04 junho 2007

Adolphe - William Bouguereau


O Ser Feminino

Mais uma vez chegara o detestável verão. No entanto, ele trazia-me um consolo: era a época em que iria para a fazenda de meus avós, o que significava ausentar-me momentaneamente do lodo da cidade. Meu estado de espírito melhorou substancialmente logo ao primeiro contato com os ares campestres, e chegando àquela antiga morada carregada de mágicas ancestralidades, esqueci quase que por completo minha lamentável existência urbana.

Após um dia inteiro passado no campo vivenciando profundas e inigualáveis sensações que somente a natureza imaculada poderia proporcionar-me, retornei quase à noite para o casarão, situado em meio a uma infinidade de árvores frutíferas. Depois de um saboroso e restaurador jantar, sentamo-nos eu e meus avós na rústica e singela sala, impregnada de arcaicas recordações da infância, onde meus avós principiaram a contar por inesquecíveis minutos as suas vetustas histórias de assombrações, fantasmas, seres monstruosos e outras aparições enigmáticas, maravilhas das experiências dos mais velhos, sempre ignoradas ou ridicularizadas pela “pós-moderníssima” civilização decadente. Mas quanto a mim, tudo isso me atrai e fascina terrivelmente... Leva-me para outro tempo e espaço, sinto-me mergulhado em outro mundo, que, naquele instante, poderia ser o da minha infância, o mundo dos sonhos ou outras dimensões sobrenaturais... E fui deitar-me sob aquele teto que exalava o cheiro do passado, entre aquelas paredes que pareciam saber de arcaicos segredos perdidos no tempo, imerso naquele ambiente denso e saturado de espectros da antigüidade, recordando-me inquieto e encantado de todos os possíveis mistérios daquelas “histórias extraordinárias”.

Na manhã seguinte, levantei-me cedo e, após um breve café, parti entusiasmado para o campo. Passadas algumas horas de lenta caminhada por uma extensa mata, penetrei em um local um tanto não-familiar, bastante diferente daqueles que já conhecia. Aquele ambiente transmitia-me, devido à sua estranheza, certo receio de avançar, mas resoluto e sedento por novas emoções, passo a passo fui adentrando mais e mais por entre aquelas sombrias e centenárias árvores. Minutos depois, pensei ter avistado, em uma clareira à frente de onde me situava, um vulto semelhante ao de uma mulher. Aproximei-me e pude divisar por entre os vastos arbustos uma belíssima jovem, de uma beleza fascinante, invulgar, assombrosa, que me impressionou no íntimo da alma. Possuía longos cabelos lisos de uma cor indefinida, ora parecendo castanhos, dourados, às vezes de um louro acinzentado e brilhante e, em outras vezes, verdadeiramente prateados. Sua pele era estranhamente branca, e seus olhos de um inadmissível azul-marinho, às vezes pendendo para o lilás. Seu rosto era absolutamente perfeito, impossível imaginar maior perfeição em uma mulher. Seu corpo apresentava formas completamente definidas e delineadas, pelo menos no que se podia discernir através do belo e simples vestido azul-celeste que trajava.

Aquela jovem angelical, bela e esquisita, colhia flores de uma árvore de floração vermelha intensa, quando, creio, ouviu o som de meus passos. Nisso, largou as flores e entrou rápida e graciosa na mata. Tentei segui-la, mas em questão de segundos desapareceu como que por encanto. Não consegui, apesar de minha insistência, encontrar nenhum sinal de para onde ela poderia ter ido, não havia vestígio de pegadas ou do que quer que fosse.

Cansado e decepcionado, resolvi retornar à fazenda. Na volta, tentava explicar a mim mesmo quem seria aquela jovem mulher tão bela, de onde viera, para onde fora. Sabia que não havia outros moradores próximos à fazenda de meus avós, e aquela mulher não poderia ter vindo de muito longe. De imediato veio-me à mente a lembrança de uma das narrações de meu avô, em que havia a aparição de belas mulheres que surgiam nas matas e desapareciam entre as águas dos rios. Disse-me ele que os antigos temiam as mesmas, pois se acreditava que elas carregavam as pessoas que delas se aproximavam para o mundo dos mortos. Seria a história mais que uma fantástica lenda? Era no que refletia... A jovem era de uma beleza realmente sobre-humana, não poderia ser normal...

