a política de que todos têm direito a uma fatia da corrupção, da troca de favores, do jeitinho brasileiro E ISSO ME DECEPCIONA MAIS E MAIS A CADA DIA.”

“Enquanto isso, nas escolas, mendigamos para trabalhar: fazemos festinhas, rifas, risotos, sopas de mocotó, brechó, saímos no comércio esmolando doações para arrecadar fundos para as escolas, pagamos material para os alunos porque muitas famílias sequer sustentam o lápis, a folha de ofício, o xérox, o caderno... Pensando bem, acho que somos verdadeiras idiotas. Somos pais, mães, médicas, psicólogas, amigas e ainda lutamos para ser profissionais da educação. Arcamos com um peso que está nos estressando, adoecendo, enlouquecendo... ainda corremos o risco de ser agredidas fisicamente, porque verbalmente e moralmente já somos vítimas de muito tempo. EU ME DEMITI DO ESTADO DO RS: professora com formação plena e pós-graduação: salário: R$ 533,00.”

“Não recebi por cinco dias de greve, onde o Estado descontou quatorze dias parados. DEVEM-ME OS DIAS DE GREVE QUE NA REALIDADE NUNCA EXISTIU PORQUE GREVE RECUPERADA NÃO É GREVE, É ENGANAÇÃO. Devem-me os dias em que não estive em “greve”. Leio no jornal que um ilustre deputado gaúcho defendia que não devíamos receber os dias parados... E ele, dias após recebia prêmio em solenidade de festa gaúcha. DEMITI-ME POR DECEPEÇÃO PURA. AQUELA DECEPÇÃO QUE DINHEIRO NENHUM PAGA, CONSOLA OU APAGA. Fico pensando se irão restar professores que ministrem aulas aos meus filhos... acredito que não mais restarão escolas”.

É isso. Os grifos são meus. Eu também me decepcionei profundamente com o magistério público. Eu me demiti do magistério municipal também por pura decepção. A diferença é que me demiti em seis meses de trabalho. Para mim foi o suficiente para ver que o magistério público no Brasil está perdido. Está. E ponto final. E o que mais me decepciona é saber que a sociedade, as pessoas em geral, jamais ficam do lado dos professores. Culpam os professores por tudo e ainda defendem a nossa querida governadora Yeda. Melhor seria que ninguém mais lecionasse em escolas públicas, que todos pedissem demissão. Quem sabe então os professores fossem valorizados. Mas como isso não vai acontecer, só direi o seguinte: Brasil: tu nunca vais sair do teu atraso. És um país vergonhoso. E eu tenho vergonha de ser brasileiro.

09 abril 2009

Motivo

meu sonho
seria cantar o não-cantável
não-vistas visões-mistério
de Dante Alighieri

seria vibrar o arquetípico
vitória sublime e trágica
de Ludwig Van Beethoven

seria voar além da altura
asas de titão e águia
de Wolfgang Von Goethe

seria fitar a luz-sentença
astrais anjos-demônios
de Leonardo da Vinci

seria viver em Deus e sombra
espirituais noites e sóis
de Sebastian Bach

seria ver o ser da alma
labirintos de verdade e dor
de Fernando Pessoa

seria sentir o peito em chamas
ânsias de amor e força
de Johannes Brahms

queria cantar tudo
que realmente importa a mim
e por isso
não sendo Eles
eu canto o Fim.

07 abril 2009

As Almas do Fantástico na História do RS - História 5ª: O Final Súbito


Durante a Revolução Farroupilha, no ano de 1839, as tropas federalistas assassinaram três indígenas que cruzavam por um local de vastas coxilhas, numa região próxima ao rio Ibicuí. Os índios assassinados eram músicos, dos melhores da época entre os povos indígenas do sul. Haviam aprendido a tocar seus instrumentos, violino, flauta e violão, nas missões jesuíticas instaladas em solo gaúcho. Os corpos dos índios, que foram covardemente baleados por dois cavaleiros que treinavam suas pontarias, permaneceram sobre a coxilha em que tombaram. Ali apodreceram e serviram de repasto aos urubus. No momento em que foram mortos, não portavam seus instrumentos musicais, apenas alguns punhais que foram levados pelos militares.

