16 agosto 2013

Misto-Quente, de Bukowski, o melhor romance norte-americano

Hoje, 16 de agosto, é aniversário de Henry Charles Bukowski, ou Heinrich Karl Bukowski, nascido na Alemanha em 1924, mas que viveu praticamente toda sua vida nos EUA, onde escreveu toda sua obra. Há tempos conheço a obra de Bukowski, um dos últimos escritores malditos, mas havia lido mais seus impiedosos contos e poemas. Conheci há pouco seus romances. E arrependo-me de não os ter conhecido antes. São devastadores. Principalmente Misto-Quente, o quarto dos seus seis romances. 

Não vou hesitar: Misto-Quente é o melhor romance escrito nos EUA que já li. E não li poucos. Melhor até que qualquer romance do Hemingway tomado isoladamente. Não direi que Bukowski é o maior romancista, ou o maior prosador. O maior prosador é e sempre será Edgar Allan Poe, o maior gênio nascido em terras norte-americanas. Mas o melhor romance é Misto-Quente do bêbado Bukowski. Muitos não concordarão. Estão no seu direito. E eu, no meu. 

Misto-Quente é tão bom que farei algo que nunca faço aqui no blog. Recomendá-lo. Raramente recomendo um livro sem que me peçam. Em toda recomendação, principalmente na de livros, há algo de presunção e arrogância. É como dizer: "leia o que eu li, porque o que eu leio é bom e você deverá gostar disso. Talvez o que você leia não seja tão bom..."  Recomendações são quase sempre uma chatice. Mas abrirei uma exceção e recomendarei Misto-Quente. E um dos motivos é porque nunca vi ninguém recomendando abertamente este livro.

É que o livro é foda. Um romance de formação dos mais sinceros e corajosos. Sem a mínima pena da sociedade. Não poupa nada nem ninguém. Aliás, sinceridade e coragem é o que não faltam em Bukowski. O cara diz o que tem de ser dito, sem enrolação, sem meias-palavras, sem intelectualismos, sem literatice, sem hipocrisias. Bukowski coloca no chinelo praticamente todos os aspectos da sociedade contemporânea. Principalmente, o estilo de vida americano. 

Destrói, por exemplo, a babaquice do patriotismo e da vida "correta", produtiva e consumista. Suas ironias e sarcasmos chegam à crueldade. Seu cinismo é insano. É um chute na bunda geral. E o mais importante é que, assim como Poe em seu estilo, Bukowski realmente viveu o que escreveu. Misto-Quente conta a formação do menino Henry Chinaski, ou seja, do alter-ego de Bukowski, em meio à pobreza e às injustiças da Grande Depressão americana.É quase um romance autobiográfico. E sem aquelas insuportáveis análises intelectuais pretensamente filosóficas tão comuns em alguns escritores famosos. É vida escrita. Não há espaço para teorias ou hipóteses. É o ser humano sem nenhuma máscara. O trecho a seguir não está em Misto-Quente, mas em um dos seus contos, Grite Quando se Queimar: 

"Camus falava de angústia, terror e da miserável condição humana, mas falava disso de uma forma tão cômoda e floreada... Em outras palavras, era como se tudo fosse ótimo. Camus escrevia como alguém que acabou de concluir um lauto jantar de bife com batatas e salada, e depois enxaguou com uma garrafa de bom vinho francês". 

É exatamente o que não ocorre em Misto-Quente. Bukowski sentiu na pele o que escreveu. Fosse bom ou ruim. E Bukowski não tira a máscara da humanidade. Ele a arranca com uma bofetada, estando de frente para ela.  E não bate só nos outros, também bate em si mesmo, sem piedade. Confessa sua miséria e retira a coberta da miséria dos outros. Que não gostam de se admitir miseráveis. Bukowski não é de meio-termos. Impossível ficar indiferente à sua obra. Alguns terão nojo. Finalizo com um trecho de Misto-Quente:

"Era como se meu destino fosse ser um assassino, um ladrão de banco, um santo, um estuprador, um monge, um ermitão. Precisava de um lugar isolado para me esconder. A vida das pessoas sãs, dos homens comuns, era uma estupidez pior do que a morte. Parecia não haver alternativa possível. A educação também parecia uma armadilha. O que eram médicos, advogados, cientistas? Apenas homens que tinham permitido que sua liberdade de pensamento e a capacidade de agir como indivíduos lhes fosse retirada".