No dia seguinte e nos próximos sete dias que estive no campo, saí à procura daquele esplêndido ser feminino, impossível esquecer tão prodigiosa beleza. No entanto, apesar de minhas infatigáveis buscas por pradarias e bosques, não percebi o menor indício da jovem. Porém, no último dia de minha estada na fazenda, já à tardinha e quando voltava desiludido ao casarão, ela surgiu diante de mim como uma materialização, saindo de atrás de uma enorme árvore. Olhou-me e sorriu deslumbrantemente, indicando que eu a seguisse. Fascinado e boquiaberto, não hesitei. Corri por entre a mata como um lunático, lutando para não perdê-la de vista, até que ela se deteve à beira de um fulgurante riacho. Estaquei como um demente diante de tanta ternura e beleza veneráveis e, embora cheio de dúvidas, não consegui articular uma palavra. A bela, então, com uma inefável voz de anjo, a mim dirigiu-se:

- Bem-vindo, jovem visitante. Este é meu lar. Aqui vivo com minha família há centenas de anos. Sei que tens me procurado, e como simpatizei muito contigo, decidi apresentar-me. Sou um espírito das águas, um elemental, uma ondina. Ficaria imensamente feliz se viesses sempre me visitar, és tão bonito. Por favor, diz alguma coisa, desejo tanto ouvir tua voz... Queres saber meu nome? Oh, não consegues falar! Eu já esperava. Bem, então agora, deves voltar à tua casa, para pensares melhor em mim... Vai, belo humano, mas saibas que desejo que voltes. Sim, voltarás, e hei de ouvir tua voz... Leva o meu beijo...

Após ser beijado por aquele ser etéreo, senti-me como que na presença de deusas celestiais... Porém, em segundos, e sem que eu proferisse uma única palavra, a inenarrável mulher, voando como um anjo, mergulhou nas águas cristalinas do riacho e desapareceu definitivamente de meus olhos. Nem soube seu nome. Como era quase noite, mesmo contrariado, tive que voltar à fazenda, em estado de êxtase e, simultaneamente, de uma funda e cortante tristeza. Tristeza, porque no dia seguinte deveria retornar à cidade. Quando tornaria a vê-la? Desgraçadamente, impostergáveis compromissos aguardavam-me, teria que abandonar minha amada ondina. Naquele momento detestei e amaldiçoei com todas as forças a vida comum e vulgar do homens, seus odiosos compromissos, seus empregos e trabalhos inúteis e mecanizantes, a monotonia insuportável daquela vida materialista, estressante, aniquiladora dos fundos sentimentos e da real espiritualidade.

Retornei à cidade. Passado um mês, já me era intolerável minha existência urbana. Todos os meus pensamentos e emoções dirigiam-se a um único destino: a ondina. Cada minuto vivido na cidade, desperdiçado com os assuntos corriqueiros do cotidiano, considerava como um minuto a menos que poderia ter passado ao lado dela. Estava farto de ver aquelas mesmas pessoas mesquinhas e insensíveis, que somente viviam para a inveja, para a vaidade, para a cobiça. Não tinha mais nada a dizer a nenhuma delas. Só ansiava abandoná-las para sempre, esquecê-las de forma peremptória, bani-las de minha mente, para que nela ficasse a pura e esplêndida lembrança da minha querida ondina. Não sei exatamente que espécie de fascínio, de magia, de feitiço, de maldição aquele ser feminino fez recair sobre mim, mas seja o que for, obteve pleno sucesso. Encontrava-me a ponto de largar tudo, emprego, vida social, dinheiro, bens familiares para ir ao encontro da misteriosa jovem. Cometeria qualquer loucura para sentir novamente em meus lábios aquele beijo imaterial... Não desejava outra espécie de companhia, a não ser a da estranha menina, não desejava ouvir outra voz, a não ser a sua, tão límpida e elevada como uma Paixão de Bach...

