Ao coaxar de sapos exaustos uma canção estranhamente triste foi alçando seu voo esgotado. Ninguém a ouvia... Subia como um incenso pesado, denso, nervoso. Um incenso de odor carregado e pálido. Talvez não um incenso, talvez uma fumaça tensa, um fumo de um cigarro cósmico lentamente consumido e golfejado pela garganta. Será que só eu estava ali?
A nuvem cinza que surgiu por sobre o cinamomo amarelado não era simpática. Havia algo de alerta nela. O sol era mortiço, adoentado, insalubre. Causava-me uma febre desanimante, mas a nuvem não ousava cobrir aquele sol enfermiço. Ainda. E como era longa aquela nuvem. Por mais que eu tentasse, eu não conseguia avistar o seu fim. E como ela pairava em uma extrema e angustiante lentidão... Deitei-me no chão e comecei a me arrastar, erguendo pesada e dificultosamente os braços. Como tudo era difícil pra mim. Eu não queria ouvir aqueles lamentos, mas eles queriam que eu os ouvisse. Como eu não sou ninguém, necessitei ouvi-los. E cada vez mais cinza era a nuvem. Aquela canção incessante de uma insuportável tristeza de Poe aliou-se aos nimbos sem sorte. Talvez fosse ela própria. E nos horizontes anômalos soou uma marcha cansada...
Vermelhos. Eram agora escarlates os horizontes. Lembrei-me da febre escarlatina e das feridas da peste bubônica. Era de lá que partiam agourentas as notas da marcha cansada. Compasso quatro por quatro, e o exército de pesadelos caminhava junto. Extenuado. Eu arrastava-me, cantando canções de compositores já mortos. Não sei por que, voava nas asas dos urubus a solene tranquilidade escura que precede as tempestades. E os passos cresciam em intensidade. Pesados. Noturnos. Tambores.
“Réquiem do Sol”! gritou-me Cruz e Sousa. Quem é que acordava comigo? O bafo de um lobo negro gelou-me o sangue. Fixei minha mente nos seus olhos. Só tristeza eu encontrei por lá. Tristeza e cansaço. Cansaço e crepúsculo. O lobo suicidou-se no galho seco do cinamomo. Sol febrento, que dá ânsias de vômito. Senti náuseas. Não me sinto bem. Do lado do cinamomo nasce um cipreste. Cinza. Quase negro como a nuvem, agora quase negra. A paz pressaga que precede as tormentas. Os raios longínquos, distantes como o teu amor. A Marcha! Os trovões como os sussurros das promessas que não foram. Tua alma olhando doce pela porta noturna da “mão fatal que escreveu na minha vida...” Árvores... de Azevedo onde azedam meus sonhos.
Trovões distantes. Sonatas de corvos. Cios de gatos sem gatas. Terra vermelha dos cemitérios da campanha. Uma cruz caiu e ninguém juntou. Será que só eu estou aqui? Quem canta seus males espanta, quem canta seus males espanta, quem canta seus males espanta... Fúnebre. Lúgubre. Marcha. Tímpanos soando como caveiras que batem em tambores. Quem é que vem? Está longe ou já vem perto? Perto? Um deserto! se estendeu por sobre o sangue. Nem agora vais sangrar na minha boca? Deus! Começou a soprar aquele vento! Brisa leve e fria, brisa leva e ria, brisa calma que precede os temporais. Não mais... Nunca mais.
Os vossos risos calaram-se como cala a madame confiante que é assaltada na noite. Vento mais forte, que cresce e ressurge como os passos, como o som de botas velhas e sujas, como um sorro que foge em desespero pelo campo seco mergulhado em ocaso. O sol enfermiço sumiu. E o vento cresce como o cipreste negro. Quem é que olhou para trás? Mais frio. Que olho estranho, soturno em pânico, inquietante, absurdo, profundo como tudo o que não foi! Saudades... Meu Deus, quem foi que olhou, quem foi? Que angústia infinita e exausta nunca para de chorar? Uma gota de chuva nos meus lábios. Até quando? De quem era aquele olho? Por que eu sozinho aqui? O que foi que eu fiz? O sangue gradativamente coagula-se, e só eu escuto o coaxar dos sapos. Assombra como cresceram os ventos. Furacão! A Sombra... Alguma coisa voou...
Na noite eclipsada pairou um anjo. Não consigo ver se suas asas são de coruja ou de morcego. Não era um anjo, mas um arcanjo. Som de patas. Cavalos. Lentos. Espadas desembainhando-se. O arcanjo pousou sobre o cipreste. Ele bem que me disse que pousaria... Relinchar de cavalos... Marcha... Do relógio berraram meia-noite. Subiu o vapor negro de um rio...
Segundo movimento da 3ª Sinfonia de Beethoven. Tu não quiseste ouvir comigo. Medo... Marcha extremamente lenta. Mas Marcha... Mas Morte. Ouço passos pesados no tempo... É assim que caminha a humanidade...
08 janeiro 2009
07 janeiro 2009
Pragmatha
O Caderno Literário Pragmatha em breve estará em sua 12ª edição, com o tema "vinhos". O Pragmatha é um caderno virtual de divulgação poética oriundo de Porto Alegre que já conta com milhares de assinantes e é divulgado entre diversas entidades, escolas, agremiações literárias de todo o Brasil. É aberto a qualquer poeta de qualquer região do país, muito embora exista uma seleção para a publicação dos poemas enviados. A temática é sugerida, não obrigatória. Maiores informações pelo e-mail: sandra.veroneze@pragmatha.com.br
06 janeiro 2009
Poema Nulo
como todos os outros
todos os outros meus
talvez todos mais que os meus
talvez ser nulo é ser poema
um ser nulo é um ser poeta
que o que sinto penso e digo
nunca será contigo
que o que sinto penso e escrevo
jamais será o que devo
e se um dia meu martelo
poder bater em tua porta
será claro: estará morta
adoeci-me sentindo
sentindo sem sentido
pra não curar ninguém
que curar ninguém queria
nem eu queria também
e tudo aquilo que não disse
talvez fosse o meu dever
falei por mim e fiz por nada
suicidei-me sem morrer
senti na pele não ser Deus
velando a dor de todo um mundo
e ouvi ao fim de umas senhoras:
“quem faz verso é vagabundo...”
mas sempre dará muitas voltas
as curvas do Espaço-Tempo
em suas não-curvadas
revoltas
todos os outros meus
talvez todos mais que os meus
talvez ser nulo é ser poema
um ser nulo é um ser poeta
que o que sinto penso e digo
nunca será contigo
que o que sinto penso e escrevo
jamais será o que devo
e se um dia meu martelo
poder bater em tua porta
será claro: estará morta
adoeci-me sentindo
sentindo sem sentido
pra não curar ninguém
que curar ninguém queria
nem eu queria também
e tudo aquilo que não disse
talvez fosse o meu dever
falei por mim e fiz por nada
suicidei-me sem morrer
senti na pele não ser Deus
velando a dor de todo um mundo
e ouvi ao fim de umas senhoras:
“quem faz verso é vagabundo...”
mas sempre dará muitas voltas
as curvas do Espaço-Tempo
em suas não-curvadas
revoltas
05 janeiro 2009
Dos Melhores Poemas
O poema abaixo, escrito pelo poeta português José Régio e publicado em seu livro Poemas de Deus e do Diabo é, para mim, um dos melhores poemas criados no século XX. Sem hesitações, eu elegeria esta obra como um dos lemas de minha vida.