15 agosto 2013

da Escolha

tu podes dar à ave
um ave!
ou um bah!
ver no ser
o absoluto todo
ou absolutamente nada:
há na moeda
uma coroa
e uma cara
e há a escolha
se escreverás
de um lado
ou de outro
da folha

só não podes julgar
que
escolhido um lado
o outro deixa
de ter estado

13 agosto 2013

e sem Ressaca

garoa de névoa
tu cais como a verdade:
um nunca inundar
para jamais vir à tona
mas em umidade constante

a alma é úmida
como a pele de um sapo
que não pode
ser ressecado:
o que há de mais chato
que uma vida certa e seca
e sem Ressaca?

almas secas
rastejam pelo claro
na segurança
de ver-se enxutas
e nulas
e nuas...

viver
é tocar o que dor
sem a segurança da luva
e reconhecendo
a probabilidade da chuva...

11 agosto 2013

Os Sextetos de Brahms e a Paixão por Agathe

Os dois sextetos para cordas que Brahms escreveu, o Op. 18 e o Op.36, são os melhores sextetos da história da música. Tudo bem, está certo que sempre sou suspeito quando falo de Brahms, mas não conheço nenhum outro sexteto que se compare aos do gênio de Hamburgo. Não entre os compositores mais conhecidos (que não fizeram muitos sextetos, diga-se de passagem) e alguns menos conhecidos. E duvido que exista algum compositor entre os que não conheço que tenha feito algo melhor que essas maravilhas de Brahms.

Os sextetos não estão entre as obras mais conhecidas do compositor, o que é uma grande injustiça. São composições com o típico lirismo carregado de Brahms. Por um lado, trazem suas características melancolia e densidade, com alguns toques trágicos entre a renúncia e o pessimismo. Por outro, são de grande força vital, ternura, colorido e sensualidade, atingindo a rústica alegria campestre em alguns pontos. Escritos para dois violinos, duas violas e dois violoncelos, exigem muita técnica dos executantes.

Difícil decidir qual gosto mais. O Sexteto n°2 talvez seja mais consistente e mais bem acabado, porém o n°1 traz melodias de intensa inspiração, sem falar que o seu andante é uma das páginas mais marcantes da obra de câmara de Brahms. Há também uma versão para piano do andante.

Composto entre 1864 e 1865, o Sexteto n°2 foi escrito após o rompimento de Brahms com Agathe von Siebold, com quem manteve uma relação apaixonada. Entende-se a paixão de Brahms por Agathe, pois conta-se que era uma mulher de grande inteligência, espírito e sensibilidade. Bem, talvez não fosse tão bela quanto a Clara Schumann (a foto acima é de Agathe). Mas nem tudo é beleza. E nem todas são a Clara. Aliás, também se conta que Clara Schumann viu Brahms e Agathe em uma cena de beijinhos e ficou puta de ciúmes.

Brahms quase se  casou com Agathe. Mas ele tinha dúvidas quanto ao casamento. Expressou-se assim: "Te amo! Necessito ver-te novamente, porém não posso me colocar ataduras. Escreva-me para dizer se posso voltar e estreitar-te em meus braços, beijar-te e dizer que te quero". Bem, dizer a uma mulher sensível que "não posso me colocar ataduras"? É óbvio, que magoada e ferida, Agathe rompeu com o Johannes e nunca mais voltaram a encontrar-se.