De modo que em certa manhã, tendo planejado tudo em absoluto segredo, deixei meu derradeiro adeus à vida entre os humanos e parti desvairado para a fazenda. Estava pouco ligando para o que poderiam pensar a meu respeito quando soubessem de minha partida, deixei apenas uma carta explicando que necessitei viajar, mas não mencionei meu local de destino. Na verdade, nem mesmo meus avós souberam de nada, pois me dirigi direto ao local onde fora beijado pela ondina, que não saía de meus sonhos alucinados.

Chegando lá, larguei sobre a grama as poucas coisas que trouxera, sentei-me à beira do riacho e aguardei o surgimento do belo ser. Permaneci assim durante todo dia e toda noite, sem dormir, mas ela somente concedeu a graça de sua visão no dia seguinte, próximo ao meio-dia. Desde então, nos 14 dias subseqüentes, não arredei pé do local nem por segundos, contemplando hipnotizado aquele ser magnífico, ouvindo suas miríficas canções de mágica dramaticidade, numa expressão de sonhos... No primeiro dia que a vi, minha idolatrada ondina surgiu na forma de uma intensa luminosidade azul-cintilante, para logo assumir seu comovente aspecto físico. Recebeu-me com um beijo que não saberia descrever. Em seguida, cobrou-me que ainda desejava ouvir minha voz. Satisfiz seu desejo declarando meu insignificante nome e confessando o que sentia por ela, as loucuras que cometi, meu absoluto fascínio que tem me carregado nas garras da insânia. Ela olhou-me fixamente e expressou tão terno sorriso que me transportou a esquisitas sensações oníricas...

Impossível descrever cabalmente as experiências que vivenciei naqueles dias. Conheci sua família, todos seres absurdamente belos, além de outros entes fantásticos, como as sílfides, elementais do ar, que pairavam sobre as águas do rio. Nem mesmo em meus mais febris sonhos poderia imaginar-me viver enlaçado em tão mágicos beijos e abraços... Contudo, ao final do 14º dia, a ondina soprou-me aos ouvidos:

- Em breve, os humanos virão, poluirão este rio, devastarão esta floresta, destruirão nosso imaculado lar. Devemos partir. Hoje iremos para outras regiões do universo. Tu irás conosco. Vem, dá-me tua mão.

Obedeci. E, rápidos como a luz, viajamos para ignotas regiões... Sei que, passados alguns dias, meu corpo foi encontrado à beira do riacho. A causa de minha morte foi identificada como “inanição”. Morri de fome, há duas semanas não me alimentava. Os leitores considerarão este relato absurdo. Eu considero absurdo o destino que me aguarda...

30 maio 2007

13 Versos

Trago nos olhos uma marcha fúnebre
à humanidade que caminha pútrida,
e a mão que acena de caveira esquálida
a um hino roxo de um final que é trágico.
A tua desgraça, ó mundo humano, é júbilo
pra quem de horror já traz em lava o espírito
e viu à morte os altos gênios - mártires!
que pra te erguer verteram sangue e lágrimas.
Homem acabado, sinto miasma e túmulo
pra te enterrar em teu dantesco báratro
e erguer a flâmula em teu lixo cósmico.

A ti eu deixo o meu adeus de Hercólubus
e parto só pra contemplar o Término.

Alessandro Reiffer

20 abril 2007

O Olho no Relâmpago

Acordei-me estranhamente sobressaltado. Consultei o relógio, exatamente 3h51m da madrugada. Havia sonhado com inenarráveis imagens exacerbadas, febris, em uma profunda atmosfera de iminência. Não revelarei ao leitor tais imagens. Como disse, são inenarráveis. A noite era gelada, sombria, e um vento intenso e inquietante varria os ares numa fúria insana. Mas havia algo de anormal naquele quase vendaval. O som que produzia não era tão-somente uivos e gemidos típicos do Minuano invernal, eram vozes, algumas, com características humanas. Sim, tenho certeza, posso afirmar ao leitor que nitidamente ouvi ressoar pela noite o meu nome. Alguém me chamou, era uma voz suave e etérea, melíflua, uma celestial voz feminina. E sei que provinha do vento. Mas não era a única. Outras vozes vibravam medonhas nos meus tímpanos. E estas, absurdas, hediondas, martelavam sobrenaturalmente macabras. Como disse, não eram os naturais uivos do vento. Eram lamentações deprimentes, gritos humanos e inumanos em uma língua para mim desconhecida, grunhidos infernais, cavernosos, como que oriundos de infandas cordas vocais de bestas e monstros, vociferações guturais de imundos demônios.