Em 1886, por volta das 5h da tarde, o tropeiro José Luiz da Costa conduzia o seu gado exatamente pela região onde morreram os três índios músicos. Ao aproximar-se da coxilha onde jazeram seus restos mortais, o tropeiro principiou a ouvir uma estranha música, cuja origem ele não soube identificar. Chegando a uma vila da região, José Luiz relatou o que ouviu ao padre Antônio Ferreira, o qual anotou sua descrição em um diário que chegou aos nossos dias. Abaixo, estão alguns trechos do relato do tropeiro José Luiz da Costa, conforme redigido pelo padre Ferreira:

“O senhor José Luiz da Costa, jovem tropeiro desta localidade, contou-me hoje que ouviu uma música muito estranha ao cruzar uma região de coxilhas próximas ao rio Ibicuí. Disse o senhor José que escutou um som como um concerto de três instrumentos, que ele identificou com certa dificuldade como sendo um violão, um violino e uma flauta. Tal música, segundo o tropeiro, parecia provir do nada, como que do ar, pois ele procurou exaustivamente pela origem do som, pelo local onde poderiam estar os supostos músicos, porém nada encontrou.”

“Disse-me ainda que a música era belíssima, ‘muito bonita e acalmava gente’, segunda suas próprias palavras, e de uma intensa alegria, algo que ele nunca havia ouvido antes. Mesmo achando muito estranho ouvir uma música que não podia saber de onde vinha e sentindo um certo receio, o senhor José Luiz afirmou, quando por mim questionado, que sentiu-se muito bem ao escutar o som dos instrumentos, algo como uma sensação de tranquilidade e alegria de viver. Completou dizendo que não sentiu nada de tristeza ou de qualquer outro tipo de sentimento grave. O tropeiro não acreditava que a música pudesse ser alguma forma de manifestação sobrenatural, até que mencionei sobre os três índios músicos mortos em 1839. Concluiu afirmando que a música não durou mais que 5 minutos e parou de repente.”

O relato do tropeiro José Luiz da Costa é o primeiro conhecido e documentado sobre a audição de estranhas músicas naquela região do pampa gaúcho. Após esse, vários outros habitantes da localidade relataram experiências bastante similares à vivenciada por José Luiz. No entanto, a grande maioria não foi documentada. Algumas ainda hoje são transmitidas oralmente pelas pessoas mais idosas. O que se percebe em praticamente todas as histórias é que a música sempre parecia provir do ar sobre as coxilhas, que era muito bem executada, e que o som parecia ser o dos mesmos instrumentos que eram tocados pelos índios mortos.

Porém, há um ponto discordante nas várias narrativas. Refere-se ao sentimento, às sensações que a música deixava em seus estarrecidos ouvintes. Nas narrativas mais antigas, algumas do final do século XIX e outras do começo do XX, o sentimento despertado pela música é bastante similar aos descritos pelo tropeiro José Luiz: uma profunda alegria, uma luminosa tranquilidade. Porém, os relatos mais recentes, situados por volta dos anos 1940 até os 1980, descrevem uma música bem menos alegre e serena, porém transmitindo certa melancolia, uma bela e vaga tristeza, que causava alguma inquietação nos corações de quem a escutava. No entanto, em nenhuma das narrativas, seus ouvintes declararam ter se sentido mal ou desconfortáveis, pelo contrário. O que também é perceptível nesses relatos mais recentes é que, conforme mais atuais eles são, maior é a descrição dos sentimentos melancólicos irradiados pela música. O último ponto em comum entre todos os relatos é que os instrumentos invisíveis sempre cessavam de soar de forma súbita, deixando nos ouvintes uma duradoura e intensa sensação, a qual sempre era comentada com alguma espécie de receio ou inquietação não explicável.