O que restou foi que no primeiro movimento do Sexteto n°2, os violinos executam as notas A-G-A-D-H-E, que correspondem a lá-sol-lá-re-mi-si. Brahms teria dito sobre o seu segundo sexteto: "Nesta obra, libertei-me de meu último amor". E Agathe von Siebold foi eternizada em um dos maiores sextetos de todos os tempos.

10 agosto 2013

Soneto de um Outro Tempo

não, agora que soam tempos outros
eu falarei como te sendo o ausente
ou um nada que nem sequer se sente
um vazio pelas mentes dos doutos

pesteado bicho pelos campos solto
pingo de sangue na vagina quente
a poeira de um meteoro incidente
um palavrão na boca de um louco

serás o assalto de uma velha astuta
gosto insentido de cianureto
os pedaços de carniça em disputa

a navalha que num fígado eu meto
saliva morna de um beijo de puta
e a tua presença entre meu soneto

08 agosto 2013

de Patriotismo, Justiça e Política

I

sermos patriotas?
é o que querem as patotas:
que sejamos patos
tapados
patetas

II

a justiça
age cega surda e muda
e sem nenhum alarde:
para ela
antes nunca
do que tarde

III

político
é uma palavra esdrúxula
que quando em minúscula
rima com ridículo

06 agosto 2013

de Regras, Ironia e Equilíbrio

I

para que sigam
todos na estrada
fizeram as regras
e a sinalização:
para que se conheça
o que há mais além
há que se sair do caminho
e quebrar a barreira do “não”

II

o bom da ironia
(e isso não é uma ironia)
é que ela faz graça
sem trazer alegria.

III

percebo que o mundo
está em perfeito equilíbrio:
há um lado áspero
e outro liso...
o planeta me causa choro
a humanidade me causa riso


04 agosto 2013

Fragmento Absurdo de uma Existência Futura n°3 – Aquele Sorriso Estúpido

Eles instalaram câmeras na frente da minha casa, uma delas vigiava a minha porta, outras, minhas janelas. Queriam saber como eu estava me comportando. Não bastavam as que já existiam na minha rua. Não estavam gostando do meu comportamento, diziam que estava se tornando ofensivo, absurdo, inadmissível, e que se eu continuasse rumo ao “caminho negro” acabaria por ser preso ou levado para um sanatório. Estavam desconfiados de que eu era na verdade um retrógrado desaforado, um estúpido insensato que insistia em viver uma vida não “saudável”, não “luminosa”, não “feliz”. Havia regras a serem seguidas. Como eu ousava, por exemplo, não sair sorrindo nas ruas, alegre e contente?

De vez em quando, testavam-me, tiravam fotos minhas em alguns lugares públicos. Exigiam que eu posasse para as fotos. Não poderia me negar, ou seria carregado para um tribunal. Havia uma lei que proibia as pessoas de se negarem a pousar para fotos. Queriam ver se eu sorriria ou não nas fotos. Eu nunca sorria. Isso era um sinal, para eles, de que eu me considerava um infeliz. E que eu ousava, o que era o pior de tudo, a ostentar publicamente a minha infelicidade. Eu não era um infeliz. Nem um feliz. Apenas não gostava de fingir. O problema é que todos fingiam, para os outros e para si mesmos. E acreditavam fielmente nos seus próprios fingimentos.

Mas eu não fingia. Então, xingavam-me, alguns jogavam-me pedaços de objetos, lixos de todos os tipos, facilmente encontrado nas ruas imundas. Às vezes, havia uns filhos da puta mais esquentados que queriam me bater. Eu fugia, ou, não podendo, enfrentava-os. Batia e apanhava. Comecei a andar armado, carregava comigo sempre punhais e um revólver.