Cântico Negro
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí.
José Régio
Cântico Negro
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí.
José Régio
03 janeiro 2009
Richard Wagner - Apocalipse Musical
O compositor alemão Richard Wagner (1813 – 1883) foi o criador de uma das mais intensas e poderosas obras musicais de todos os tempos, encarnou de forma perfeita e transcendente todo o terrível romantismo germânico e tornou-se um dos mais expressivos gênios artísticos da história.
Wagner foi um revolucionário da arte, um homem dotado de elevados ideais que procurou concretizá-los através da expressão da Arte Total. Esta uniria a música, a literatura e o teatro de forma perfeitamente integrada, indissociável e harmônica, criando então o majestoso “Drama Wagneriano”, com o qual Wagner forçou e derrubou as barreiras musicais, transcendendo a música tonal para atingir o delírio fantástico da atonalidade, onde a melodia se dilui em um universo imaterial, na denominada “Melodia Infinita”. Nela, a sensação de que nunca vai acabar hipnotiza nossos ouvidos em uma sublime magia devastadora.
O Drama Wagneriano consiste em um novo tipo de ópera, muito mais potente, violenta, profunda e envolvente que as óperas italianas, as quais antes de Wagner dominavam o mundo operístico. Wagner tornou a ópera uma obra de arte completa, uma vez que, também sendo poeta, o músico alemão escrevia suas próprias letras (o que dificilmente ocorre nas óperas), baseando a grandiosidade de seus textos nas mitologias nórdica e celta e em vastos conhecimentos de literatura, ocultismo e filosofia.
A força avassaladora de sua música, a ensurdecedora potência de suas gigantescas massas orquestrais e de seus coros, a magia e dramaticidade enlouquecedoras de seus cantores jamais foram igualados no mundo musical, raras composições são capazes de despertar tanta força interior no ouvinte. Não foi em vão que Hitler regava seus exércitos com as óperas wagnerianas, para embriagá-los de força e poder antes das batalhas. Um uso equivocado da capacidade da música do gênio. Ainda que Wagner fosse declaradamente anti-semita (algo muito comum no século XIX), sua discordância contra os judeus era unicamente no campo ideológico, discordava de seus interesses materiais e financeiros, jamais pregou a violência contra os mesmos, possuindo amigos judeus, inclusive.
Wagner também foi um grande amigo do filósofo Nietzsche. Este chegou a declarar-se um seguidor de Wagner, um discípulo dele, até que romperam por questões ideológicas. A verdade é que Wagner sempre esteve um degrau à frente de Nietzsche. Enquanto o filósofo, que preconizava a possibilidade do “super-homem”, algo já inerente ao drama wagneriano, morreu na miséria, doente e louco, cedendo ao seu destino “demasiado humano”, Wagner triunfou sobre todos seus obstáculos pessoais e profissionais, impondo sua obra ao mundo, nesse ponto, aproximando-se realmente do “super-homem”.
Entre as principais obras de Wagner está a ópera “Tristan und Isolde”, baseada na lenda céltica. Um hino absurdamente intenso à loucura do amor trágico, uma música sombria, tempestuosa, demente, inflamada, carregada de uma dilacerante magia que rompe as barreiras físicas e espirituais da música, levando-nos a um outro universo de sublimidade e horror.
Mas sua obra mais ambiciosa é a tetralogia de “O Anel do Nibelungos”, baseada na grandiosa e trágica mitologia nórdica. Trata-se da mais colossal obra musical já criada, totalizando mais de 15 horas de duração, dividida em 4 óperas de um força sobrenatural e feérica, um poder insano e devastador, de uma dramaticidade jamais vista. A saga do “Anel” influenciou Tolkien em “O Senhor dos Anéis”, e o trecho da tetralogia wagneriana, “A Cavalgada das Walkirias” serviu de trilha sonora para o filme “Apocalipse Now”. Nada mais adequado, afinal, o Drama Wagneriano, se resumido em uma só palavra, seria certamente: “Apocalíptico!”
Wagner foi um revolucionário da arte, um homem dotado de elevados ideais que procurou concretizá-los através da expressão da Arte Total. Esta uniria a música, a literatura e o teatro de forma perfeitamente integrada, indissociável e harmônica, criando então o majestoso “Drama Wagneriano”, com o qual Wagner forçou e derrubou as barreiras musicais, transcendendo a música tonal para atingir o delírio fantástico da atonalidade, onde a melodia se dilui em um universo imaterial, na denominada “Melodia Infinita”. Nela, a sensação de que nunca vai acabar hipnotiza nossos ouvidos em uma sublime magia devastadora.
O Drama Wagneriano consiste em um novo tipo de ópera, muito mais potente, violenta, profunda e envolvente que as óperas italianas, as quais antes de Wagner dominavam o mundo operístico. Wagner tornou a ópera uma obra de arte completa, uma vez que, também sendo poeta, o músico alemão escrevia suas próprias letras (o que dificilmente ocorre nas óperas), baseando a grandiosidade de seus textos nas mitologias nórdica e celta e em vastos conhecimentos de literatura, ocultismo e filosofia.
A força avassaladora de sua música, a ensurdecedora potência de suas gigantescas massas orquestrais e de seus coros, a magia e dramaticidade enlouquecedoras de seus cantores jamais foram igualados no mundo musical, raras composições são capazes de despertar tanta força interior no ouvinte. Não foi em vão que Hitler regava seus exércitos com as óperas wagnerianas, para embriagá-los de força e poder antes das batalhas. Um uso equivocado da capacidade da música do gênio. Ainda que Wagner fosse declaradamente anti-semita (algo muito comum no século XIX), sua discordância contra os judeus era unicamente no campo ideológico, discordava de seus interesses materiais e financeiros, jamais pregou a violência contra os mesmos, possuindo amigos judeus, inclusive.
Wagner também foi um grande amigo do filósofo Nietzsche. Este chegou a declarar-se um seguidor de Wagner, um discípulo dele, até que romperam por questões ideológicas. A verdade é que Wagner sempre esteve um degrau à frente de Nietzsche. Enquanto o filósofo, que preconizava a possibilidade do “super-homem”, algo já inerente ao drama wagneriano, morreu na miséria, doente e louco, cedendo ao seu destino “demasiado humano”, Wagner triunfou sobre todos seus obstáculos pessoais e profissionais, impondo sua obra ao mundo, nesse ponto, aproximando-se realmente do “super-homem”.
Entre as principais obras de Wagner está a ópera “Tristan und Isolde”, baseada na lenda céltica. Um hino absurdamente intenso à loucura do amor trágico, uma música sombria, tempestuosa, demente, inflamada, carregada de uma dilacerante magia que rompe as barreiras físicas e espirituais da música, levando-nos a um outro universo de sublimidade e horror.