Entre os raros relatos escritos sobre o caso, há um de 1968 deixado por Maurício Crestani Borges, onde ficam claras as diferenças de sentimentos despertados pela música, quando comparado com o relato de 1886. A descrição realizada por Maurício Borges é bastante precisa e bem elaborada, uma vez que o mesmo era escrivão da polícia civil na cidade de Porto Alegre. Maurício realizava uma pescaria no rio Ibicuí, quando foi surpreendido pelas misteriosas melodias. A seguir, os trechos mais importantes do relato do escrivão:

“Aquela música surgiu de repente, como que do nada, e deixou-me um tanto perplexo. Já havia escutado comentários sobre supostas músicas fantasmais que de tempos em tempos eram ouvidas naquela região do vale do Ibicuí. No entanto, nunca dera real atenção aos boatos. E não é que acabei sendo umas das testemunhas! Por volta das 18h, quando dava uma caminhada pelo campo, ouvi o som de um violão. Olhei atentamente ao meu redor, não vi nada, apenas um céu azul bordado de nuvens, infindas coxilhas que se perdiam no horizonte e, pelo outro lado, uma bela mata verdejante.”

“Segundos após o som do violão, surgiram melodias de flauta (creio que era uma flauta, talvez um clarinete) e violino, todas belíssimas, maravilhosamente executadas. Nesse instante, lembrei-me com certo medo, das narrativas sobre a música fantasmagórica. Procurei pela mata até cansar, subi e desci coxilhas, mas realmente não havia ninguém nas imediações.”

“As melodias permaneceram constantes e intensas por cerca de 5 minutos, ao que cessaram subitamente e de forma muito estranha. A música transmitiu-me uma sensação de dilacerante tristeza, ainda que fosse muito bela. Tocavam o coração de uma maneira esquisita e pungente, e eu teria ido às lágrimas, não estivesse um tanto assustado e confuso. Posso dizer que me sentia bem ouvindo aquelas melodias, porém uma sensação de profunda dor e inquietação espiritual tomou conta de mim após o final inesperado e abrupto que ainda não consigo esquecer e muito menos expressar...”

Esse é o relato do escrivão Maurício Borges. E agora, para finalizar, deixarei o meu relato. Sim, eu estive no local, com a precisa intenção de ouvir os músicos invisíveis. Acampei em agosto de 2008 na região de onde se originaram as narrativas. Vaguei pelas coxilhas supostamente assombradas durante as manhãs, tardes e as noites de quase toda uma semana, até que no princípio da noite do 6º dia de meu acampamento, uma desolada melodia de flauta iniciou a entristecer meus ouvidos.

Em seguida, surgiram as notas lúgubres de um violão desesperado, que foram imediatamente repetidas em cânone, de forma trágica, pela beleza mórbida de um violino. Sentei-me sobre o campo e mergulhei extasiado naquela música de sofrimento indizível. Uma sensação de sangue sendo derramado e um clima absolutamente sombrio de ocaso iminente tornaram-se quase que palpáveis pelos ares densos da noite que iniciava.

Os músicos invisíveis foram intensificando a força de execução, e a música, em um furiosíssimo crescendo, assumiu uma velocidade frenética e sublimemente desesperada. Aquele som enfebrecido encerrou-se de uma forma anômala, canhestramente súbita, deixando uma sensação arrepiante, catastrófica, apocalíptica. Eu estava sentado sobre as coxilhas do pampa. Insano. Chorei.

06 abril 2009

Dor-me

dor mir...
esquecer-me da dor
nos mares mornos da morte
recordar-me de mim
nos dentes-deleite que mordem
que martelam de sonos
nos confins de astros de marte
de amarte
nas asas de um corvo-condor
minha alma de amar amarguras
em mar de noites procura
as chaves dos olhos de lua
que dormem em teu rosto que sonha...
...dor em a dor-me ser
que tu dormes
na minha tristeza de cosmos
e os que pensam
dirão que sou-me insensato
e os que agem
dirão que fujo do mundo
mas eu só
sonho
no que me deixas
Sonho
em que me beijas

03 abril 2009

Ir...

e se esvai
veloz
sai
das minhas veias
como vinho
que se vai
velho
pelas mãos
vaso
vazio
derrubado
várias vezes
várias vozes
que me vieram
e se foram
vãs
do meu lado
vinho
mal sangrado
que tu vinhas
às minhas veias
e não vieste
e eu me venho
não te vi
viva
e me vou
vendo
vazo
derramado