Eu já era quase um criminoso por não sorrir nas fotos, carregar armas não faria muita diferença. Estavam para aprovar uma lei que obrigaria as pessoas a sempre sorrir quando posassem para fotos. Eles me gritavam, quando eu não sorria: “Tu vai ver, não perde por esperar, vamos te prender, seu desgraçado!” Outra lei, também incluída no pacote a ser aprovado pelo Congresso Nacional, obrigaria todos a frequentarem academias, correrem nos parques, vestirem roupas modernas e “felizes” e a tomar suplementos vitamínicos. Tudo com o obrigatório acompanhamento médico. Fazer exercício ou comer frutas por conta própria, por exemplo, sem a supervisão médica, não seria permitido. Existia ainda uma outra lei que obrigaria as pessoas a ouvir o que chamavam de “música divertida” e assistir a algum “programa divertido” ao menos uma vez por semana. Diziam que era para o nosso próprio bem-estar físico e psíquico. Ou seja, músicas de merda e programas de merda, imbecis, idiotizantes. Para a fiscalização de tais leis, instalariam câmeras dentro de nossas casas.

Sentiam também meu cheiro de cigarro. Desconfiavam que eu fumasse em público. O que não era permitido, por lei, já há tempos. Aliás, não era permitido fumar ao ar livre. Somente dentro de nossas casas. Se fôssemos flagrados fumando ao ar livre, mesmo que dentro de nossos pátios, poderíamos ser processados por crime contra a saúde pública. Certo dia estava fumando, escondido das câmeras, na frente de minha casa. Surgiu um cara do nada, com uma espécie de porrete de madeira na mão. Gritou:

- Agora tu vai aprender a não fumar mais, espalhando essa porra de fumaça venenosa, seu monte de bosta, maldito fracassado fodido de merda, vou arrebentar tua cabeça burra e teus pulmões pretos!

- Ah, vai tomar no cu! eu disse.

Tive que matá-lo. Dois tiros no peito. Era ele ou eu. O problema é que eu não poderia alegar legítima defesa, pois estava cometendo um crime imperdoável, o de fumar ao ar livre.  Mas se o cara tivesse me matado, ele ficaria impune, afinal, ele teria agido com ética. Seria um herói.

Tive sorte de as ruas estarem deserta naquela hora. Coloquei seu cadáver no carro e levei para uma rua barrenta e imunda no fim do meu bairro, um dos lugares horríveis para onde os marginalizados eram jogados para não ofender o centro da cidade com sua miséria e feiura. A polícia praticamente nunca aparecia por lá.  A não ser quando era para espancar ou matar algum coitado ladrão de laranjas. Eles nunca prendiam as pessoas que viviam ali. O governo dizia que não valia a pena. De vez em quando, mandava a polícia ou o exército para matar alguns dos miseráveis, para evitar que se proliferassem muito. A lei permitia, e todos achavam justo, exceto os miseráveis, que, obviamente, nunca eram ouvidos.  O cadáver do cara que eu tinha matado lá seria rapidamente comido pelos cachorros famintos. Creio que até algumas pessoas cortariam alguns pedaços para assar em seus barracos.

Outra coisa que o governo obrigava as pessoas a fazer era, ao mesmo uma vez por mês, realizar, nos fóruns de justiça, uma declaração sobre o que nós pensávamos acerca do governo, da cidade, do país, da nossa vida, da civilização como um todo. Se nossas visões eram negativas, se declarávamos que haviam graves problemas com a nossa vida e com a dos outros, se ousássemos proferir que a civilização não valia coisa nenhuma, que a humanidade estava definitivamente perdida, que os governos estavam errados e eram apenas corruptos tentando levar a sua parte, que não existiam nações, mas apenas corporações sugando povos, que o planeta agonizava, enfim, se não estampássemos uma imagem de completa felicidade, satisfação e bem-estar, com tudo e com todos, de alegria e alto astral, seríamos imediatamente algemados, colocados numa camisa de força e levados para uma espécie de sanatório onde  passaríamos por um “sessão de tratamento”, que nada mais era do que uma lavagem cerebral.

