15 dezembro 2014

Provérbios do Inferno


O poeta inglês William Blake é um daqueles gênios enigmáticos que conforme passa o tempo sua palavra não perde a validade, pelo contrário, parece que se torna mais viva. Iniciador do Romantismo, juntamente com o alemão Goethe, foi um arauto da Liberdade e da energia anímica. Assim como outros grandes poetas, foi também um profeta, antevendo o Inconsciente Coletivo, adiantando-se ao pensamento e à expressão humanas dos séculos seguintes. Blake foi um perscrutador do Desconhecido. Para fora e para dentro do homem.

Em sua misteriosa obra O Matrimônio do Céu e do Inferno, o poeta, que também foi um pintor altamente expressivo, deixou-nos algo como axiomas na forma de poesia em prosa, os quais ele intitulou como Provérbios do Inferno. Selecionei alguns. O que haveria de "infernal" nos provérbios de Blake? Bem, isso vai da interpretação de cada leitor, e claro, seria melhor compreendido através da leitura da obra na íntegra.


O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria.

Um tolo não vê a mesma árvore que um sábio vê.

Pássaro algum voa alto demais se o faz com as próprias asas.

A fúria do leão é a sabedoria de Deus.

A nudez da mulher é a obra de Deus.

O rugir dos leões, o uivar dos lobos, o estrondo do mar tempestuoso, e o gládio destruidor são porções de eternidade grandes demais para o olhar humano.

A cisterna contém: a fonte transborda.

Um pensamento enche a imensidade.

Fala sempre o que pensas e os vis te evitarão.

As prisões são erguidas com as pedras da Lei e os Bordéis com os tijolos da Religião.

Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da instrução.

Espera veneno das águas paradas.

Só se sabe o que é bastante depois de se saber o que é demais.

A macieira nunca pergunta à faia como crescer, nem o leão ao cavalo como abater sua presa.

Quando vês uma Águia, vês uma porção do Gênio. Ergue tua cabeça!

As preces não aram! Os louvores não colhem.

O Progresso constrói estradas retas, mas as estradas tortuosas sem Progresso são os caminhos do Gênio.

Antes matar um infante no berço do que acalentar desejos reprimidos.

13 dezembro 2014

Dia de Ira

Dies irae, dies illa
solvet saeclum in favilla…


I
carta enviada ao destino
sem selo
viva vivida de humano
sem sê-lo

II
algo lago de raio e fogo
se gatilha no olho
relâmpago do tigre

III
homem com sede de fome
que há muito
perdeu sua sede
e seu nome

IV
algo sangue no oculto do sol
se vermelha entre buracos de estrelas
como aves de outros planetas

V
corvoos por todos os réquiens
carvões por todos os prados
cor vãs por todos os pratos
rãs-águas por todos os restos...

se réquiam os destinos
por cartas
marcadas
com o número 626
de Mozart

11 dezembro 2014

Governo Sartori: retrocessos na Cultura, no Meio-Ambiente e no combate à violência contra a Mulher

Parece que depois da campanha, o Sartorão perdeu um pouco da simpatia... Ou é só impressão minha?

Os trechos em destaque, retiro de matéria publicada no portal Sul 21, escrita por José Antônio Silva, jornalista e escritor. O que mais me choca é o querido Sartori querer unir a SEMA, Secretaria do Meio-Ambiente, à do Desenvolvimento. Ou seja, certamente, o meio-ambiente ficará submisso ao "desenvolvimento". Bom, aí qualquer pessoa com um mínimo de inteligência e de sensibilidade já sabe o que vai acontecer. Quanto à supressão da Secretaria da Cultura, nenhuma novidade. Percebe-se que o futuro governador não tem muita mesmo.
O texto pode ser lido na íntegra aqui.