Levantei-me. Naturalmente, estando eu profundamente inquieto (mas não amedrontado), queria saber a origem daquelas vozes e, ainda mais, quem clamava por meu nome através do vento. Abri a janela. Para meu íntimo assombro, não havia nenhuma das características do local onde me encontrava, ou pelo menos acreditava, e tinha certeza, encontrar-me no instante em que fui dormir. Somente minha casa ainda permanecia; das restantes, simplesmente, não havia o mínimo vestígio. Sob a noite negra, meus olhos atônitos contemplavam uma planície desolada e sem fim, melancolicamente vazia, seja de construções, objetos ou seres. Porém, discerni, quebrando a insuportável monotonia uma estreita e interminável estrada cruzando a planície hedionda. Digo estrada pelo fato de que possuía uma coloração diversa do restante da planície, apresentando tons mais claros e acinzentados, enquanto as regiões que a cercavam tinham uma tonalidade escura, violácea.

Olhei para o céu. Empalideci e o sangue gelou-me nas veias, quando presenciei tão pungente horror: creio que podia “ver” o vento. Os sons demoníacos que me perturbavam originavam-se de uma hoste de espíritos, ou qualquer tipo de seres incorpóreos, imateriais, infestavam todo o espaço noturno. Não possuíam uma forma definida, constantemente metamorfoseavam-se em imagens absurdas, todas repulsivas, diabólicas, apresentando diferentes colorações, sendo a violeta, a negra e a amarela as principais. No entanto, eram cores doentias, do negativo raio do infravermelho. E aquelas... coisas eram o vento, ou estavam indissociavelmente amalgamadas a ele, pois eram elas que sopravam, erguendo enormes nuvens de poeira da terra despovoada e berrando e gemendo de maneira verdadeiramente perturbada. Pareciam também emitir uma opaca luz enfermiça, que transmitia uma sensação angustiante impossível de descrever. E eles cruzavam o céu freneticamente, formavam redemoinhos, faziam brilhar sordidamente determinados cantos do céu, em constelações infernais, em um espetáculo fantasticamente horripilante.

Não obstante tanto assombro, a voz feminina continuava invocando meu nome pela escuridão, e dela, infelizmente, ainda ignorava a origem. Intentei observar melhor entre os espíritos (ou entre o vento) com o propósito de identificar de onde ela provinha, mas foi inútil. Foi então que ao longe, no horizonte carregado, vislumbrei um imenso relâmpago, cuja luz feriu meus olhos de forma insólita, muito mais intensa e penetrante do que um raio comum, e, tudo levando a crer que a causa foi o próprio relâmpago, uma sugestão, uma estranha influência recaiu sobre minha mente... Ela impetrava-me irresistível desejo de descer até a planície, percorrer aquela trilha ominosa, imergindo-me entre os espíritos, no vendaval, até atingir o exato local do relâmpago, que de tempos em tempos repetia-se de forma absolutamente idêntica. E o fiz, desesperado, com a alma inflamada, segui como um louco o fulgor terrível e transcendental daquele relâmpago que ironizava minha sanidade...

