Eles
instalaram câmeras na frente da minha casa, uma delas vigiava a minha porta,
outras, minhas janelas. Queriam saber como eu estava me comportando. Não
bastavam as que já existiam na minha rua. Não estavam gostando do meu
comportamento, diziam que estava se tornando ofensivo, absurdo, inadmissível, e
que se eu continuasse rumo ao “caminho negro” acabaria por ser preso ou levado
para um sanatório. Estavam desconfiados de que eu era na verdade um retrógrado
desaforado, um estúpido insensato que insistia em viver uma vida não
“saudável”, não “luminosa”, não “feliz”. Havia regras a serem seguidas. Como eu
ousava, por exemplo, não sair sorrindo nas ruas, alegre e contente?
De
vez em quando, testavam-me, tiravam fotos minhas em alguns lugares públicos.
Exigiam que eu posasse para as fotos. Não poderia me negar, ou seria carregado
para um tribunal. Havia uma lei que proibia as pessoas de se negarem a pousar
para fotos. Queriam ver se eu sorriria ou não nas fotos. Eu nunca sorria. Isso
era um sinal, para eles, de que eu me considerava um infeliz. E que eu ousava,
o que era o pior de tudo, a ostentar publicamente a minha infelicidade. Eu não
era um infeliz. Nem um feliz. Apenas não gostava de fingir. O problema é que
todos fingiam, para os outros e para si mesmos. E acreditavam fielmente nos
seus próprios fingimentos.
Mas
eu não fingia. Então, xingavam-me, alguns jogavam-me pedaços de objetos, lixos
de todos os tipos, facilmente encontrado nas ruas imundas. Às vezes, havia uns filhos
da puta mais esquentados que queriam me bater. Eu fugia, ou, não podendo,
enfrentava-os. Batia e apanhava. Comecei a andar armado, carregava comigo
sempre punhais e um revólver.
Eu
já era quase um criminoso por não sorrir nas fotos, carregar armas não faria
muita diferença. Estavam para aprovar uma lei que obrigaria as pessoas a sempre
sorrir quando posassem para fotos. Eles me gritavam, quando eu não sorria: “Tu
vai ver, não perde por esperar, vamos te prender, seu desgraçado!” Outra lei,
também incluída no pacote a ser aprovado pelo Congresso Nacional, obrigaria todos
a frequentarem academias, correrem nos parques, vestirem roupas modernas e
“felizes” e a tomar suplementos vitamínicos. Tudo com o obrigatório
acompanhamento médico. Fazer exercício ou comer frutas por conta própria, por
exemplo, sem a supervisão médica, não seria permitido. Existia ainda uma outra
lei que obrigaria as pessoas a ouvir o que chamavam de “música divertida” e
assistir a algum “programa divertido” ao menos uma vez por semana. Diziam que
era para o nosso próprio bem-estar físico e psíquico. Ou seja, músicas de merda
e programas de merda, imbecis, idiotizantes. Para a fiscalização de tais leis,
instalariam câmeras dentro de nossas casas.
Sentiam
também meu cheiro de cigarro. Desconfiavam que eu fumasse em público. O que não
era permitido, por lei, já há tempos. Aliás, não era permitido fumar ao ar
livre. Somente dentro de nossas casas. Se fôssemos flagrados fumando ao ar
livre, mesmo que dentro de nossos pátios, poderíamos ser processados por crime
contra a saúde pública. Certo dia estava fumando, escondido das câmeras, na
frente de minha casa. Surgiu um cara do nada, com uma espécie de porrete de
madeira na mão. Gritou:
-
Agora tu vai aprender a não fumar mais, espalhando essa porra de fumaça
venenosa, seu monte de bosta, maldito fracassado fodido de merda, vou
arrebentar tua cabeça burra e teus pulmões pretos!
-
Ah, vai tomar no cu! eu disse.
Tive
que matá-lo. Dois tiros no peito. Era ele ou eu. O problema é que eu não
poderia alegar legítima defesa, pois estava cometendo um crime imperdoável, o
de fumar ao ar livre. Mas se o cara
tivesse me matado, ele ficaria impune, afinal, ele teria agido com ética. Seria um herói.