Dentro da linha do estado mínimo (tremam setores mais frágeis da sociedade), José Ivo Sartori anunciou alguns dos cortes que pretende fazer na estrutura da máquina pública. Entre os ameaçados, nenhuma surpresa maior: o Meio Ambiente, a Cultura, a Secretaria de Políticas para as Mulheres… (a Secretaria de Desenvolvimento Rural, dos pequenos agricultores, só está sendo salva por pressão do PSB, aliado do governador eleito). "

Por isso, só o fato do próximo governador – segundo entrevista à Zero Hora – ter pensando em incorporar a SEMA à Secretaria de Desenvolvimento já mostra que, para a nova administração estadual, temas como poluição, desmatamento, estiagem, aquecimento global, etc., não passam de bobagens que apenas atravancam o “pogreço”

E tem mais: Sartorão da massa pretende/pretenderia juntar a pasta de Cultura com Turismo e Esportes. Ou seja, “cultura” – com todo o seu cabedal simbólico, seus grandes artistas, suas marcas, sua história – perde o prestígio no velho novo governo escolhido pelos gaúchos, e fica sem valorização e o protagonismo que merece. E descem ralo abaixo os grandes investimentos no setor feito pelo governo Tarso, as centenas de novas bibliotecas, os pontos de cultura, o pólo de cinema, a sala sinfônica da Ospa, etc."

Deixar um órgão como a SPM,Secretaria de Políticas para as Mulheres, que conceitua e organiza as lutas pela igualdade das mulheres – do enfrentamento à violência doméstica, da Patrulha Maria da Penha e da Rede Lilás, aos programas de qualificação da mão de obra feminina, entre outras iniciativas – “junto ao Gabinete da Primeira Dama” é um retrocesso social e político brutal.


Para finalizar, um poeminha de Augusto dos Anjos para o nosso simpático Sartori:

"Rasga essa máscara ótima de seda 
E atira-a à arca ancestral dos palimpsestos... 
É noite, e, à noite, a escândalos e incestos 
É natural que o instinto humano aceda!"

10 dezembro 2014

Série: O Fim é Inevitável 1 - Massacre de Elefantes está fora do controle

Deveria ter iniciado essa série há muito tempo, desde 2006, quando estreei o blog. Imaginem em que capítulo estaria agora?!! Bem, antes tarde do que nunca. Ainda há, acho, tempo. "O Fim é Inevitável". E é. Não quer dizer que não possa haver um recomeço. 

A verdade é, e digam o que quiserem, que o mundo, ou a civilização humana, para continuar existindo muito mais tempo, terá que se reformular. Como? Para mim, da maneira mais radical. Com a aniquilação da maior parte da humanidade. E agora? Agora dirão que sou louco, desumano, nazista, enfim, essas coisas. Louco, talvez, desumano e nazista, não. Seria  desumano se afirmasse que algumas pessoas devem decidir quem vai morrer e quem não vai. Quem é melhor que outros para definir? Alguns estão certos que são. Inclusive há muitos por aí pregando, direta ou indiretamente, o extermínio de determinados "tipos de gente". Aqueles que "não prestam" Talvez, os que pregam tal ideia sejam os que mereçam ser exterminados.

Não é nada disso o que quero dizer. É bem mais simples. Ou não. Não é a humanidade, caduca, cega e inconsciente, que vai determinar quem morre. É o planeta. As forças da natureza, o equilíbrio a que sempre tende as leis naturais e cósmicas. Ou morre parte da humanidade ou morre todo o planeta. E ele não vai permitir que um ser vivo ao qual ele dá vida e sustenta seja o seu carrasco.

De modo que o Fim é inevitável. O blog pretende, com este série, apresentar fatos e questões que compravam que o ser humano está levando o planeta a tomar uma atitude radical. Aliás, ele já iniciou com sua atitude. Muitos fatos já publiquei no blog sem apresentá-los como uma série. Mas a partir de hoje será assim. Advirto que a série será trágica e dolorosa.


A matéria abaixo retiro do Correio Braziliense. Clique aqui.


"O massacre de elefantes na África e o comércio de marfim na China estão fora de controle e podem levar à extinção dos animais que vivem em liberdade no período de uma geração, advertiram nesta terça-feira defensores do meio ambiente.

Quantidades de marfim cada vez maiores são vendidas em um número crescente de lojas de luxo na China, denunciaram em um relatório conjunto as associações Save The Elephants e The Aspinall Foundation, ressaltando que mais de 100.000 elefantes do continente africano foram sacrificados entre 2010 e 2012.

A explosão da demanda de marfim na China - onde o preço varejista das presas dos elefantes triplicou em quatro anos, desde 2010 - desencadeou uma expansão do comércio de marfim contrabandeado que provocou o massacre dos elefantes da África", explicaram estas organizações no relatório, publicado nesta terça-feira em Nairóbi.