Contudo, à medida que avançava na estrada cinzenta, o vento satânico principiou-se a acalmar, e seus entes informes, a desaparecer enigmaticamente. Considerei muito estranha tão repentina tranqüilidade. Não era a calma que sucede a tempestade, mas a que precede uma pior. Minha intuição alertou-me. Gradualmente, nas imediações da estrada, percebi formas engendrando-se das pesadas atmosferas. Eram seres humanos, às centenas, ou imagens dos mesmos. Ao meu lado direito, todos trajavam roupas de batalha, típicas da 2ª Guerra Mundial, com nefastos armamentos. Todos me olhavam sinistramente, com um ar de maligno deboche, e principiou-se uma cena aterradora de genocídio. Assassinavam-se mutuamente, com inimaginável crueldade, enquanto a mim gritavam: “Olha, esta é a humanidade, este é o homem!”; e degolavam seus rivais, arrancavam suas vísceras, metralhavam seus cérebros fazendo-os saltar aos pedaços; traziam mulheres não sei de onde e as estupravam brutalmente, mastigando seus seios e dilacerando seus órgãos genitais, enquanto seus filhos eram fuzilados diante de seus olhos ensangüentados. Com punhais extirpavam os olhos dos inimigos, injetavam-lhes venenos, arrancavam-lhes os dedos, até que, de morte em morte, restou um único soldado que se suicidou com um tiro na boca.

Já ao meu lado esquerdo, a perversidade extrema assumiu outra forma. Agora, outros homens, trazendo diversos animais, bradavam-me a fatídica sentença: “Vê, esta é a humanidade, este é o ser humano”; e iniciou-se uma sessão de tortura e assassinato de uma infinidade de animais inocentes e indefesos. Quebravam, a picaretas, os crânios de dóceis filhotes de focas, abriam o ventre de gatos vivos e extirpavam seus intestinos, indiferentes aos seus berros. Derramavam substâncias corrosivas nos olhos de coelhos, queimavam rabos e patas de cachorros imobilizados por correntes... “Basta! Basta!”, eu resmungava comigo, completamente abatido, caindo por terra quase inconsciente, mergulhado em meu próprio choro.

Creio que desmaiei por alguns minutos. Quando retomei a consciência, tudo havia cessado, e reinava um silencio sepulcral. Nem mesmo uma brisa soprava. Mas, para meu assombro, novamente refulgiu o relâmpago a poucos metros de onde eu ergui-me. Era gigantesco, porém inofensivo, pois pude verificar que o raio era unicamente luz. Aproximei-me, e a voz feérica soou, elevada, profunda, chamando por mim. O relâmpago tornou-se constante, isto é, já não era propriamente um relâmpago, mas algo como um jato de anômala luz, e a voz ordenou-me: “Posta-te debaixo do raio”. Obedeci, e ao fazê-lo, perplexo, distingui, ao alto, um titânico olho no centro da irradiação luminosa. Apresentava-se sob todas as cores do espectro do arco-íris, alternadamente, e ao seu redor abriam-se portas para ignotas regiões. Então contemplei sóis brilhando em longínquos horizontes, anjos e fadas beijando-se apaixonadas, águias cruzando os céus violáceos... E vi vaga-lumes dirigindo-se a uma áurea lua, náiades pairando sobre mares escuros, majestosas árvores gotejando orvalho... E as portas fecharam-se, enquanto o olho voltou-se para mim em grave expressão. E ressoou a voz feminina, tendo eu a definitiva sensação de que ela provinha de dentro de mim, de minha alma, como se fosse a voz da consciência... a ser ouvida e seguida por toda a eternidade.

28 fevereiro 2007

EU NÃO SOU PATRIOTA! (Considerações sobre o serviço militar obrigatório)