Mas sua obra mais ambiciosa é a tetralogia de “O Anel do Nibelungos”, baseada na grandiosa e trágica mitologia nórdica. Trata-se da mais colossal obra musical já criada, totalizando mais de 15 horas de duração, dividida em 4 óperas de um força sobrenatural e feérica, um poder insano e devastador, de uma dramaticidade jamais vista. A saga do “Anel” influenciou Tolkien em “O Senhor dos Anéis”, e o trecho da tetralogia wagneriana, “A Cavalgada das Walkirias” serviu de trilha sonora para o filme “Apocalipse Now”. Nada mais adequado, afinal, o Drama Wagneriano, se resumido em uma só palavra, seria certamente: “Apocalíptico!”
01 janeiro 2009
Ah... A Luz do Infinito
a luz do infinito me bate na porta
ah a luz do infinito me bate com a porta
a luz que não tenho daria meu livro
vou ver se te vivo
a luz do infinito me mata minha morte
ah a luz do infinito me mata com a morte
a luz que não tenho é tudo que devo
vou ver se me escrevo
a luz do infinito já toca minha graça
ah a luz do infinito não toca com graça
a luz que não tenho me toca um noturno
vou ver se me durmo
a luz do infinito tem asas que sorvo
ah a luz do infinito tem asas de corvo
a luz que não tenho é um poço sem mastro
vou ver se te astro
a luz dos teus olhos é toda minha vida
a luz dos meus olhos é toda sem vida
a luz que não tenho me foge se corro
vou ver se me morro
ah a luz do infinito me bate com a porta
a luz que não tenho daria meu livro
vou ver se te vivo
a luz do infinito me mata minha morte
ah a luz do infinito me mata com a morte
a luz que não tenho é tudo que devo
vou ver se me escrevo
a luz do infinito já toca minha graça
ah a luz do infinito não toca com graça
a luz que não tenho me toca um noturno
vou ver se me durmo
a luz do infinito tem asas que sorvo
ah a luz do infinito tem asas de corvo
a luz que não tenho é um poço sem mastro
vou ver se te astro
a luz dos teus olhos é toda minha vida
a luz dos meus olhos é toda sem vida
a luz que não tenho me foge se corro
vou ver se me morro
28 dezembro 2008
Mas...
“Ah, mas então tudo será baldado?
Tudo desfeito e tudo consumido?”
Cruz e Sousa
mas então
restará só uma promessa
pairando impassível
sobre o branco impossível do nada?
sentidos de alma
pedaços de estrela
tormentas de olhos
distâncias de amor
voando em vazio?
tuas asas não batem?
tua estrada não leva?
tuas flores não cheiram?
teu canto não canta?
e os altos de campos de sóis pelos cosmos?
e os lagos de olhares que um dia subi-me?
e os beijos nos ares que em sonho encontrei-te?
e as luzes eternas do Réquiem em que vivo?
mas então...
não?
Tudo desfeito e tudo consumido?”
Cruz e Sousa
mas então
restará só uma promessa
pairando impassível
sobre o branco impossível do nada?
sentidos de alma
pedaços de estrela
tormentas de olhos
distâncias de amor
voando em vazio?
tuas asas não batem?
tua estrada não leva?
tuas flores não cheiram?
teu canto não canta?
e os altos de campos de sóis pelos cosmos?
e os lagos de olhares que um dia subi-me?
e os beijos nos ares que em sonho encontrei-te?
e as luzes eternas do Réquiem em que vivo?
mas então...
não?
25 dezembro 2008
Junqueira Freire (1832 - 1855)
Junqueira Freire é um dos poetas brasileiros incluídos em nosso Ultra-romantismo. É bem pouco conhecido, até mesmo pelos fãs da literatura sombria. No entanto, sua pequena produção poética, justificada em parte pela sua morte precoce (23 anos), se não é das mais originais e maduras, revela uma intensidade de vivência emocional e um profundo conhecimento dos conflitos que massacram a alma humana. O poema abaixo reflete de forma radical e definitiva uma visão inconsolável da desesperança do homem perdido dentro de um mundo aniquilador dos altos sentimentos.
DESEJO
(Hora do Delírio)
Se além dos mundos esse inferno existe,
Essa pátria de horrores,
Onde habitam os tétricos tormentos,
As inefáveis dores;
Se ali se sente o que jamais na vida
O desespero inspira:
Se o suplício maior, que a mente finge,
A mente ali respira;
Se é de compacta, de infinita brasa
O solo que se pisa:
Se é fogo, e fumo, e súlfur, e terrores
Tudo que ali se visa;
Se ali se goza um gênero inaudito
De sensações terríveis;
Se ali se encontra esse real de dores
Na vida não possíveis;
Se é verdade esse quadro que imaginam
As seitas dos cristãos;
Se esses demônios, anjos maus, ou fúrias,
Não são uns erros vãos
Eu - que tenho provado neste mundo
As sensações possíveis;
Que tenho ido da afeição mais terna
Às penas mais incríveis;
Eu - que tenho pisado o colo altivo
De vária e muita dor;
Que tenho sempre das batalhas dela
Surgido vencedor;
Eu - que tenho arrostado imensas mortes,
E que pareço eterno;
Eu quero de uma vez morrer para sempre,
Entrar por fim no inferno!
Eu quero ver se encontro ali no abismo
Um tormento incrível:
- Desses que achá-los nas existência toda
Jamais será possível!
Eu quero ver se encontro alguns suplícios,
Que o coração me domem;
Quero lhe ouvir esta palavra incógnita:
- "Chora por fim, - que és homem!"
Que, de arrostar as dores desta vida,
Quase pareço eterno!
Estou cansado de vencer o mundo,
Quero vencer o inferno!
Junqueira Freire
DESEJO
(Hora do Delírio)
Se além dos mundos esse inferno existe,
Essa pátria de horrores,
Onde habitam os tétricos tormentos,
As inefáveis dores;
Se ali se sente o que jamais na vida
O desespero inspira:
Se o suplício maior, que a mente finge,
A mente ali respira;
Se é de compacta, de infinita brasa
O solo que se pisa:
Se é fogo, e fumo, e súlfur, e terrores
Tudo que ali se visa;
Se ali se goza um gênero inaudito
De sensações terríveis;
Se ali se encontra esse real de dores
Na vida não possíveis;
Se é verdade esse quadro que imaginam
As seitas dos cristãos;
Se esses demônios, anjos maus, ou fúrias,
Não são uns erros vãos
Eu - que tenho provado neste mundo
As sensações possíveis;
Que tenho ido da afeição mais terna
Às penas mais incríveis;
Eu - que tenho pisado o colo altivo
De vária e muita dor;
Que tenho sempre das batalhas dela
Surgido vencedor;
Eu - que tenho arrostado imensas mortes,
E que pareço eterno;
Eu quero de uma vez morrer para sempre,
Entrar por fim no inferno!
Eu quero ver se encontro ali no abismo
Um tormento incrível:
- Desses que achá-los nas existência toda
Jamais será possível!
Eu quero ver se encontro alguns suplícios,
Que o coração me domem;
Quero lhe ouvir esta palavra incógnita:
- "Chora por fim, - que és homem!"
Que, de arrostar as dores desta vida,
Quase pareço eterno!
Estou cansado de vencer o mundo,
Quero vencer o inferno!
Junqueira Freire
23 dezembro 2008
13 Versos
Trago nos olhos uma marcha fúnebre
à humanidade que caminha pútrida,
e a mão que acena de caveira esquálida
a um hino roxo de um final que é trágico.