A caça de elefantes, assim como a dos rinocerontes, aumentou consideravelmente nos últimos anos na África, alimentada pela forte demanda de marfim e de chifres na Ásia, onde são buscados por seu aspecto decorativo ou por suas supostas virtudes medicinais, alcançando preços astronômicos que atraem grupos criminosos internacionais e grupos armados.

Os pesquisadores das duas organizações não governamentais visitaram dezenas de lojas e fábricas na China, o principal centro de transformação de marfim.

Segundo este documento, o número de lojas de marfim registradas passou de 31 em 2014 a 145 no ano passado, enquanto o número de fábricas de transformação do marfim passou de nove a 37 no mesmo período. A venda ilegal de marfim em lojas sem licença progrediu ao mesmo ritmo."

Em breve, o capítulo 2.




08 dezembro 2014

Após Schubert

essa estrela que eu olho
não é ela que está lá
pois uma outra há que vá
que me olha no que eu olho
mas essa estrela que é
que deseja o que eu vejo
nunca é no meu desejo

essa noite que eu vi
nunca foi a que estava
mas se vai com outra asa
longe do que pedi
alma do que não foi
e outra noite me envia
som-voo do que morria

este sonho que eu tenho
não é sonho que pode
fiz-me por outro acorde
nada em que me sustenho
erro do meu não ser
noite do que vou tê-la
nem sonho e nem estrela

06 dezembro 2014

Humanidade... Vai Dormir*

humanidade...
vai dormir

continuar acordada?
chegaste ao fim do teu dia
e viste:
não deu em nada

caminhar ainda?
para onde?
para quê?
exausta, caminhas em círculos
e tuas estradas
voltam ao mesmo lugar
para qual progresso avançar?

se não encontraste
sentido na vida
talvez encontres no sono
sonha teus sonhos
fecha os olhares:
por outros mundos
planetas estrelas
sente outros ares...

nada melhor
que um dia após o outro:
acabou o teu tempo
já passou a tua hora
o que te resta?
uma nova aurora...

não, não sou pessimista
só estou cansado:
sinto sono
quando vejo imbecis a sorrir...

humanidade
faz como eu:
vai dormir.


*Poema reelaborado e republicado
(Na imagem, detalhe de "O Julgamento Final", de Hieronymus Bosch.)

04 dezembro 2014

Quem acredita, acredita no quê?

as pessoas não acreditam
no que creem como certo
acreditam no que precisam
acreditar:
se é certo ou não
não há real interessamento

acreditam no prolongamento
do que são
ou do que julgam como sendo:
acreditar é tentar ser
sendo-se ou não

tanto é
que se pode acreditar
em coisa qualquer
no que se quiser:
em paradoxos e contraditórios
em mudanças e inconstâncias
e tudo é válido
e tudo pode
desde o fanático científico
até o enfático por bodes

de modo que acreditar
não é saber ou achar que se sabe:
é a necessidade de ser alguém
antes que seu ser ou esse alguém
acabe

02 dezembro 2014

Só a Bala

há momentos
(que nem tampouco
são poucos)
em que não entendo
qual a real
esperança
que traz toda gente
e a faz
morrer em frente

desde os que louvam a vida
negando a sua existência
até os que dizem
de sua existência
negando o como vivê-la
e que veem diferenças
entre um ser
e uma estrela

há um momento
no qual
o real
(que se vive
sem em realidade
se sabê-lo)
é tão somente
um não adianta
diante
de tanta...
anta

nem importa
o que se busca
se sonha se traga
o que se faz se fala

há momentos
que com toda gente
só a bala

30 novembro 2014

Lições das Trevas

I – do Gato

tu
gato noturno
atento ao vazio da treva
vês ainda mais vezes
que vazio sou eu
que não estou
no que te leva

tu sabes, gato
que toda a ciência
não vale o sentido
do teu olfato

II – da Coruja

e o teu canto
coruja hermética
de olhos autônomos
equivale a uma europa
de filósofos
e de autômatos

e, por fim
há mais sabedoria no teu pio
do que em todo
o povo do Brasil

III – da Estrela

tu que não nos sabes
nunca te fracassas:
sendo estrela és longe
e sendo longe és verdade

triunfas
ao iluminares nuncas
e dar as costas
à humanidade

28 novembro 2014

Atentado aos Não-atentos

a poesia é o  nada
tornado inútil
pelo imprestável

é tudo o que não presta
no meio
de um mundo em pressa:
a poesia
é tudo o que resta