Sempre defendi a liberdade humana em todos os sentidos, creio que a liberdade é um princípio fundamental da arte, tanto que foi ferrenhamente defendida e preconizada por dois dos maiores gênios artísticos de todos os tempos: Beethoven e Goethe. Natural, portanto, que eu mantenha uma posição contrária ao serviço militar obrigatório, assim como mantenho contra o voto obrigatório.
Sei que muitos jovens desejam o serviço militar e até mesmo seguem carreira nas forças armadas. Tudo bem, ótimo para eles, no entanto, por que deve ser ele obrigatório? Por que deve todo adolescente, ao completar 18 anos, apresentar-se a uma pátria que muitas vezes não dá a mínima a ele? Por que um jovem que não deseja seguir carreira militar, que tem outros objetivos em mente, é obrigado a adiar seus sonhos, ver pisoteados seus ideais, prejudicados os seus estudos, talvez perdido todo um ano de sua vida? Qual a justificativa para toda essa injusta arbitrariedade? Servir à pátria? Mentira. Nos países em guerra, é servir à guerra estúpida e inútil, ao interesse financeiro e político das elites, pois toda guerra resume-se a dinheiro e poder. E quem paga o preço? O mais alto é pago pelos jovens, por muitos que nunca desejaram “servir à pátria”, pago com seu sangue, com o horror vivido, pago com o sacrifício de seus sonhos e ideais, pago com a vida! E para quê? Para que alguns poucos egoístas multipliquem suas fortunas, os mesmos imbecis que estão arrastando nossa civilização a um trágico fim. Isso é servir à pátria? Que piada! É por fatos como esse que esta humanidade degenerada caminha à sua autodestruição.
E no caso do Brasil, que não está em guerra? Nesse caso, por que precisamos de tantos jovens “servindo à pátria”? Não são suficientes aqueles que naturalmente desejam a carreira militar? A verdade é que grande parte de todo o pessoal que ingressa no serviço militar torna-se ocioso, fica apenas realizando tarefas inúteis para a sociedade, servindo apenas aos caprichos de alguns oficiais. Eu defendo que nossas forças armadas deveriam agir mais, muito mais, em benefício de todo nosso povo e nossos interesses. Por que não estão, por exemplo, expulsando os estrangeiros da Amazônia, que, todos sabem, estão explorando e destruindo essa incomensurável riqueza? Por que o governo não põe os militares para combater o tráfico de drogas? Para fiscalizar os crimes ambientais? Para que investir tanto em algo que faz tão pouco? Será que os jovens que ingressam contrariados nas forças armadas não seriam mais úteis se tivessem liberdade de escolha?
Então, volto a perguntar? Para que “servir à pátria”? Para ser explorado e humilhado por alguns oficiais desumanos e prepotentes, que tratam seus recrutas e soldados adolescentes na base de palavrões, de xingamentos desmoralizantes, horrores que nem mesmo seus pais sentir-se-iam no direito de proferir? Servir, para trabalhar num visível regime de exploração, tão somente para satisfazer os desejos de um oficial que julga os recrutas como sua propriedade particular ou como mais uma arma em suas mãos? Ou argumentarão agora que é para “aprender a ser homem”? Aprender a ser homem é ser condenado durante um ano a humilhações e trabalhos forçados? “Ser homem” é ser chamado de “bixona”, “mongolóide” e “filho-da-puta”? Aprender a ser homem é aprender a ser desumano? Acredito realmente que devem existir oficiais que não agem dessa forma, oficiais decentes, não generalizo, mas que há muitos que o que mais apreciam em sua profissão é humilhar os pobres recrutas e soldados, despejando neles todas suas frustrações e recalques, disso estou certo. Ou será ainda que “ser homem” é ter cabelo curto, como pensam alguns oficiais, certamente ignorantes do fato de que muitos dos maiores guerreiros da história possuíam cabelos longos, como os bárbaros medievais, os Vikings, os samurais e muitos dos nossos próprios heróis farrapos.
Felizmente, aprendi a “ser homem” sem ter que ir para o exército, e se ser patriota é ter “servido à pátria” de bom-gosto, eu não sou patriota. Aliás, mudando um pouco de assunto, se ser patriota é gostar de pagode, de axé, ter que pular carnaval, pensar só em futebol, cerveja, praia e verão, eu definitivamente não sou patriota. Porém, se ser patriota é lutar pela cultura, pela educação, pela liberdade, então sou patriota demais.