A tua desgraça, ó mundo humano, é júbilo
pra quem de horror já traz em lava o espírito
e viu à morte os altos gênios - mártires!
que pra te erguer verteram sangue e lágrimas.
Homem acabado, sinto miasma e túmulo
pra te enterrar em teu dantesco báratro
e erguer a flâmula em teu lixo cósmico.
A ti eu deixo o meu adeus de Hercólubus
e parto só pra contemplar o Término.
à humanidade que caminha pútrida,
e a mão que acena de caveira esquálida
a um hino roxo de um final que é trágico.
A tua desgraça, ó mundo humano, é júbilo
pra quem de horror já traz em lava o espírito
e viu à morte os altos gênios - mártires!
que pra te erguer verteram sangue e lágrimas.
Homem acabado, sinto miasma e túmulo
pra te enterrar em teu dantesco báratro
e erguer a flâmula em teu lixo cósmico.
A ti eu deixo o meu adeus de Hercólubus
e parto só pra contemplar o Término.
18 dezembro 2008
No Zero Hora
Foi uma honra para mim hoje ver um de meus poemas publicados no Almanaque Gaúcho do jornal Zero Hora, e ao lado uma foto e um comentário sobre Luiz de Miranda, um dos maiores poetas gaúchos da atualidade, poeta de intensa inspiração, como bem provam suas temáticas fortes e seu estilo contundente. E ainda fiquei sabendo que ele é o poeta que mais publicou poemas no mundo! Incrível! Ao lado, a página do jornal com meu poema e com o comentário sobre Luiz de Miranda. Agradeço ao Zero Hora e ao Almanaque Gaúcho pela publicação.
O quê?
não entenda nada do que digo
não digo nada para ser entendido
o nada é o que tenho a dizer
que eu nada tenho de nada
e meu nada tem só dúvida
eu todo sou nada e dúvida
pergunta de nada no cosmos...
veia de sonhos rebentou-me nos olhos
desejo último em cadeira elétrica
beijo de lâmina ao lábio enforcado
teu olho brilhou-me em aviso de raios
onde caiu tudo o que eu soube?
clarão de ocaso antes da noite
canto de cisne antes da chuva
vela de rosas acesa em tormenta
por onde é que voa tudo que eu verso?
um sopro de urgência tua alma me traz
mas em cuspes de deuses jamais te confessas
onde é afinal que tu estás?
dá-me tua mão ou as tuas promessas...
não digo nada para ser entendido
o nada é o que tenho a dizer
que eu nada tenho de nada
e meu nada tem só dúvida
eu todo sou nada e dúvida
pergunta de nada no cosmos...
veia de sonhos rebentou-me nos olhos
desejo último em cadeira elétrica
beijo de lâmina ao lábio enforcado
teu olho brilhou-me em aviso de raios
onde caiu tudo o que eu soube?
clarão de ocaso antes da noite
canto de cisne antes da chuva
vela de rosas acesa em tormenta
por onde é que voa tudo que eu verso?
um sopro de urgência tua alma me traz
mas em cuspes de deuses jamais te confessas
onde é afinal que tu estás?
dá-me tua mão ou as tuas promessas...
15 dezembro 2008
As Almas do Fantástico na História do RS - História 4ª: A Picada
Aproximava-se das 4h da tarde quando atingi a beira da sanga que corta os campos de meu avô. Desde o amanhecer havia algo de anormal naquele dia. O sol e o calor eram intensos demais, mesmo para o mês de março. Não havia o mínimo vento, a mínima brisa. Mas não era o clima físico que causava a anormalidade, porém o clima psicológico. Não que ele fosse negativo, ominoso, agourento, nada disso. Era simplesmente estranho, esquisito, anormal, anômalo, inexplicável, carregado de indefiníveis sensações perturbadoras. Existem sensações que não se consegue, que não se pode, que não se deve explicar. Tão-somente sentir. E eu as sentia de forma contundente em minha alma intuitiva e atormentada.
E sentia-me bem à beira daquela sanga de águas puras e límpidas, sob a sombra densa e benfazeja das árvores frondosas, entrecortadas pelos raios do sol impiedoso. Do local onde me encontrava havia uma forte, mas rasa, correnteza sobre uma grande quantidade de pedras e lajes de variados tamanhos. Ali, o número de aves era incomum, eu ouvia uma imensa diversidade de cantos, alguns bastante diferentes, os quais contribuíam para tornar ainda mais inquietante o clima de estranheza que pairava por aquelas atmosferas abafadas...
Sentei-me em uma das grandes pedras e respirei fundo, deixando-me levar pelo furacão de sensações que sempre se debate em minha alma. Percebi que estava com febre. Um torpor delicioso e violento inflamou-me a psique. Encontrava-me nesse misto de tormento e prazer que mal consigo definir. E que muito menos consigo adivinhar suas causas, suas origens. Apenas sei que as sentia e que meus sentimentos tomavam todo meu ser... E isso me basta. Caía a influência daquele dia estranho sobre a minha estranha psique. E eu voando afundava-me em pensamentos e emoções insensatas e absurdas.
Nesse instante soprou-me a única brisa do dia. Uma brisa quente, férvida, inflamada... Havia auras anômalas naquele sopro incendiado. Ouvi passos na mata. Desci-me de meu vôo e alertei-me. Uma jovem aproximava-se da sanga carregando uma sacola repleta de roupas. Minha febre talvez tenha aumentado. Seus longos cabelos castanhos e lisos caiam sobre um vestido claro um tanto simples, bastante adequado à sua beleza deslumbrante de naturalidade. Ao ver-me, a moça não se surpreendeu, como se já esperasse que eu estivesse ali. Chegou ao local onde eu me encontrava, saudou-me com uma familiaridade incompreensível para alguém desconhecido. Eu jamais a havia visto. Perguntei seu nome. Ela largou a sacola, sentou-se em uma pedra bastante próxima a mim e principiou a lavar as roupas nas intensas águas da correnteza.
- Isabela. Tu não lembras de mim?
- Não. Desculpa, mas sinceramente não. Nós nos conhecemos?
- Sim. Já há um bom tempo... Mas deixa pra lá, se não lembras, tudo bem, eu entendo. Outra hora tu irás lembrar. Vamos falar de outras coisas. Gostas deste lugar?
Iniciamos então uma conversa absurdamente delirante. É desnecessário mencionar o que falamos. Porém é necessário dizer que tratamos de assuntos e palavras de uma forma tão natural e com uma intimidade tão completa que me arrebatou de um assombro quase sobrenatural. Seus olhares profundos e hipnotizantes fizeram com que eu perdesse a noção de tempo e espaço. Sua voz doce e melodiosa parecia provir de regiões desconhecidas do cosmos e enlevava-me como uma música estranha e carregada de uma indecifrável magia. Pensei em coisas e existências que não sei nomear. Conforme avançávamos em nossa conversa, essas palavras penetravam como a embriaguez do vinho em minha mente e coração. Eu me sentia flutuar pelas águas cristalinas daquela sanga, ou então me via levado pelas brisas mornas do verão do pampa, ou mergulhava no verde infinito de matas simultaneamente reais e imaginárias... Em alguns momentos o som da voz de Isabela confundia-se com o canto dos pássaros, e eu já não sabia distinguir um do outro. Lembro-me de ter dito um rio de palavras para a bela moça, porém, não lembro de absolutamente nenhuma delas com precisão, muito embora os temas fantásticos das mesmas ainda ecoem romântica e fatalmente em minha alma... Por entre as frases nebulosas que de Isabela ouvia, sentia lâminas de desejo cortarem meu coração; minha febre se intensificava e um delírio sublime jogava-me sonhando por aquelas atmosferas quentes, estranhas e intuitivas.