é o aquilo
que não pode ser dito
sendo dito
(ou intentado)
atentado
aos não-atentos

dito
mas não compreendido
seja como for
é como se não fosse

viu, veio e venceu
o seu tempo
ou o seu tempo venceu
como um produto
que perde a validade
logo não está
no tempo que é

quem escreve
querendo dizer alma
não só não diz
(porque não há o quem capta)
como sem nada acaba
(nem paz nem palavra)

que um poeta
não há nada que o valha

27 novembro 2014

Sartori irá dar Cartão Tumelero para a Bancada do PMDB pegar sua Aposentadoria

Estou feliz e contente com a política gaúcha. Estamos avançando. Finalmente, nossos deputados serão como qualquer funcionário público e terão aposentadoria. Caminhamos gloriosos para uma sociedade mais justa. 

Alguns acham que se deveria estender a todos os funcionários públicos os salários, os privilégios e as regalias dos nossos deputados. Já eu considero isso um absurdo. Querem quebrar, falir o estado?  É uma questão de meritocracia. O que há de mais justo em um governo. Os deputados que votaram por sua aposentadoria merecem tê-la e merecem o que ganham. 

Merecem porque executam tarefas que não são para meros mortais. Vivem, por exemplo, com um eterno sorriso estampado no rosto. Têm que apertar mãos suadas e calejadas de pobres. Nunca descansam em sua tarefa de tratos e tratados. Têm que zelar, e muito, por suas imagens de homens de bem, de honra, de vergonha na cara, de incoercível sinceridade. O que seria de nós sem tais homens semidivinos? E ainda dizem que eles não merecem se aposentar, ter um descanso? Querem que trabalhem para o povo eternamente? Percebam, senhores, o absurdo desse pensamento.

Mas sempre existem os do contra, os chatos, mal-humorados, ranzinzas, gente que não sabe viver, que só pensa em trabalho, que votaram CONTRA, eu disse CONTRA a aposentadoria dos senhores deputados. E eram deputados! Votaram contra si mesmos. Pode uma coisa dessas? Confiram na lista quem foram os masoquistas que votaram contra seu descanso. E agora, o governador Tarso, irresponsavelmente, irritantemente, quer vetar a aposentadoria... 

Felizmente está chegando o grande Sartori. Que, como já prometeu nobremente aos professores com relação ao piso, dará aos deputados o seu famoso Cartão Tumelero, para que consigam facilmente suas aposentadorias. Viva o Rio Grande, o estado mais politizado do Brasil.

24 novembro 2014

desconfio de opiniões unânimes*

desconfio
de opiniões unânimes
ou quase unânime:
quase sempre
quem a propõe
é um pusilânime

opinião unânime
é a que vem de todos
em benefício de apenas uns

desconfio
de tudo que é tido
como já tido
como aceito
do tipo
“isso é o certo
assim assado
o correto
pro bem de todos
e não tem jeito.”

desconfio
de tudo que é dado
para se ficar
do lado
do que é dado
como fato
e ato
do que é bom
e sensato

desconfio
do que é “pro bem geral
da nação”
do que é dito como o bem
pelos homens de bem
ou de bens
entre as mãos

porque isso
me cheira
a enfático
a acrítico
midiático
idiótico
mecânico
robótico

porque isso
me cheira
a coisas
empurradas
pela goela
com cobertura
de chocolate

ou enfiadas
mais adiante
(lá embaixo)
bem untadas
com azeite
e lubrificante

*Poema reelaborado e republicado.

