15 janeiro 2009

Há um Espírito que Paira sobre Aquele Campo

Quando principiou a baixar o sol, parti de minha casa. Logo, cairia um melancólico crepúsculo romântico! Um dia de outono suavemente frio em que algumas poucas nuvens rubro-arroxeadas lamentavam-se em sonhos pelos horizontes iminentes. Enigmáticos rumores pelo ar... Profundo e terrível enigma pelas atmosferas densas...

Iniciei minha caminhada calma e decididamente, deveria atingir aquele campo misterioso no instante imediatamente anterior ao anoitecer, o exato momento que precede a chegada da noite.

Eu vi aquele campo largo e profundo somente uma vez. E nunca mais o esqueci. Havia um mistério sobre ele... À primeira vista, compreendi que algum ser pairava acima de sua antiga imensidão verde-escura. O campo situava-se em uma alta e vasta colina cercada de frondosas e dramáticas matas. Algo vivia oculto naquelas matas estranhas, fantásticas, algo...digamos...arcânico. Há sempre algo mais por trás de tudo. E chegara o dia.

E o dia era nebulosamente tranqüilo. Um clima de flutuante magia dominava os ares. Ao deixar minha casa, enquanto o sol descia solene em sua solidão, algumas borboletas adejavam suas asas celestialmente azuis no caminho sem calçamento por onde deveria seguir. Nenhuma pessoa nas ruas. O local onde eu morava, já quase fora da região urbana, parecia completamente abandonado, só eu perambulava pela estreita rua cercada de altas árvores frutíferas. Ensolarada. Ao longe, até onde alcançava a vista, vastas e límpidas coxilhas alastravam-se supremas.

Em uma delas é que eu buscava chegar. Em uma delas, em certo dia chuvoso, eu senti comovido que havia algo mais ali. Era quase noite, e a chuva caía macia e murmurante, como um afago sobrenatural. Olhei ao alto da coxilha cercada de bosques, exclamei comigo mesmo: “não posso ver, mas sinto que há algo aqui”. E hoje retorno para comprovar...

Que tarde carregada de magia! O sol morria sentencioso e eu avançava. A serenidade outonal era perfeita. Somente ouvia sonatas de pássaros. O canto do gado, dos cavalos, das ovelhas. Mas em mim vibrava uma terrível febre. Sereno, mas interiormente alarmava-me. Queimava muita alma dentro de meu espírito. Inflamavam-se minhas emoções flamejantes. Pensava nela. Ainda mais que o caminho era cercado de laranjeiras e limoeiros. Não estavam floridos, porém o perfume de incenso exalado pelas árvores era sublime. O aroma das laranjeiras convidava ao amor, e pensava nela. E a febre se intensificava, e o sol morria, e eu avançava rumo àquele campo.

Logo após aquele roseiral vivamente rubro, percebi de forma definitiva que chegara um agradável frio crepúsculo. Era outono, e o sol deixava adeuses em paz. A chuva invisível e cristalina da lua e das estrelas principiava a cair, e após o roseiral estaria quase lá. Um vento frio do sul começou a soprar insolitamente, Havia algo mais naquele vento, havia saudade, havia rumores, havia paixão. O céu agora era um manto azul-violáceo, com tonalidades rosa nos horizontes, e o negro da noite iniciava a derramar nos espaços sua ária triste e apaixonada. Sonhava...
Agora me encontrava totalmente no pampa. Nenhum sinal de civilização. Ao longe, avistava o campo misterioso. Em minha mente ruflavam suas pétalas as rosas daquele roseiral, pelo qual passara. Por que ainda pensava naquelas rosas vermelhas? Vermelhas de sangue? Logo a noite seria definitiva, e eu acercava-me a um passo da noite. Mas pairava algo no ar... Aproximava-me do campo indecifrável. E atingi meu destino. Extático, quedei-me emocionado aos pés da coxilha. E a noite caiu. Ali, diante de mim, minha intuição me afirmava, pairava um denso mistério, embora ainda não pudesse contemplá-lo ou compreendê-lo.

Um pouco mais adiante, conforme o campo perdia elevação, uma venerável mata se alastrava. Fluidos e essências artísticas gotejavam dos frios céus estrelados e iluminados por uma delirante lua pálida, um convite aos fantasmas que se amam.