Após lavar todas as roupas, Isabela recolocou-as na sacola e partiu calmamente por entre a mata, enquanto eu aos poucos deixava meu estado de entorpecimento psíquico.
Encontramo-nos no mesmo local cerca de um mês depois. Dessa vez ela não levava roupas para lavar. Trajava um vestido que se assemelhava bastante a um de prenda, intensamente vermelho. Era como se houvéssemos marcado um encontro, porém não havíamos marcado. Não sei o que aconteceu durante as várias horas que estive na presença da moça. Digo que realmente não sei. Tão-somente lembro de que ali se encontrava um urutau pousado em um galho, e que a ave cantava em inusitado desvario. Creio que um sorro também gritou em algum canto. Fora isso, era como se nada mais houvesse ocorrido, apenas um sonho insano e absurdo sem lembranças específicas, apenas vagos rumores enevoados. Até que viera o beijo...
Sim, de sua boca plena de sons indefiníveis, senti um beijo em forma de ciclone. Estou certo que sua boca permaneceu colada à minha por horas, não obstante eu não possuísse a mínima noção de tempo ou espaço. Eu não estava ali, eu não existia, eu apenas estava com ela. Naqueles instantes ocultos de um beijo absurdo, minha mente navegava pela imensidão do pampa gaúcho, eu mergulhava na alma das coxilhas cheirando a flores, viajava em colossais cavalos por campos intermináveis, por entre matas orvalhadas, comunicava-me com animais que não mais existiam. Sob um céu azul e frio pairavam corvos com anjos sombrios, enquanto sangas, córregos e rios pareciam fervilhar em minhas veias. E tudo fluía de seus lábios, de sua boca, de seu beijo. Não sei por que, eu captei rumores celestes e infernais, e uma tempestade de sonhos enlouquecia-me no alto de um cerro vertiginoso. Então, olhando-me doce e espiritualmente, Isabela, em estranha suavidade, retirou lentamente seus lábios dos meus. Levantou-se e partiu, sem dizer palavra e em perturbadora serenidade, pela escuridão da mata. Já era noite.
(...)
Sim, meu avô, agora eu entendo o que me disseste. Deixei-lhe este relato porque vou partir com ela. Quando naquele fim de verão eu percorria os seus vastos campos, meu querido avô, eu senti que algo de anômalo pairava nas inquietantes atmosferas. Hoje, completam-se seis meses desde que recebi o absurdo e delirante beijo de Isabela. Desde então, vi-a por mais três vezes, e minha decisão está tomada. Eu sei, o senhor vai dizer que enlouqueci, que ela conseguiu seus objetivos, que me hipnotizou inexoravelmente com seu funesto poder, que pagarei com a morte a minha insanidade... Isso o senhor dirá, meu avô, mas eu não me preocupo. Provavelmente, isso tudo é verdade, talvez eu morra sob a influência da estranha mulher... Porém, morte ainda pior seria continuar vivendo entre os humanos sem ela.
É claro, como o senhor havia me alertado, talvez ela não seja uma mulher. Talvez ela seja um daqueles espíritos femininos que há milênios habitam as regiões isoladas do pampa, uma oculta alma da natureza, um daqueles elementais fantasmagóricos que em alguns momentos de suas misteriosas existências decidem encontrar uma vítima para levar para seu mundo inaceitável. E talvez tenha sido eu uma dessas vítimas. Desconheço por que eu seria um dos raros escolhidos... Talvez pela minha tendência doentia para a fantasia e para a mórbida imaginação... No entanto, provavelmente deverei morrer para acompanhá-la por regiões desconhecidas, e depois... Bem, depois nem mesmo o senhor soube me dizer o que aconteceria comigo...
Mas se assim for, tudo ocorrerá da maneira mais natural possível. O senhor encontrará meu corpo caído na beira da sanga. Eu terei morrido envenenado. Haverá um ferimento em minha perna, as marcas dos dentes de uma serpente. E o mundo não saberá de nada, apenas que eu morri pela picada de uma cobra...
28 de novembro de 1959.
Assina: Miguel Francisco Paiva
E sentia-me bem à beira daquela sanga de águas puras e límpidas, sob a sombra densa e benfazeja das árvores frondosas, entrecortadas pelos raios do sol impiedoso. Do local onde me encontrava havia uma forte, mas rasa, correnteza sobre uma grande quantidade de pedras e lajes de variados tamanhos. Ali, o número de aves era incomum, eu ouvia uma imensa diversidade de cantos, alguns bastante diferentes, os quais contribuíam para tornar ainda mais inquietante o clima de estranheza que pairava por aquelas atmosferas abafadas...
Sentei-me em uma das grandes pedras e respirei fundo, deixando-me levar pelo furacão de sensações que sempre se debate em minha alma. Percebi que estava com febre. Um torpor delicioso e violento inflamou-me a psique. Encontrava-me nesse misto de tormento e prazer que mal consigo definir. E que muito menos consigo adivinhar suas causas, suas origens. Apenas sei que as sentia e que meus sentimentos tomavam todo meu ser... E isso me basta. Caía a influência daquele dia estranho sobre a minha estranha psique. E eu voando afundava-me em pensamentos e emoções insensatas e absurdas.
Nesse instante soprou-me a única brisa do dia. Uma brisa quente, férvida, inflamada... Havia auras anômalas naquele sopro incendiado. Ouvi passos na mata. Desci-me de meu vôo e alertei-me. Uma jovem aproximava-se da sanga carregando uma sacola repleta de roupas. Minha febre talvez tenha aumentado. Seus longos cabelos castanhos e lisos caiam sobre um vestido claro um tanto simples, bastante adequado à sua beleza deslumbrante de naturalidade. Ao ver-me, a moça não se surpreendeu, como se já esperasse que eu estivesse ali. Chegou ao local onde eu me encontrava, saudou-me com uma familiaridade incompreensível para alguém desconhecido. Eu jamais a havia visto. Perguntei seu nome. Ela largou a sacola, sentou-se em uma pedra bastante próxima a mim e principiou a lavar as roupas nas intensas águas da correnteza.
- Isabela. Tu não lembras de mim?
- Não. Desculpa, mas sinceramente não. Nós nos conhecemos?
- Sim. Já há um bom tempo... Mas deixa pra lá, se não lembras, tudo bem, eu entendo. Outra hora tu irás lembrar. Vamos falar de outras coisas. Gostas deste lugar?