22 novembro 2014

Mensagem aos que Não














ali onde olhos
canto de noite
e um  outro
canto de atrás
de um outro
olho de noite
de outro ausente
invisível de paz

sensação vã
do que não é
e se acima
cinza de névoa
em longe vapor
e derrama
café e (m)água
vista vaziada
sangues em chama
se vestem de nada

um mar sem algo
nem alga
oceano de ausência
onde me estranho
em que não haja
o que não alma
e nem se alta
algum desígnio
propenso ou denso
e nem saudade
e nem se importa
ou se enfurece
ou nem se acalma

um lugar ali
de fim
onde olhos
que não está
nem no cá
nem que vim

20 novembro 2014

Lama

entre
a Fama
e a Lama
há somente
um traço
ou um passo...

entre a “Dama”
e a Cama
há somente
uma virada
de lado
ou de vácuo

ou entre a Dama
e a Rama...


18 novembro 2014

O Fim do Cerrado e de suas Fontes de Água

Há poucos dias, publiquei no blog uma reportagem em que um cientista brasileiro afirma, a partir de vastas pesquisas,  que a Amazônia brasileira encontra-se com praticamente 40% de sua área total comprometida, ou por devastação completa ou por degradação parcial em diferentes níveis, e que o fato já está ocasionando mudanças graves no clima de todo o Brasil, principalmente falta de chuvas. Leia aqui

Agora, a questão é o Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro em área territorial, cujo ritmo implacável de destruição desde os anos 50 já devastou mais de 60% de sua totalidade. Ou seja, a maior parte do Cerrado já não existe mais, e isto vem causando não só o desaparecimento de sua biodiversidade tão vital para o Brasil, mas também o desaparecimento de mananciais de água, sobre cuja importância é desnecessário comentar.

No entanto, para muitas (e muitas mesmo) tudo isso não passa de um acidente de percurso, um "mal necessário", ou um pequeno deslize dos homens, ou até mesmo "vale a pena" se for para o maravilhoso desenvolvimento da nação e da humanidade, que marcha em sua evolução altamente sublime.

Retiro do portal Sul 21, trechos da entrevista concedida por Altair Sales Barbosa, professor da PUC Goiás e um dos maiores conhecedores do bioma Cerrado. A entrevista pode ser lida na íntegra aqui


"É justamente pela força da ciência que ele dá a notícia que não queria: na prática o Cerrado já está extinto como bioma. E, como reza o dito popular, notícia ruim não vem sozinha, antes de recuperar o fôlego para absorver o impacto de habitar um ecossistema que já não existe, outra afirmação produz perplexidade: a devastação do Cer­rado vai produzir também o desaparecimento dos reservatórios de água, localizados no Cerrado, o que já vem ocorrendo — a crise de a­bastecimento em São Paulo foi só o início do problema. Os sinais dos tempos indicam já o começo do período sombrio: “Enquanto se es­tá na fartura, você é capaz de re­partir um copo d’água com o ir­mão; mas, no dia da penúria, ninguém repartirá”, sentencia o professor.

Tendo em vista o que vivemos hoje, é algo quase que tristemente profético. O Cerrado está mesmo em vias de extinção?


O Cerrado é um tipo de am­biente em que vários elementos vi­vem intimamente interligados uns aos outros. A vegetação depende do solo, que é oligotrófico [com nível muito baixo de nutrientes]; o solo depende de um tipo de clima especial, que é o tropical subúmido com duas estações, uma seca e outra chuvosa. Vários outros fatores, incluindo o fogo, influenciaram na formação do bioma – o fogo é um elemento extremamente importante porque é ele que quebra a dormência da maioria das plantas com sementes que existem no Cerrado.


Assim, é um ambiente que de­pen­de de vários elementos. Isso significa que já chegou em seu clímax evolutivo. Ou seja, uma vez degradado não vai mais se recuperar na plenitude de sua biodiversidade. Por isso é que falamos que o Cerrado é uma matriz ambiental que já se encontra em vias de extinção.

Por que o sr. é tão taxativo?


Uma comunidade vegetal é medida não por um determinado tipo de planta ou outro, mas, sim, por comunidades e populações de plantas. E já não se encontram mais populações de plantas nativas do Cerrado. Podemos encontrar uma ou outra espécie isolada, mas encontrar essas populações é algo praticamente impossível.


Outra questão: o solo do Cerrado foi degradado por meio da ocupação intensiva. Retiraram a gramínea nativa para a implantação de espécies exóticas, vindas da África e da Austrália. A introdução dessas gramíneas, para o pastoreio, modificou radicalmente a estrutura do solo. Isso significa que naquele solo, já modificado, a maioria das plantas não conseguirá brotar mais.