Conheci várias pessoas que passaram pelo “tratamento”. Pessoas inteligentes que se tornaram completos imbecis. Legítimos bobos alegres. Eu sentia uma desolação insuportável quando os via. Alguns eram meus amigos. Tive que me afastar deles, era impossível conviver com tamanha vacuidade e babaquice.

            Eu sempre fiz um grande esforço para mentir e ser um ator convincente nas minhas declarações. Eram as únicas vezes da minha vida em que realmente fingia. Era isso ou o sanatório. Não era fácil. Eles sabiam como nos provocar, irritar, para que saíssemos do sério, indignados, e disséssemos alguma verdade indesejada. Tanto para eles quanto para mim, que seria levado, sem qualquer chance de reação, para a lavagem cerebral.

            Amanhã é o dia em que devo me apresentar naquele fórum imundo. Tenho náuseas só de pensar que deverei pisar aquelas camisinhas usadas que sempre estão jogadas na entrada do fórum. Já estou de saco cheio dessa farsa estúpida. Mas terei que continuá-la.

            Guardei o carro, limpei o sangue, e fui dar uma caminhada. As ruas fediam. Sentei em uma praça de árvores quase secas e sem pássaros. Enquanto contemplava o horizonte poluído da cidade e cantava mentalmente melodias de Brahms, surgiu uma daquelas moças imbecis que abundam nos parques. Até que era bonita. Parou, olhou-me com seus olhos vazios e, sem parar de sorrir bondosa e estupidamente um só segundo, disse:

- Moço, por que tanta tristeza, no que você está pensando? Aposto que não são coisas boas, não é mesmo? Quem sabe você levanta, dá uma volta no parque, aproveita o sol e sai pra curtir a vida? Hein?

- E tu, por que não tira esse sorriso estúpido da tua cara?

- O quê? Disse ela ainda sorrindo daquele jeito.


Eu não aguentava mais aquele sorriso idiota. Levantei-me rapidamente, agarrei de súbito o seu corpo, que era bonito, e dei um beijo na sua boca. Era a única forma de ela acabar com aquele sorriso estúpido.

02 agosto 2013

12 Dicas (Melhoradas) para ser Odiado


Hoje, um textinho de autoajuda. Ajude-se a ser odiado:

I - Seja independente. Não se prenda a nada nem a ninguém. Você será chamado de egoísta, arrogante e ressentido.

II - Pense. Isso é difícil, e quem faz coisas difíceis é odiado por inveja.

III - E cometa o delito de dizer o que pensa. De preferência, argumentando. Se souber argumentar e sustentar suas ideias, tanto maior será o ódio.

IV - Não submeta suas opiniões às opiniões dos outros. Isso é muito antipático e todos odiarão você.

V - Procure não seguir o que está na moda. Você será considerado um esnobe.

VI - Contrarie os gostos populares, rejeitando e/ou questionando tudo o que for considerado bom pelo povo em geral. Isso é insuportável.

VII - Desenvolva uma personalidade forte, firme e corajosa. Ninguém gosta de pessoas assim.

VIII - Jamais adule, ou puxe o saco, ou se venda. Os outros pensarão: “Mas que merda, como que esse filho da puta consegue resistir?”

IX - Procure dizer a verdade sobre aquilo que nos cerca. Se der, ironize, para doer um pouquinho mais. A ironia desperta o ódio mais profundo do ironizado porque é um deboche contra o qual não se pode reagir. Se se reage, é porque serviu o chapéu.

X - Julgue o que for medíocre como sendo o que é: medíocre. Ninguém gosta de ser medíocre, e ninguém acha que é. Mas a maioria das pessoas é medíocre, ou seja, as pessoas são médias, nem realmente boas nem totalmente ruins no que fazem. Se bem que há muitos totalmente ruins.

XI - Tenha talento em alguma coisa. Ou o desenvolva, se der. E quanto mais talento tiver, maior será o ódio. O talento é imperdoável.