Iniciamos então uma conversa absurdamente delirante. É desnecessário mencionar o que falamos. Porém é necessário dizer que tratamos de assuntos e palavras de uma forma tão natural e com uma intimidade tão completa que me arrebatou de um assombro quase sobrenatural. Seus olhares profundos e hipnotizantes fizeram com que eu perdesse a noção de tempo e espaço. Sua voz doce e melodiosa parecia provir de regiões desconhecidas do cosmos e enlevava-me como uma música estranha e carregada de uma indecifrável magia. Pensei em coisas e existências que não sei nomear. Conforme avançávamos em nossa conversa, essas palavras penetravam como a embriaguez do vinho em minha mente e coração. Eu me sentia flutuar pelas águas cristalinas daquela sanga, ou então me via levado pelas brisas mornas do verão do pampa, ou mergulhava no verde infinito de matas simultaneamente reais e imaginárias... Em alguns momentos o som da voz de Isabela confundia-se com o canto dos pássaros, e eu já não sabia distinguir um do outro. Lembro-me de ter dito um rio de palavras para a bela moça, porém, não lembro de absolutamente nenhuma delas com precisão, muito embora os temas fantásticos das mesmas ainda ecoem romântica e fatalmente em minha alma... Por entre as frases nebulosas que de Isabela ouvia, sentia lâminas de desejo cortarem meu coração; minha febre se intensificava e um delírio sublime jogava-me sonhando por aquelas atmosferas quentes, estranhas e intuitivas.
Após lavar todas as roupas, Isabela recolocou-as na sacola e partiu calmamente por entre a mata, enquanto eu aos poucos deixava meu estado de entorpecimento psíquico.
Encontramo-nos no mesmo local cerca de um mês depois. Dessa vez ela não levava roupas para lavar. Trajava um vestido que se assemelhava bastante a um de prenda, intensamente vermelho. Era como se houvéssemos marcado um encontro, porém não havíamos marcado. Não sei o que aconteceu durante as várias horas que estive na presença da moça. Digo que realmente não sei. Tão-somente lembro de que ali se encontrava um urutau pousado em um galho, e que a ave cantava em inusitado desvario. Creio que um sorro também gritou em algum canto. Fora isso, era como se nada mais houvesse ocorrido, apenas um sonho insano e absurdo sem lembranças específicas, apenas vagos rumores enevoados. Até que viera o beijo...
Sim, de sua boca plena de sons indefiníveis, senti um beijo em forma de ciclone. Estou certo que sua boca permaneceu colada à minha por horas, não obstante eu não possuísse a mínima noção de tempo ou espaço. Eu não estava ali, eu não existia, eu apenas estava com ela. Naqueles instantes ocultos de um beijo absurdo, minha mente navegava pela imensidão do pampa gaúcho, eu mergulhava na alma das coxilhas cheirando a flores, viajava em colossais cavalos por campos intermináveis, por entre matas orvalhadas, comunicava-me com animais que não mais existiam. Sob um céu azul e frio pairavam corvos com anjos sombrios, enquanto sangas, córregos e rios pareciam fervilhar em minhas veias. E tudo fluía de seus lábios, de sua boca, de seu beijo. Não sei por que, eu captei rumores celestes e infernais, e uma tempestade de sonhos enlouquecia-me no alto de um cerro vertiginoso. Então, olhando-me doce e espiritualmente, Isabela, em estranha suavidade, retirou lentamente seus lábios dos meus. Levantou-se e partiu, sem dizer palavra e em perturbadora serenidade, pela escuridão da mata. Já era noite.
(...)
Sim, meu avô, agora eu entendo o que me disseste. Deixei-lhe este relato porque vou partir com ela. Quando naquele fim de verão eu percorria os seus vastos campos, meu querido avô, eu senti que algo de anômalo pairava nas inquietantes atmosferas. Hoje, completam-se seis meses desde que recebi o absurdo e delirante beijo de Isabela. Desde então, vi-a por mais três vezes, e minha decisão está tomada. Eu sei, o senhor vai dizer que enlouqueci, que ela conseguiu seus objetivos, que me hipnotizou inexoravelmente com seu funesto poder, que pagarei com a morte a minha insanidade... Isso o senhor dirá, meu avô, mas eu não me preocupo. Provavelmente, isso tudo é verdade, talvez eu morra sob a influência da estranha mulher... Porém, morte ainda pior seria continuar vivendo entre os humanos sem ela.
É claro, como o senhor havia me alertado, talvez ela não seja uma mulher. Talvez ela seja um daqueles espíritos femininos que há milênios habitam as regiões isoladas do pampa, uma oculta alma da natureza, um daqueles elementais fantasmagóricos que em alguns momentos de suas misteriosas existências decidem encontrar uma vítima para levar para seu mundo inaceitável. E talvez tenha sido eu uma dessas vítimas. Desconheço por que eu seria um dos raros escolhidos... Talvez pela minha tendência doentia para a fantasia e para a mórbida imaginação... No entanto, provavelmente deverei morrer para acompanhá-la por regiões desconhecidas, e depois... Bem, depois nem mesmo o senhor soube me dizer o que aconteceria comigo...
Mas se assim for, tudo ocorrerá da maneira mais natural possível. O senhor encontrará meu corpo caído na beira da sanga. Eu terei morrido envenenado. Haverá um ferimento em minha perna, as marcas dos dentes de uma serpente. E o mundo não saberá de nada, apenas que eu morri pela picada de uma cobra...
28 de novembro de 1959.
Assina: Miguel Francisco Paiva
11 dezembro 2008
Não - Soneto
nas longas águas que enloucaram um vale
perdi estas cruzes todas elas vivas
me viram corvos perpassar nas línguas
eu tudo aquilo que não fui me lembro
caía um mundo sobre meus crepúsculos
ouvi de um selo que beijou-me em fronte
só eu sozinho sim vi de em fim a arte
mas um martelo mais letal me acerta
perdi perdões que não te arrependi-me
eu sou aquilo que não tive e mato
e os teus desejos que pedi sonhei-me
um cristo leu-me pra acenar caveira
e fui beijar-te em alto horror sublime:
te sinto em versos sem nenhum sentido...
perdi estas cruzes todas elas vivas
me viram corvos perpassar nas línguas
eu tudo aquilo que não fui me lembro
caía um mundo sobre meus crepúsculos
ouvi de um selo que beijou-me em fronte
só eu sozinho sim vi de em fim a arte
mas um martelo mais letal me acerta
perdi perdões que não te arrependi-me
eu sou aquilo que não tive e mato
e os teus desejos que pedi sonhei-me
um cristo leu-me pra acenar caveira
e fui beijar-te em alto horror sublime:
te sinto em versos sem nenhum sentido...
10 dezembro 2008
Um Poema do Mestre
A esperança, como um fósforo inda aceso
A esperança, como um fósforo inda aceso,
Deixei no chão, e entardeceu no chão ileso.
A falha social do meu destino
Reconheci, como um mendigo preso.
Cada dia me traz com que esperar
O que dia nenhum poderá dar.
Cada dia me cansa de Esperança ...
Mas viver é esperar e se cansar.
O prometido nunca será dado
Porque no prometer cumpriu-se o fado.
O que se espera, se a esperança é gosto,
Gastou-se no esperá-lo, e está acabado.
Quanta ache vingança contra o fado
Nem deu o verso que a dissesse, e o dado
Rolou da mesa abaixo, oculta a conta.
Nem o buscou o jogador cansado.
Fernando Pessoa
A esperança, como um fósforo inda aceso,
Deixei no chão, e entardeceu no chão ileso.