Sentei-me sobre aquele campo verdejante e orvalhado à espera do que viria a ocorrer, enquanto os seres noturnos entoavam suas lôbregas e oníricas canções. Havia uma intensa e palpitante poesia pelos ares puros, límpidos, vibravam divinas inspirações que me invadiam, enquanto dirigia meu sonho àquela que me esperava... Nisso, algum estranho rumor principiou a nascer da mata, um som inclassificável, como se fossem vários uivos simultâneos e desconhecidos. O som intensificou-se e pareceu movimentar-se da mata para sobre o campo, fixando-se acima da verde coxilha. De modo que, gradativamente, os uivos foram se extinguindo para dar lugar a uma tênue e multicor nuvem luminosa que constantemente modificava as tonalidades, passando do branco para o verde, para o amarelo, o vermelho, o azul e o roxo. Levantei-me e, com certo receio, dirigi-me exatamente para baixo do centro da nebulosa da luz fantasmagórica que se originou dos uivos. Então, uma densa e rosácea luminosidade, de uma espécie diversa da anterior, desceu da nuvem luminosa e envolveu-me completamente.

Seus abraços calorosos e sublimes enlevavam-me de ternuras femininas, tranqüilizando profundamente meu coração. Foi quando percebi que eu estava ascendendo, que a luz feminina erguia-me em seus braços etéreos e levava-me para o interior da nuvem luminosa. Após ter meus olhos ofuscados e tendo que os fechar por alguns instantes, pude abri-los novamente. Encontrei-me em outra região de completo enigma: era o interior da nebulosa nuvem de luz.

Contemplei então o mesmo campo onde me encontrava a poucos minutos, com sua bela coxilha e sua matas exuberantes. Porém, além do campo em seu aspecto físico, ali existia algo mais... Eu fitava uma infinidade de rostos espectrais, fantasmagóricos, formados unicamente por insólitas luminosidades cintilantes e esbranquiçadas, que se movimentam, oscilando constantemente sua aparência, como se fossem chamas sem fogo. Os rostos olhavam-me fixamente e eu sentia-me ansioso por conhecê-los. Até que pude inferir que aquele número infinito de faces fantásticas consistia em algo próximo aos espíritos, às almas dos seres animais e vegetais que naquela região viviam. O local que agora me encontrava seria uma outra dimensão interligada, correspondente espiritual do misterioso campo que sempre atraíra minha imaginação...

Permaneci por um tempo indeterminado, aparentemente longo, flutuando pela onírica região, observando estarrecido todas aquelas faces volúveis, fulgurantes, evanescentes, com esquisitos olhos fugidios que não deixavam de me acompanhar, até que fui desperto de meu estado de quase hipnose pelo som retumbante de um tropel de cavalos.
Olhei ao fundo da paisagem e percebi a rápida aproximação de uma gigantesca cavalaria de guerreiros indetermináveis, tão espectrais, fantasmagóricos e voluvelmente luminosos como as faces espirituais dos seres da natureza. Porém, aquela cavalaria transmitia um horror insano, um medo paralisante. Nesse instante senti que a luz rosácea que me envolvia descia comigo para devolver-me ao mundo físico. Logo, encontrava-me novamente sobre a coxilha orvalhada, em plena noite profunda. O ambiente permanecia inalterado, absolutamente tranqüilo. Passados alguns instantes, deduzi que mais nada ocorreria ali e decidi retornar à minha casa. Despedi-me do mirífico lugar e tomei o caminho de volta.

Enquanto caminhava pela madrugada que me observava, refleti sobre o que havia vivenciado. Seria real, eu teria adormecido sem perceber? Não sei com certeza, mas posso afirmar que nesse momento uma voz inaudível fisicamente soprou nos meus ouvidos como uma inspiração advinda do desconhecido, não sei se exterior ou interior, ou ambos: era mais ou menos o seguinte o que ela me soprava: no mundo físico, tudo pode ainda aparentar tranqüilidade, aquele clima canhestramente tranqüilo que precede a tempestade, mas em outras esferas, em outras dimensões que se interpenetram, como a água penetra a terra, acontecimentos inimagináveis se concretizam, para, em breve, refletirem-se no mundo natural, assim como a chuva, que antes toca o céu para depois tocar a terra, como a tempestade que vem chegando, que ao longe vem soprando e formando sua nuvens carregadas e seus raios tenebrosos, mas que nós ainda não podemos vê-las. E talvez nem a esperemos...