XII - Por fim, faça algumas coisas que os outros não aprovam que você faça. Se fizer de forma espontânea, tanto melhor. Mas fazer por gosto de vez em quando também é foda.

(Na imagem, detalhe do quadro "Os Sete Pecados Capitais", (A Ira) de Hieronymus Bosch.)

01 agosto 2013

de Vinhos e Tragos

pé por pé
como quem pisa a noite
e cada passo
era cada passo um século
a cada século
gota a gota
eu entornava a vida
e passo a passo
eu me passava aos poucos
como o marchar de adágios
lentos ventos e roucos

formei-me de lagos
de vinhos e tragos
a tropeços e cantos
a cada compasso
com passo de tango
trôpego e pândego
violinadas pizzicatas
em copos taças e pratas

lasso cansaço
secando-me a alma
saciei-me em fermentos
entre ébrios e versos
entre sangues e régios
gênios, jumentos

gole por gole
emborrachei-me de ocaso
mandei os todos às fodas
e fui beber-me de todas

30 julho 2013

Autoajuda*

autoajuda
eficiente
é dizer-te
que te sagres
antes
que te façam sagrado
que saques
antes que te tenham sacado
e que sangres
antes que te tenham sangrado

melhor atirares no ponto
antes que te atirem da ponte
melhor puxares a faca
antes que te puxem a maca

se no cavalo
se coloca o encilho
no homem
se coloca o gatilho

no hoje em dia
amigo
não há como
se livrar dessa roda:
o sangue
está sempre na moda

*Poema reelaborado e republicado

29 julho 2013

Cimento de Merda

hoje
o homem
cresce fácil
o seu “conhe-cimento”
mas vai perdendo
os tijolos
das paredes cardíacas
e diminuindo os fermentos
da massa dos miolos
cinzentos

27 julho 2013

“Há Algo de Podre...”

E não é só no reino da Dinamarca, caro amigo Hamlet. Assim como a música um dia desceu das esferas, o desastre da era pós-humana cai adiante. A fumaça do meu cigarro forma algo semelhante a um halo de santidade ao meu redor. Enquanto aquelas quatro fêmeas débeis mentais acendem incensos de merda a três passos da minha miséria.  Querem, aquelas idiotas, afastar o fedor nauseabundo, penetrante que destrói minhas narinas. Contemplo, resignado há muito, a névoa do cigarro e dos incensos subirem aos céus. Tudo inútil. O fedor prossegue. Piorado.

Vapores esbranquiçados saem de orifícios, buracos escuros, latrinas espalhadas pelas ruas. Vapores ferventes. Ao lado, apodrecem carnes sanguinolentas, pedaços de órgãos sexuais. Com uma estúpida ardência nos olhos, consigo debilmente distinguir ao longe a fumaça negra das indústrias. Partem como redemoinhos endemoniados para o espaço. Mau-cheiro com o qual não consigo me adaptar, mesmo após séculos. 

O desenvolvimento que nunca cessa. Daquele rio não sobrará nem o sorriso. Fedendo como uma boca de dentes cariados, o rio parece proporcionar um show de espumantes vapores que brilham pela escuridão. Névoas roxas, esverdeadas, amareladas, escarlates, algumas vezes prateadas, bailam como fantasmas acima de suas imundas águas nervosas. Por onde caminho, há um visco negro da mistura de líquidos seminais, de toda espécie de vísceras liquefeitas, gangrenas, corrimentos vaginais, soros sanguíneos, que unidos naquele horror apodrecem espalhando desgraças pelas atmosferas sufocantes.

A alguma distância do meu desespero há um banhado.  Foi um dia um banhado de água, hoje é de sangue. Animais e fetos humanos são jogados ali. Aproximei-me, mesmo sabendo que vomitaria. Ainda que esteja sem comer nada há dias. Não confio nos alimentos que me dão no trabalho. Aquele escritório fede. Realmente não sei por que ainda compareço naquela merda de escritório. Não há nenhum sentido nisso. Nem em escritórios, nem em trabalho. Vomitei, uma gosma branca e espumosa, parecia a água do rio.