A falha social do meu destino
Reconheci, como um mendigo preso.
Cada dia me traz com que esperar
O que dia nenhum poderá dar.
Cada dia me cansa de Esperança ...
Mas viver é esperar e se cansar.
O prometido nunca será dado
Porque no prometer cumpriu-se o fado.
O que se espera, se a esperança é gosto,
Gastou-se no esperá-lo, e está acabado.
Quanta ache vingança contra o fado
Nem deu o verso que a dissesse, e o dado
Rolou da mesa abaixo, oculta a conta.
Nem o buscou o jogador cansado.
Fernando Pessoa
08 dezembro 2008
Menstruada
má...agoada
des/manchada em derr/amamentos
tu te purificas
ex/pulsando
trágica e catártica
lágrimas de útero
em alertas de término
tu te santi/ficas
em choros sanguino
lentos
lentos
pela tua pele
pelas tuas pernas
em rubras pétalas
das cho/rosas murchas
do jardim quente
do teu ventre
em chuvas...
eu absorvo
as tuas dores
melan
cólicas
des/manchada em derr/amamentos
tu te purificas
ex/pulsando
trágica e catártica
lágrimas de útero
em alertas de término
tu te santi/ficas
em choros sanguino
lentos
lentos
pela tua pele
pelas tuas pernas
em rubras pétalas
das cho/rosas murchas
do jardim quente
do teu ventre
em chuvas...
eu absorvo
as tuas dores
melan
cólicas
05 dezembro 2008
Além...
queria expressar
além de toda expressão
dizer o que não é
escrever o que não posso
fazer arte do absurdo
que o limite do que existe
não me é e não me basta
não me é tal alto o céu
não me é tão fundo o inferno
não é tão negro o negro
nem tão belo o belo
queria fixar palavras
que passassem ao outro lado
do infinito
que ficassem mais além
da eternidade
palavras
que não fossem palavras
que fossem o universo
em essência de verbo
queria dizer tudo
não dizendo nada...
enfim eu não queria
que as minhas palavras
falassem do teu beijo
queria que elas...
fossem a tua boca
além de toda expressão
dizer o que não é
escrever o que não posso
fazer arte do absurdo
que o limite do que existe
não me é e não me basta
não me é tal alto o céu
não me é tão fundo o inferno
não é tão negro o negro
nem tão belo o belo
queria fixar palavras
que passassem ao outro lado
do infinito
que ficassem mais além
da eternidade
palavras
que não fossem palavras
que fossem o universo
em essência de verbo
queria dizer tudo
não dizendo nada...
enfim eu não queria
que as minhas palavras
falassem do teu beijo
queria que elas...
fossem a tua boca
04 dezembro 2008
INTER - Campeão de Tudo
Não sou um fanático por futebol, mas aprecio bastante esse esporte. E o meu time é o Internacional. Assim, venho aqui deixar minha homenagem a mais uma façanha do Colorado: a conquista da Copa Sul-Americana, sendo o 1º clube brasileiro a vencê-la. Além do mais, segundo as palavras da própria Conmebol, o Inter passa a ser o mais INTERNACIONAL dos clubes brasileiros, sendo o único a conquistar todos os títulos disponíveis a um time do Brasil: Libertadores da América, Mundial Fifa, Recopa e Sul-Americana. Somente o Boca Júniors, da Argentina, também conquistou esses 4 títulos. Isso sem contar os títulos internacionais não oficiais que o Inter venceu, como o Torneio de Dubai. São façanhas que não podem passar ignoradas por um gaúcho. Em pouco mais de 2 anos o Inter vergou 5 dos maiores times mundiais (Barcelona, Boca, Stuttgart, Internacional de Milão, São Paulo) e quebrou vários tabus, como vencer o Boca no La Bombonera depois de 5 anos de invencibilidade do time argentino em torneios internacionais. O Inter é Mortal. Mata todos! Parabéns, "Glória do desporto nacional, Ó Internacional..."
03 dezembro 2008
Uma Tragédia Sem Importância...
Naquele ensolarado final de tarde primaveril, saí às ruas para mais uma de minhas costumeiras caminhadas. É sempre inspirador caminhar sentindo a brisa prazerosa tocar nossa face sob um límpido céu azul, ao paradisíaco aroma das flores e ouvindo o canto celestial das aves.
E quando já estava ao fim de meu passeio, encontrei sentada sobre uma calçada uma linda menina de cabelos brilhantes e olhos dourados, aparentando não mais que 13 anos de idade e vestindo uma roupa de cor verde bastante simples mas que muito se adequava à sua inocente beleza. Aproximei-me da menina e percebi que ela chorava copiosamente. Sentei-me ao seu lado e perguntei por que ela chorava tanto, ao que ela respondeu-me:
“Meus pais foram mortos há alguns dias, foram assassinados. Meu pai levou um tiro no peito, seu sangue respingou sobre mim. Minha mãe também foi ferida com um tiro, caiu no chão e teve sua cabeça esmagada sem piedade por aqueles homens cruéis. Meus irmãos mais jovens foram raptados pelos assassinos, eles os levaram. Eles gritavam e choravam desesperados, mas não podiam fugir. Só eu consegui escapar.
Eu fugi, e sem meus pais não sabia o que fazer. Nós vivíamos no interior de uma floresta, tínhamos a nossa casinha onde éramos tão felizes, mas ela foi destruída, e aqueles homens maus devastaram toda a floresta. E lá plantaram uns arbustinhos que chamavam de soja. Eu fiquei por um tempo escondida em um pequeno bosque, o único pedaço de mata que restou. Alimentava-me de algumas frutinhas que encontrava por ali.
Um dia os homens maus vieram carregando algumas coisas que não sei dizer o que eram e começaram a fazer sair uma nuvem branca sobre a soja. Acho que aquela nuvem era venenosa, porque ela veio até mim, e eu a respirei, e seu cheiro era horrível. Comecei a me sentir mal, fiquei tonta e saí da mata em direção ao rio.
Quando lá cheguei, bebi um pouco d’água para me sentir melhor, mas a água estava com um gosto muito ruim, e senti-me ainda pior. Havia coisas estranhas no rio, sujeiras, lixos, e as águas que antes eram tão limpinhas, tão bonitas, onde eu e meus irmãos brincávamos e pegávamos bichinhos da água, estavam marrom, mau-cheirosas e sem nenhum peixe. Também não havia mais na beira do rio as grandes árvores verdejantes onde nós tanto gostávamos de brincar.
Então saí do rio sentindo-me muito mal. Voltei para a mata, a nuvem branca já tinha passado. Foi então que ouvi tiros que se aproximavam de mim. Seriam aqueles assassinos? pensei. Eu devia fugir dali, ainda que mal tivesse forças para isso. Então saí da mata no mesmo momento em que vi aqueles homens matando a tiros uma família de cachorros-do-mato. Mataram todos os cachorros, pai, mãe e os três filhinhos, mataram por matar, para se divertir, porque nem levaram seus corpos, deixaram lá para apodrecer e saíram rindo muito satisfeitos.