Como se não bastasse tudo isso, o Cerrado foi incluído na política de ex­pansão econômica brasileira co­mo fronteira de expansão. É uma á­rea fácil de trabalhar, em um planalto, sem grandes modificações geomorfológicas e com estações bem definidas. Junte-se a isso toda a tecnologia que hoje há para correção do solo. É possível tirar a acidez do solo utilizando o calcário; aumentar a fertilidade, usando adubos. Com isso, altera-se a qualidade do solo, mas se afetam os lençóis subterrâneos e, sem a vegetação nativa, a água não pode mais infiltrar na terra.

Onde há pastagens e cultivo, então, o Cerrado está inviabilizado para sempre, é isso?

Onde houve modificação do solo a vegetação do Cerrado não brota mais. O solo do Cerrado é oligotrófico, carente de nutrientes básicos. Quando o agricultor e o pecuarista enriquecem esse solo, melhorando sua qualidade, isso é bom para outros tipos de planta, mas não para as do Cerrado. Por causa disso, não há mais como recuperar o ambiente original, em termos de vegetação e de solo.


Mas o mais importante de tudo isso é que as águas que brotam do Cerrado são as mesmas águas que alimentam as grandes bacias do continente sul-americano. É daqui que saem as nascentes da maioria dessas bacias. Esses rios todos nascem de aquíferos. Um aquífero tem sua área de recarga e sua área de descarga. Ao local onde ele brota, formando uma nascente, chamamos de área de descarga. Como ele se recarrega? Nas partes planas, com a água das chuvas, que é absorvida pela vegetação nativa do Cerrado. Essa vegetação tem plantas que ficam com um terço de sua estrutura exposta, acima do solo, e dois terços no subsolo. Isso evidencia um sistema radicular [de raízes] extremamente complexo. Assim, quando a chuva cai, esse sistema radicular absorve a água e alimenta o lençol freático, que vai alimentar o lençol artesiano, que são os aquíferos.

Quando se retira a vegetação na­tiva dos chapadões, trocando-a por outro tipo, alterou-se o ambiente. Ocorre que essa vegetação introduzida – por exemplo, a soja ou o al­go­dão ou qualquer outro tipo de cul­tura para a produção de grãos – tem uma raiz extremamente superficial. Então, quando as chuvas caem, a água não infiltra como deveria. Com o passar dos tempos, o nível dos lençóis vai diminuindo, afetando o nível dos aquíferos, que fica menor a cada ano.

Qual é a consequência imediata desse quadro?

Em média, dez pequenos rios do Cerrado desaparecem a cada ano. Esses riozinhos são alimentadores de rios maiores, que, por causa disso, também têm sua vazão diminuída e não alimentam reservatórios e outros rios, de que são afluentes. Assim, o rio que forma a bacia também vê seu volume diminuindo, já que não é abastecido de forma suficiente. Com o passar do tempo, as águas vão desaparecendo da área do Cerrado. A água, então, é outro elemento importante do bioma que vai se extinguindo.

Hoje, usa-se ainda a agricultura irrigada porque há uma pequena reserva nos aquíferos. Mas, daqui a cinco anos, não haverá mais essa pequena reserva. Estamos colhendo os frutos da ocupação desenfreada que o agronegócio impôs ao Cerrado a partir dos anos 1970: entraram nas áreas de recarga dos aquíferos e, quando vêm as chuvas, as águas não conseguem infiltrar como antes e, como consequência, o nível desses aquíferos vai caindo a cada ano. Vai chegar um tempo, não muito distante, em que não haverá mais água para alimentar os rios. Então, esses rios vão desaparecer.

Por isso, falamos que o Cerrado é um ambiente em extinção: não existem mais comunidades vegetais de formas intactas; não existem mais comunidades de animais – grande parte da fauna já foi extinta ou está em processo de extinção; os insetos e animais polinizadores já foram, na maioria, extintos também; por consequência, as plantas não dão mais frutos por não serem polinizadas, o que as leva à extinção também. Por fim, a água, fator primordial para o equilíbrio de todo esse ecossistema, está em menor quantidade a cada ano.

E aqui no nossa Pampa? Como anda a situação? Nos próximos dias, escreverei sobre o assunto.