02 abril 2009

Schiller e Beethoven: a Força do Romantismo


Em 1782, aconteceu, na Alemanha, a primeira apresentação da genial obra teatral "Os Ladrões", do poeta e dramaturgo alemão Friedrich Von Schiller, um dos pioneiros do Romantismo na literatura. Era então o início do movimento romântico, no auge do "Sturm und Drang" (Tempestade e Ímpeto), e a obra de Schiller surgiu com força titânica ao servir de bandeira contra as injustiças sociais, contra o massacre da liberdade e erguendo o homem com todos os seus sonhos e ideais


O herói da obra, Karl Moor, torna-se líder de um bando de ladrões para lutar contra as injustiças que havia sofrido na sociedade. O fato de Karl não conseguir converter em realidade seus altos anseios e ideais não diminui a força do retrato de Schiller, a imagem emblemática de um único homem lutando para mudar o mundo. O ímpeto, a fúria e o desespero dessa obra revolucionária ficaram profundamente gravados na mente e no coração de seus expectadores.


Este trecho da resenha da primeira apresentação de "Os Ladrões", citada por Lewis Lockwood, deixa bem claro toda a força e impacto da obra:


"O teatro parecia um hospício - olhos esbugalhados, punhos fechados, gritos roucos no auditório. Pessoas se jogavam nos braços de desconhecidos, soluçando, mulheres a ponto de desmaiar se apressavam para a saída. Houve uma comoção universal, como num caos do qual irrompesse uma nova criação."


Anos mais tarde, em 1808, Beethoven, o gênio precursor do Romantismo na música, estreava a sua Quinta Sinfonia, a do Destino, impregnada do mais intenso e devastador espírito romântico. Esse hino à liberdade cheio de fúria e grandeza, trágico e vitorioso, causou em seu público o mesmo choque avassalador que a apresentação de "Os Ladrões", algo como um despertar da consciência.


A força do Romantismo irrompia como uma tempestade naqueles tempos. Na alma de alguns poucos homens, ela ainda continua...

(na imagem acima, Friedrich Schiller)


31 março 2009

Poema Agradável Para Vencer Concursos Literários

Eu sou feliz.
blá blá blá
blá blá blá...
(blá blá blá positivo)

Tu és feliz.
blá blá blá
blá blá blá...
(blá blá blá certinho)

Ele é feliz.
blá blá blá
blá blá blá...
(blá blá blá saudável)

Então
unamos nossos blablablás
para construirmos de mãos dadas
um mar de rosas
de felicidades
mascaradas.

28 março 2009

Meus Pêsames

ser o filho último
da Tragédia e do Crepúsculo
no leito de fins do cosmos
e ver as pombas me golfando sangue
por um surdo céu de gritos longes
lá no extremo de uma dança insana
onde meus olhos te serpeiam em sol
e caem velhos em teu poço frio
e ver-se em vinho afogar-se estrelas
e não tocar aquela luz que sinto
numa tormenta que me cega o cheiro
quando o amor me caiu nas costas
e derrubou-me pela lama rubra
e não voltar meu rosto a quem me derruba
ver voarem águias na montanha em chamas
e na noite lenta que me corre os sonhos
olhar a um anjo que me dá adeus
sem jamais tocar naquela mão que acena
e ver a verdade sorrir...

mas louco
sem poder vivê-la
me fecho os olhos...
dormir

27 março 2009

Da Genialidade de Poe (Outra Pequena Homenagem aos seus 200 Anos)


A seguir, dois fatos pouco conhecidos sobre Edgar Allan Poe, que demonstram, porém, o alcance de sua genialidade:

1º - Em 1842, em Nova York, ocorreu o assassinato de Mary Cecilie Rogers. Tal crime permaneceu sem solução até novembro do mesmo ano, quando Poe escreveu o conto “O Mistério de Marie Roget”. Nesta obra, o autor, sob o pretexto de relatar a sorte de uma parisiense, seguiu em todas as minúcias os fatos essências do assassinato real de Mary Rogers, enquanto acompanhava os não essenciais. Ou seja, na verdade, Poe tratou em seu conto de tentar solucionar o mistério do crime, o que a polícia não havia feito até então. Escrevendo, pois, uma obra aparentemente fictícia, Poe, distante do cenário do crime e apenas acompanhado o desenrolar dos fatos pelos jornais, reuniu todas as informações possíveis sobre o assassínio. Utilizando-se de sua mente e de sua imaginação fenomenais, de sua espantosa capacidade dedutiva, chegou sozinho à solução do mistério. Mais tarde, foi comprovado que a conclusão geral de Poe sobre quem seria o assassino de Mary Rogers estava corretíssima. E não só isso: absolutamente todos os principais pormenores hipotéticos por meios dos quais foi essa conclusão obtida também foram desenvolvidos de forma integralmente correta.