Mesmo quase sem forças, eu consegui escapar. E assim, lentamente fui me dirigindo para a cidade. Então, com muita dificuldade, cheguei até aqui onde estou. Eu estava escondida naquela árvore, mas perdi todas as minhas forças, mal conseguia respirar, e caí sobre a calçada. Ainda consegui erguer-me, mas sentia que aquela nuvem venenosa que respirei no campo estava me matando, ela me asfixiava. Mas ainda vivia e lutava pela vida. Tentei caminhar pela rua, era tudo que podia fazer, na esperança de que alguém me ajudasse. Vi que vinham crianças, e pensei que elas não seriam más e então me ajudariam.
Mas eu muito me enganei. Aquelas crianças, ao verem que eu ali estava caminhando com dificuldade, juntaram muitas pedras para atirar em mim, acertando algumas com muita força. A dor que elas me causavam era insuportável. Eu sentia as pedras machucando e cortando minha carne, fraturando meus ossos, via meu sangue escorrer, e não podia fazer nada. Uma das pedras quebrou minha perna direita, e não pude mais caminhar. Eu já não agüentava mais, até que uma pedra enorme foi jogada sobre minha cabeça. Ainda ouvi e senti meu crânio ser esmagado, e logo a morte veio para aliviar minha dor. Ali está o que restou do meu corpo.”
Olhei à minha esquerda e percebi o cadáver de um pequeno pássaro de plumagem verde, amarela e azul esmagado por dezenas de pedras. Perplexo, voltei meu rosto para a menina e nem precisei perguntar, pois ela se adiantou:
“Sim, eu sou o espírito daquela avezinha, sou sua alma. Os homens acabaram com a minha vida, com minha família, com meu canto, com minha felicidade. E quem teria piedade de um pobre pássaro, quem daria atenção para mim? Ninguém, ninguém dá atenção para essas coisas... Esses são os humanos... O que vocês estão fazendo com a vida deste planeta? E quando toda essa vida morrer, o que será de vocês?”
Nesse instante, acordei de meu sonho. Sim, tudo não passou de um sonho. Ou pesadelo. Levantei-me, profundamente abalado. Horas depois saí para caminhar nas ruas. E qual não foi meu espanto ao encontrar em um local arborizado um pássaro verde, amarelo e azul esmagado por dezenas de pedras. Agora, era a realidade...
E quando já estava ao fim de meu passeio, encontrei sentada sobre uma calçada uma linda menina de cabelos brilhantes e olhos dourados, aparentando não mais que 13 anos de idade e vestindo uma roupa de cor verde bastante simples mas que muito se adequava à sua inocente beleza. Aproximei-me da menina e percebi que ela chorava copiosamente. Sentei-me ao seu lado e perguntei por que ela chorava tanto, ao que ela respondeu-me:
“Meus pais foram mortos há alguns dias, foram assassinados. Meu pai levou um tiro no peito, seu sangue respingou sobre mim. Minha mãe também foi ferida com um tiro, caiu no chão e teve sua cabeça esmagada sem piedade por aqueles homens cruéis. Meus irmãos mais jovens foram raptados pelos assassinos, eles os levaram. Eles gritavam e choravam desesperados, mas não podiam fugir. Só eu consegui escapar.
Eu fugi, e sem meus pais não sabia o que fazer. Nós vivíamos no interior de uma floresta, tínhamos a nossa casinha onde éramos tão felizes, mas ela foi destruída, e aqueles homens maus devastaram toda a floresta. E lá plantaram uns arbustinhos que chamavam de soja. Eu fiquei por um tempo escondida em um pequeno bosque, o único pedaço de mata que restou. Alimentava-me de algumas frutinhas que encontrava por ali.
Um dia os homens maus vieram carregando algumas coisas que não sei dizer o que eram e começaram a fazer sair uma nuvem branca sobre a soja. Acho que aquela nuvem era venenosa, porque ela veio até mim, e eu a respirei, e seu cheiro era horrível. Comecei a me sentir mal, fiquei tonta e saí da mata em direção ao rio.
Quando lá cheguei, bebi um pouco d’água para me sentir melhor, mas a água estava com um gosto muito ruim, e senti-me ainda pior. Havia coisas estranhas no rio, sujeiras, lixos, e as águas que antes eram tão limpinhas, tão bonitas, onde eu e meus irmãos brincávamos e pegávamos bichinhos da água, estavam marrom, mau-cheirosas e sem nenhum peixe. Também não havia mais na beira do rio as grandes árvores verdejantes onde nós tanto gostávamos de brincar.
Então saí do rio sentindo-me muito mal. Voltei para a mata, a nuvem branca já tinha passado. Foi então que ouvi tiros que se aproximavam de mim. Seriam aqueles assassinos? pensei. Eu devia fugir dali, ainda que mal tivesse forças para isso. Então saí da mata no mesmo momento em que vi aqueles homens matando a tiros uma família de cachorros-do-mato. Mataram todos os cachorros, pai, mãe e os três filhinhos, mataram por matar, para se divertir, porque nem levaram seus corpos, deixaram lá para apodrecer e saíram rindo muito satisfeitos.
Mesmo quase sem forças, eu consegui escapar. E assim, lentamente fui me dirigindo para a cidade. Então, com muita dificuldade, cheguei até aqui onde estou. Eu estava escondida naquela árvore, mas perdi todas as minhas forças, mal conseguia respirar, e caí sobre a calçada. Ainda consegui erguer-me, mas sentia que aquela nuvem venenosa que respirei no campo estava me matando, ela me asfixiava. Mas ainda vivia e lutava pela vida. Tentei caminhar pela rua, era tudo que podia fazer, na esperança de que alguém me ajudasse. Vi que vinham crianças, e pensei que elas não seriam más e então me ajudariam.
Mas eu muito me enganei. Aquelas crianças, ao verem que eu ali estava caminhando com dificuldade, juntaram muitas pedras para atirar em mim, acertando algumas com muita força. A dor que elas me causavam era insuportável. Eu sentia as pedras machucando e cortando minha carne, fraturando meus ossos, via meu sangue escorrer, e não podia fazer nada. Uma das pedras quebrou minha perna direita, e não pude mais caminhar. Eu já não agüentava mais, até que uma pedra enorme foi jogada sobre minha cabeça. Ainda ouvi e senti meu crânio ser esmagado, e logo a morte veio para aliviar minha dor. Ali está o que restou do meu corpo.”
Olhei à minha esquerda e percebi o cadáver de um pequeno pássaro de plumagem verde, amarela e azul esmagado por dezenas de pedras. Perplexo, voltei meu rosto para a menina e nem precisei perguntar, pois ela se adiantou:
“Sim, eu sou o espírito daquela avezinha, sou sua alma. Os homens acabaram com a minha vida, com minha família, com meu canto, com minha felicidade. E quem teria piedade de um pobre pássaro, quem daria atenção para mim? Ninguém, ninguém dá atenção para essas coisas... Esses são os humanos... O que vocês estão fazendo com a vida deste planeta? E quando toda essa vida morrer, o que será de vocês?”
Nesse instante, acordei de meu sonho. Sim, tudo não passou de um sonho. Ou pesadelo. Levantei-me, profundamente abalado. Horas depois saí para caminhar nas ruas. E qual não foi meu espanto ao encontrar em um local arborizado um pássaro verde, amarelo e azul esmagado por dezenas de pedras. Agora, era a realidade...
Assinar:
Postagens (Atom)