Aliás, o que é que faz sentido?

Estou agora do lado banhado. Cismei com o dedinho mingo podre daquela criança.  Estava meio erguido e esverdeado, com moscas verdes na ponta. De alguma forma, era belo. Havia uma beleza naquele horror. Por que não poderia? Também vi ali alguns corpos de velhos e velhas que tinham se suicidado. Algumas das crianças mortas também tinham se matado. Não sei bem o motivo. Dizem que foi por não terem o que queriam. Outros velhos foram  trazidos dos asilos e ali jogados. Ainda vivos, mas muito doentes. Não havia motivos para cuidar dos velhos. Perda de tempo, de dinheiro e de diversão. Assim exigia a sociedade. Havia certa lógica. Vomitei. Um líquido seco esbranquiçado.

Aquela névoa dos miasmas da putrefação é uma das coisas mais lindas que vejo há anos. A névoa imunda, mas bela, nasce nos órgãos corrompidos dos cadáveres, como bafos de vermes, sobem aos céus nublados. Céus ameaçadores.

Agora, passando por baixo de algumas árvores sem folhas, lá onde deixei minha espera, algumas gotas de sangue começam a pingar sobre meus cabelos oleosos, sobre minha pele irritada, sobre todo o chão diante de mim. Um sangue vinagroso. De vez em quando, caem gotas de pus.  Há aves mortas penduradas nas aves. Alguém as deixou ali. E fedem. Tanto as aves como quem as matou. O calor é absurdo.

            Caminho como quem se destina à forca. Mereceria se o fosse. Sou culpado e admito. Mas talvez a névoa que me cerca e cerca a todos não deixa que minha culpa seja percebida. Aqueles ali, com tanta ou mais culpa do que eu, comem mariposas sob as árvores ressecadas. E as pessoas, não suportando mais aquele calor dos diabos, saem de suas casas, enlouquecidas, caóticas, vorazes, capengas, num fedor alucinante de suor e de excrementos. Junto, correm bandos e mais bandos de ratos e baratas. Algumas daquelas pessoas trazem rodelas de infecções na pele. Devem ser furúnculos. Fedem sob o calor, como merda cozida pelo sol. Os vapores que saem daquelas feridas devem ser contagiosos. Não sei, mas é o que imagino. E mais ratos e baratas, e também cachorros, saem pelas portas, pelas janelas, pelos telhados, observados atentamente por abutres exaustos no alto das torres.

Os abutres arrotam sem parar, percebo que seus abdomens estão dilatados. Mas esqueço dos abutres para observar algumas bonitas meninas esqueléticas que vejo passar.  Realmente bonitas, olhos verdes como as moscas no dedinho da criança morta, mas não conseguem fechar suas bocas, literalmente. Não quero dizer que elas falam muito, quero dizer que elas não conseguem movimentar suas mandíbulas. Deve haver algum problema com elas. Estão sempre de boca aberta.  O fedor que sinto deve ser mau-hálito. Não sei se meu ou delas.

Tenho saudade do tempo em que as florestas queimavam. Agora não há o que ser queimado. De tanta saudade, agora comecei a queimar flores. Rosas, camélias, tulipas, gerânios, violetas, lírios, eu as queimo todas.  É bom o cheiro da sua fumaça. Bem melhor que o fedor das ruas. É o único perfume possível de ser sentido, a névoa da queima das flores. Lamento que sejam tão passageiras. As flores passam tão rápido. E lá vão elas, cinzentas em forma de fumaça para os ouvidos dos anjos.

Devo agora descansar um pouco. Sento-me na escadaria de um bar. O fedor de mijo é insuportável. Mas já estou acostumado. Peço cachaça bagaceira. A fétida névoa da noite nessas horas finais do dia já começa a envolver tudo. Fica mais densa, mais úmida, mais pesada, quase pegajosa. Parece que o fedor é exalado até mesmo pelas luzes doentias da cidade. Da cidade agonizando em seu sono suarento.
Toda a sensibilidade do mundo apodrece ao meu redor.