Impressiona enormemente que Poe tenha chegado sozinho à solução de um crime, muito antes da polícia, e distante do cenário do assassinato. Não é à toa que foi ele o criador do gênero policial na literatura. Se não fosse um gênio da arte, Poe seria um genial detetive.

2º - Poe escreveu um ensaio que une um caráter científico, filosófico, metafísico e poético intitulado “Eureka (Ensaio sobre o Universo Material e Espiritual). Nessa extensa obra, de profunda e densa beleza artística, Poe, entre outros assuntos, transmite-nos a sua visão da origem do universo. Porém, o que mais nos surpreende é que nesse ensaio, escrito durante a primeira metade do século XIX, Poe antecipa-se em mais de um século às teorias científicas do século XX sobre o universo e sua origem. Em “Eureka”, o gênio nos passa a visão de que o universo se originou de um único todo informado, um átomo inicial, como afirma a teoria do “Big Bang”. Poe ainda escreve que, ao fim, tudo o que foi formado no universo voltará ao seu seio inicial, ao “átomo” primordial.

Esses são apenas alguns exemplos da obra de um dos maiores gênios da história da humanidade: Edgar Allan Poe.

25 março 2009

Esquecimento...

um passo de luz pela mata
cegando meu sonho em tormento –

esquecimento esquecimento –

de tudo o que não me lembrei

um astro de som pela noite
esmagando o meu pensamento –

esquecimento... esquecimento –

de tudo o que um dia esperei

um vago sinal destas artes
lá acima de meu sentimento –

esquecimento... ah esquecimento –

de tudo que em mim eu guardei

um sopro de sol dos teus olhos
em lábios de falecimento –

esquecimento... oh Esquecimento!

do que jamais esquecerei..

23 março 2009

Sem Saída

al-cansei-me:
voou anoitecer-me na luz
no reterno do tempo
horando...
anoitecer-me
à minha-noite

em quanto
a humanidade
ao sol se esquenta:
tomara
que venha
uma Tormenta

22 março 2009

Manifesto contra a Tirania

A Liberdade está acima de tudo. Todos os grandes artistas lutaram incansavelmente pelo liberdade em todos os sentidos. O direito à liberdade individual deve ser sempre a maior bandeira do artista, desde que essa liberdade respeite a liberdade dos outros indivíduos. Agora, que a liberdade de expressão é um dos assuntos em voga em nossa cidade, decidi republicar o texto abaixo, que aborda exatamente a questão da Liberdade. Já me manifestei contra a tirania de Oracy Dornelles, que intenta impor suas regras e valores como as únicas corretas. E é muito estranho que tal senhor assim queira agir, uma vez que Beethoven, gênio que ele tanto admira, foi um dos mais ferrenhos adversários de todos os tipos de tirania. Certamente, desprezaria Oracy pelos seus atos.

O texto abaixo é como um grito pela liberdade em todos os sentidos um protesto contra todos aqueles que julgam que podem estabelecer suas regras como válidas para todos os indivíduos e que acreditam ter o poder de estabelecer o que é certo ou errado.

E Nunca Vou Por Ali...

Vocês sentaram em seus tronos de certeza vazia e de sabedoria inútil para tentar ditar-me as regras de como devo viver. Quem disse que vocês as conhecem? Onde estão as leis que garantem que as suas regras estão corretas? Onde estão as verdades que garantem o que é correto? As suas verdades são a Verdade? Vocês estão certos que chegaram até ela para preconizá-la para todo mundo em absoluta e arrogante segurança? A realidade é exatamente o que vocês vêem? Não há outras realidades, só a que vocês determinam como realidade? Mas que mania de querer convencer-me daquilo que vocês julgam que sabem!