18 fevereiro 2007

Discursos Vazios

Tenho percebido algumas coisas sobre a humanidade, sobre o ser humano. Uma delas está entre nossas principais características: falar, falar, falar e nada fazer. Genialmente escreveu Shakespeare: “Palavras! Palavras! Palavras!” intentando dizer que nossos discursos carecem de valor. Provavelmente, o leitor já deve ter associado as afirmações acima, o próprio título, com os discursos dos políticos, que muito falam, muito prometem, muito brilham sobre os palanques, diante das câmeras, porém, chegando ao poder, nada cumprem, até mesmo “esquecem” do que haviam afirmado. No entanto, serão somente os políticos que agem dessa maneira? Será que eles não consistem unicamente no reflexo de nossa sociedade, de nós mesmos, de nossa psicologia geral?
É fato notório que, no século XIX, os cientistas, a sociedade em geral, estufavam o peito para preconizar que no século vindouro, isto é, o XX, a ciência seria a solução para todos os problemas, que não haveria mais guerras nem violência nem fome nem miséria nem injustiças nem doenças etc. Era uma crença generalizada da população, todos acreditavam firmemente que o futuro seria melhor, que o mundo seria melhor no próximo século. Quase que unicamente os artistas simbolistas tinham certa “pré-visão” das tragédias que nos aguardavam. Sabemos como foi o século XX: se algumas coisas a ciência resolveu, outras agravou ainda mais, e outros problemas e crises surgiram de forma devastadora. Não é à toa que o século XX foi um dos mais trágicos, catastróficos e ameaçadores da história humana, e chega a ser risível a previsão dos cientistas. E então? Onde ficaram as palavras dos otimistas? Discursos soltos ao vento...
A verdade é que nenhum mundo pode melhorar sem que melhorem aqueles que formam o mundo, isto é, nós. Nosso interior é podre, e como asseverou Kant, “o exterior é o reflexo do interior”. Se cada um de nós não melhora interiormente, como querer o tão cacarejado “mundo melhor”? Assim, ficamos tão-somente nos discursos vazios, proferindo belas palavras (às vezes nem tão belas assim), sem que ocorra uma contrapartida de ação, principalmente para com nós mesmos.
Sim, amigo leitor, é muito agradável ouvirmos palavras de consolo, belos e comoventes discursos otimistas, que crêem engrandecer e dignificar o homem, elevar o seu “astral”, enchê-lo de confiança etc. É ótimo emocionarmo-nos com as mensagens de Natal e Ano-Novo exibidas em cartões, na TV, enviadas pela Internet, para os celulares... É maravilhoso chorarmos com os belíssimos discursos nas formaturas, nos plenários, nas igrejas, nas novelas (não incluo “lendo um poema” porque ninguém mais chora lendo poemas, só os poetas), cheios de confiança no homem e no futuro. Sim, todas essas palavras “edificantes” são muito agradáveis de serem ouvidas. Mas eu pergunto: e daí? No fundo, permanecemos sempre os mesmos, não mudamos nunca, “não aprendemos as lições da vida nem a canhonaços”, como sentenciou certo autor... Não obstante tantos “emocionamentos” (criei essa palavra para diferenciar de emoção), no fundo no fundo permanecemos mesquinhos, medíocres, egoístas, perversos, consumistas etc.
Os mesmos que defendem a natureza, no outro dia estão largando o papel de bala na rua, escovando os dentes com a torneira aberta, jogando toco de cigarro no chão... Os mesmos que exaltam a honestidade, não devolvem o troco no mercado se ele vier em excesso... Os mesmos que pregam a cultura não compram um livro, ou, se o compram por certa obrigação moral muito hipócrita, não o lêem, deixando-o guardado às traças. Os mesmos que criticam o consumismo, o império norte-americano, bebem coca-cola todos os dias. E então?!! Há exceções? Claro que sim, mas o mundo não é feito de exceções, é feito do que é geral...
Finalizando, questiono: porque não conseguimos passar para a prática os nossos belos discursos, as nossas profundas e momentâneas emoções? Afinal, o que há com nós, seres humanos?

06 fevereiro 2007

ENTREVISTA

A amigo e excelente escritor baiano Paulo Soriano realizou uma entrevista comigo, abordando temas como meu livro de contos. Confiram no site www.contosdeterror.com.br e aproveitam para ler os fantásticos contos lá publicados. Abraços Apocalípticos.

12 janeiro 2007

A Morte do Sentimento

Ninguém seria capaz de negar que a humanidade passa por uma das mais graves crises de sua história, creio até que a mais grave, e é possível que o qualificativo de “crise” seja um eufemismo para o quadro atualmente vivenciado por nosso planeta e pelas populações nele existentes. Desnecessário seria aqui exemplificar os terríveis fatos que cotidianamente assolam nossas existências, no entanto, há um que me chama a atenção sobremaneira, até devido à circunstância de eu trabalhar com a arte: a morte do sentimento.