(Na imagem, o quadro "Hamlet e Horácio no Cemitério", de Delacroix)


25 julho 2013

Só a Bala

há momentos
(que nem tampouco
são poucos)
em que não entendo
qual a real
esperança
que traz toda gente
e a faz
morrer em frente

desde os que louvam a vida
negando a sua existência
até os que dizem
de sua existência
negando o como vivê-la
e que veem diferenças
entre um ser
e uma estrela

há um momento
no qual
o real
(que se vive
sem em realidade
se sabê-lo)
é tão somente
um não adianta
diante
de tanta...
anta

e não importa
o que se busca
o que se sonha
o que se traga
o que se faz
o que se fala

há momentos
que com toda gente
só a bala

24 julho 2013

Contra hipocrisias, tome uma dose de Bukowski

Abaixo, trecho de um diálogo do romance Hollywood, em que Henry Chinaski, personagem principal de vários romances,contos e poemas de Bukowski, e algo como seu alter ego, é entrevistado e onde se menciona sobre seu hábito de beber muito.

A entrevistadora pergunta:
"- Acha que que se deveria glorificar a bebida?
- Não mais do que qualquer outra coisa...
- Beber não é uma doença?
- Respirar é uma doença.
- Não acha os bêbados condenáveis?
- Acho, a maioria. E também a maioria dos abstêmios."

Como diria Fernando Pessoa, "Dá-me mais vinho, que a vida é nada."

22 julho 2013

Palco de Palhaços

engraçado
como a humanidade
tornou-se risível
(nos dois sentidos)
neste mundo-circo
sem graça
(des) graça
(nos três sentidos)

à medida que a terra
é aniquilada
há mais razões para piada

assim como o lixo
é cumulativo
mais se acumulam
motivos de riso
e sobre o pesar
de aves massacradas
revoa a leviandade
de frívolas
gargalhadas

aos olhos
da gravidade dos tempos
o horror é o maior dos sarcasmos
o amor é mais um deboche
o poema deve ser ironia

(mais fulge o branco dos dentes
quanto mais a situação é sombria)

este planeta aos estilhaços
tornou-se um palco de palhaços

21 julho 2013

de Amar

no onírico
a alma é água
então há lago
o princípio do verso
com o que há na minha sina
há salto
em que havia em tua lágrima
em que há vôo
há queda
e há lado
e o que há
em cada deles
é o que há no todo

busquei no que passa
o que há sombra
há sempre menos
no que há de mais
o que há funda (me)
como se fosse início
de alto e precipício

e há as sentenças
que vós há sinais
com rio e sangue
por onde há rasto
o meu há lento
em frio olhar
e por fim há sopro
há claro
há solo
mas ao humano
de leito seco
não há mar

18 julho 2013

Manifesto Antipático*

não concedo
não sou
de concessões
nem de um
nem de outro tipo
evito
suavidades
e atos
que voltam atrás
aliás

não agrado
não dou o braço
(talvez só
para a dança...)
não busco a paz
não mais
(quem é pacífico
me cansa)
não me retrato
nem retrocedo
(se um dia o fiz
eu me arrependo)

não dou ouvidos
nem ouço motivos
radicalizo
definitivo
e com deboches broncos
as babetes
babadoras de botas
eu ironizo

e também não perdoo
não alivio
ou contemporizo
mas se me juram
o contrário
é claro
que não acredito

faço miséria
e mau poema

nem sinto pena


*Poema reelaborado e republicado.

Criação

I

pouco faço:
crio
como a água
desce o rio

II

se Deus
existe ou não
não
sei
sei
que a imaginação
(mas não que eu saiba)
é a continuação

III

poesia
é o que resta
do que foi verdade
em um certo dia...