Tive
sorte de as ruas estarem deserta naquela hora. Coloquei seu cadáver no carro e
levei para uma rua barrenta e imunda no fim do meu bairro, um dos lugares
horríveis para onde os marginalizados eram jogados para não ofender o centro da
cidade com sua miséria e feiura. A polícia praticamente nunca aparecia por
lá. A não ser quando era para espancar
ou matar algum coitado ladrão de laranjas. Eles nunca prendiam as pessoas que
viviam ali. O governo dizia que não valia a pena. De vez em quando, mandava a
polícia ou o exército para matar alguns dos miseráveis, para evitar que se
proliferassem muito. A lei permitia, e todos achavam justo, exceto os
miseráveis, que, obviamente, nunca eram ouvidos. O cadáver do cara que eu tinha matado lá
seria rapidamente comido pelos cachorros famintos. Creio que até algumas
pessoas cortariam alguns pedaços para assar em seus barracos.
Outra
coisa que o governo obrigava as pessoas a fazer era, ao mesmo uma vez por mês,
realizar, nos fóruns de justiça, uma declaração sobre o que nós pensávamos
acerca do governo, da cidade, do país, da nossa vida, da civilização como um
todo. Se nossas visões eram negativas, se declarávamos que haviam graves
problemas com a nossa vida e com a dos outros, se ousássemos proferir que a
civilização não valia coisa nenhuma, que a humanidade estava definitivamente perdida,
que os governos estavam errados e eram apenas corruptos tentando levar a sua
parte, que não existiam nações, mas apenas corporações sugando povos, que o
planeta agonizava, enfim, se não estampássemos uma imagem de completa
felicidade, satisfação e bem-estar, com tudo e com todos, de alegria e alto
astral, seríamos imediatamente algemados, colocados numa camisa de força e levados
para uma espécie de sanatório onde
passaríamos por um “sessão de tratamento”, que nada mais era do que uma
lavagem cerebral.
Conheci
várias pessoas que passaram pelo “tratamento”. Pessoas inteligentes que se
tornaram completos imbecis. Legítimos bobos alegres. Eu sentia uma desolação
insuportável quando os via. Alguns eram meus amigos. Tive que me afastar deles,
era impossível conviver com tamanha vacuidade e babaquice.
Eu sempre fiz um grande esforço para mentir e ser um ator
convincente nas minhas declarações. Eram as únicas vezes da minha vida em que
realmente fingia. Era isso ou o sanatório. Não era fácil. Eles sabiam como nos
provocar, irritar, para que saíssemos do sério, indignados, e disséssemos
alguma verdade indesejada. Tanto para eles quanto para mim, que seria levado,
sem qualquer chance de reação, para a lavagem cerebral.
Amanhã é o dia em que devo me apresentar naquele fórum
imundo. Tenho náuseas só de pensar que deverei pisar aquelas camisinhas usadas
que sempre estão jogadas na entrada do fórum. Já estou de saco cheio dessa
farsa estúpida. Mas terei que continuá-la.
Guardei o carro, limpei o sangue, e fui dar uma
caminhada. As ruas fediam. Sentei em uma praça de árvores quase secas e sem
pássaros. Enquanto contemplava o horizonte poluído da cidade e cantava
mentalmente melodias de Brahms, surgiu uma daquelas moças imbecis que abundam nos
parques. Até que era bonita. Parou, olhou-me com seus olhos vazios e, sem parar
de sorrir bondosa e estupidamente um só segundo, disse:
- Moço, por que tanta
tristeza, no que você está pensando? Aposto que não são coisas boas, não é
mesmo? Quem sabe você levanta, dá uma volta no parque, aproveita o sol e sai
pra curtir a vida? Hein?
- E tu, por que não tira
esse sorriso estúpido da tua cara?
- O quê? Disse ela
ainda sorrindo daquele jeito.
Eu
não aguentava mais aquele sorriso idiota. Levantei-me rapidamente, agarrei de
súbito o seu corpo, que era bonito, e dei um beijo na sua boca. Era a única
forma de ela acabar com aquele sorriso estúpido.
2 comentários:
ótimo escrito!
muito interessante de fato, diálogo muito bem escrito.
parabéns!
Reflexão interessante sobre a ditadura da felicidade.
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