Fato incontestável é que a humanidade vem tornando-se cada vez mais fria e insensível, e não é à toa que a pós-modernidade é caracterizada pelo superficialismo, pela efemeridade das relações; vivemos a época do descartável, tanto física quanto psiquicamente, a época dos afetos de uso momentâneo, a época da mecanicidade, do que eu qualifico como “robotismo”.

Esse robotismo nada mais é do que a brutal frieza e indiferença que impera absoluta nas mentes e nos corações de uma tremenda parcela da população, particularmente nos jovens. A grande maioria das pessoas, para usar uma expressão pós-moderna, “não está nem aí para nada!” Vive-se tão habituado à tragédia, ao horror, às catástrofes sociais e ambientais que lentamente devastam nosso mundo, que uma a mais ou a menos, já não faz a mínima diferença. A violência monstruosa que todos os dias abarrota os jornais de notícias é vista como um mero acidente de percurso, e até mesmo uma denúncia de corrupção não passa de “mais um que roubou, e daí?”

Alguns artistas e filósofos já falam de uma próxima época, sucessora do pós-moderno, qual seja, a do pós-humano. Será quando os homens não passarão de máquinas absolutamente empedernidas, tendo unicamente como objetivos ganhar dinheiro, acumular bens, e usufruir dos prazeres materiais, em um comportamento completamente egoísta, hedonista e consumista. Cabe aqui perguntar: já não estaríamos nessa época? E se estamos, que futuro ela pode reservar a nós, que tipo de civilização poderá resultar de tais “filosofias de vida”? A questão do consumismo desenfreado já nos dá um sombrio indicativo da gravidade do problema: está mais do que demonstrado que nosso planeta não suportará o nível de consumo atual de seus recursos naturais, e os efeitos catastróficos dessa situação já estão bastante presentes em nosso dia-a-dia...

Na época pós-humana, os sentimentos não terão lugar, serão vistos como algo retrógrado, ultrapassado, piegas, cafona. Decretar-se-á então a morte da poesia, da música clássica, enfim, de todas as grandes manifestações artísticas, para dar lugar às mais baixas expressões da degeneração humana, como ocorre hoje com a pseudomúsica do funk, que faz vibrar os mais vulgares instintos do homem, na ausência absoluta de sentimentos elevados. Alguém poderá contestar-me, afirmando que funk é música também. Nesse caso eu diria que tal atitude é mais um sintoma da pós-humanidade. O funk é só um exemplo, um dos mais claros, poder-se-ia mencionar dezenas de outros, mas, obviamente, o espaço não me permite.

A verdade é que uma hedionda acomodação psíquica tomou conta da humanidade. Atingimos um ponto em que nada mais é capaz de emocionar o ser humano. Quando falo em emocionar, refiro-me à emoção profunda, de caráter superior, ao que classificamos de nobreza de sentimentos. As pessoas, de uma forma geral, já não mais se preocupam em demonstrar e manter afeto, comoção, sensibilização a respeito de algum fenômeno ou acontecimento, de alguma verdade ou constatação. Muito pelo contrário, até mesmo tem-se vergonha de sentir; chorar é encarado como uma fraqueza, a meiguice, como uma ingenuidade, a emoção profunda e espontânea, como um desvio da mentalidade padrão. Não é assim, amigos leitores? Aqui, lembro de Rui Barbosa, que, na “Oração aos Moços” afirmava que o homem um dia desanimaria da virtude, riria da honra, teria vergonha de ser honesto. Esse dia, senhores, já chegou. Agora, chegará o dia em que o homem desanimará da arte, rirá da sensibilidade, terá vergonha se ser profundo. Estabelecer-se-á então a lei do “quanto mais fútil, melhor”. E creio que esse dia funesto chegará rapidamente, se é que já não o estamos vivendo...

É possível que alguém pergunte a si mesmo: “E daí?” Nesse caso, estará confirmando tudo o que eu afirmei acima. Os negros resultados estão ao nosso redor, e caminhamos firmes e resolutos ao caos absoluto e à autodestruição inexorável...