Então quer dizer que vocês chegaram à verdade e eu não? Os caminhos de vocês são os corretos e os meus não? Quer dizer que eu preciso de intermediários para chegar à verdade, e os intermediários são vocês? Então eu devo entre dezenas, centenas de gênios que mortificaram suas vidas em busca do conhecimento escolher dentre eles uns 2 ou 3 como corretos e desprezar todos os outros? E, coincidentemente, esses 2 ou 3 gênios que devo escolher para seguir são os mesmos que vocês escolheram?

Então vocês intentaram com sua sabedoria resolver o mundo, salvar a humanidade, não fizeram nada disso, mas querem que eu acredite que vocês estão certos? Intentaram, com a limitação de seus conhecimentos, limitar o que é infinito, enquadrar tudo o que é misterioso dentro de seus miseráveis conceitos, emparedar o eterno dentro de suas diretrizes egoístas, intentaram podar todos os sonhos, massacrar todas as esperanças, reduzir a vida a um punhado de teorias mecânicas, e agora vêm com esses sorrisos estúpidos e hipócritas me dizer que eu devo segui-los?

O que foi que vocês fizeram com suas sabedorias? O que foi que construíram? Um mundo desesperado? Uma vida sem nenhum sentido? O conhecimento de vocês só serviu para deixar claro que todo o sentido da vida é o dinheiro ou tudo o que ele pode adquirir, isto é, tudo o que é material? Como vocês querem uma humanidade justa, equilibrada, harmoniosa, se vocês pregam que não há justiça, nem equilíbrio, nem harmonia nas existências universais?

Os frutos da sua sabedoria é esse mundo que aí está? Então o mais alto conhecimento é aquele que destrói o planeta? É aquele que aniquila as almas? É aquele que por pregar que a alma é uma ilusão julgou que poderia explorar até o esgotamento toda a vida natural? Combateram crenças fanáticas com outras crenças fanáticas? Tentaram destronar os que ditavam leis para sentar no trono deles e ditar as suas leis? Tentaram sair da escuridão com uma ciência que mergulhou o mundo em treva? A treva do Fim! Fizeram crer que as verdades dos gênios das artes não passam de ilusão e depois ainda vêm falar-me de arte? Querem que eu acredite que a arte é inútil? E a sua ciência materialista a salvação?

Vocês sentem o que eu sinto, vêem o que eu vejo, percebem o que eu percebo? Não? Então por que querem que eu sinta, veja e perceba como vocês? Quer dizer então que se eu tenho asas devo cortá-las porque vocês não as têm? Quer dizer que o que vocês não sabem mais ninguém pode saber? Que se vocês acreditarem que algo não existe, definitivamente esse algo não pode existir?

Na lógica de vocês, muito mais valeria a pena viver para satisfazer prazeres, um absoluto hedonismo, cujos únicos valores seriam o do dinheiro. É assim que vive a humanidade. Sim, para que fazer mais do que isso se tudo irá se perder no dia da morte? Não viver dessa forma seria uma incoerência na sua lógica. E depois ainda vêm me falar de contradições? Na lógica de vocês, a sabedoria não pode valer a pena. Se tudo é injusto, se a lei de ação e reação não age em nossas vidas, se tudo é por acaso, se nada tem um sentido, se a felicidade de uma pessoa é medida pelos bens físicos que adquiriu, pela saúde que teve, pela sua beleza física, pelos prazeres que viveu, para que sabedoria? Para depois de se abarrotar com ela, morrer e jogá-la fora, deixar que ela apodreça com nosso corpo?

Se é assim, não vale a pena buscá-la, e a pessoa de vida mais correta seria alguém como a Gisele Bündchen, ou como o Ronaldinho, ou como qualquer gângster por aí. Sim. Se nada tem sentido, a sabedoria teria muito menos. Sabedoria deve servir para se ensinar a amar. Se no universo não há leis, leis que valem para todas as vidas, se não há justiça, se não há equilíbrio, se não há sentido para as coisas, se tudo veio por acidente, então também não há amor. Se não há amor no universo, então para que amarmos entre nós? E se não se é possível amar, então não há motivos para a sabedoria.
Então, não me venham com as suas sabedorias. A sabedoria que busco é outra. É como disse José Régio:

"Vem por aqui"
- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...”