22 dezembro 2018

Eu não aprendi a viver

eu nunca aprendi esse negócio 
de "aprender a viver"
eles dizem: 
"você tem que aprender a viver" 
mas eu nunca entendi 
o que eles queriam dizer com isso
quando eles deram essa lição
eu devia estar cagando

eles determinaram exatamente como se deve viver:
eles criaram regras normas leis padrões modelos
teorias tratados cartilhas manuais e morais
coisas bem difíceis e complicadas
e eu na minha preguiça e irresponsabilidade
fiquei só lendo coisas inúteis como contos e poesias
e não aprendi o que deveria ter aprendido

agora estou aqui e não aprendi a viver.
eu achava que a vida fosse como escrever um poema:
você inicia, diz o que veio pra dizer
e termina em grande estilo ou nem tão grande assim

mas eu só aprendi a escrever poemas
(mal e porcamente)
e não aprendi a viver
não sei fazer outra coisa

uma época eu achava que viver
tinha a ver com se tornar melhor
mas eles já me provaram
que não é nada disso

e eu, burro, nunca consegui entender.



21 dezembro 2018

Escrever é um Ato Infame

se o cara escrever de verdade
matará de mentira sua fome.
se o cara escrever poesia, por exemplo,
terá um atestado de insanidade
de inutilidade para o desenvolvimento
de subversão e delinquência
e, óbvio, de miséria.
escrever é um ato ingrato.

se o cara escrever contos novelas ou romances
(muita gente ainda acha que romance é história de amor
e novela aquilo que passa na tv)
ou terá que ter muita sorte em conseguir uma boa editora
(algo como acertar na loteria)
ou ser bem apadrinhado
(o famoso Q.I. - Quem Indica)
ou escrever temas agradáveis desejados
que se desenvolvam de maneira banal e infantil.

se o cara escrever roteiro de filmes ou séries
poderá fazer muito sucesso

anônimo:
ninguém dá atenção pra quem
escreveu a história as ideias as falas
só se dá atenção aos atores que falam
e aparecem.

escrever é um ato falho:
quase sempre o cara que escreve
só é reconhecido em vida
se não escrever porra nenhuma.


18 dezembro 2018

Quatro Batidas na Porta (ou A Propósito da 5ª Sinfonia de Beethoven)

que foi que me trago no isso que deixo?
que preço que pago pelo sopro que largo?
quando uma palavra se fora
qual a palavra que volta?
o que me trará suas pancadas na porta?

o que é o destino
que se destina no que digo?
o que é que eu entrego
naquilo que me verbo?

no meu verso em que eu adejo
se alada doença ou um beijo?
ave algum canto pelo segredo
em que não sei do que for certo?
e daquilo que sinto o que é que é meu?

quem é que me sonha lá no que falto?
que deus que não sei 
me não sabe e por quem?
que fim e que som e que luz e que alto?
o que é que me vem?

se o espaço é curvo
o que é que é a volta?
o que eu espero do meu verso
quando vir bater na minha porta?

16 dezembro 2018

Já que falaram em Arte*

ninguém queria comprar os quadros de Van Gogh
afinal era só um pobre e louco.
disseram que a 3ª Sinfonia de Beethoven
era exagerada e barulhenta e que não teria futuro
também disseram que o tema principal 
da sua 9ª Sinfonia
(a obra musical mais importante da história) 
era infantil e absurdo fruto da mente perturbada 
de um músico surdo e bêbado.

queriam revisar as sinfonias de Bruckner
porque diziam que eram de muito mau gosto
criadas por um caipira simplório.
estavam certos de que Fernando Pessoa
era só um cara esquisito e fracassado.
eles prenderam Dostoiévski por vários anos
assassinaram García Lorca
tentaram matar Pablo Neruda 
e enterraram Mozart como um indigente.

Tchaikovsky se sentiu obrigado a se matar
tomando água contaminada por cólera.
Schumann achou que deveria 
se internar num manicômio.
Edgar Allan Poe só aguentou
porque bebeu até morrer.

Michelangelo era espancado
pelo pai e irmãos porque diziam 
que era vergonhoso ter um artista na família.
usaram as partituras de Bach
para embrulhar peixes nos mercados.
Munch pintou O Grito
(a pintura mais famosa do século XX)
enquanto diziam que ele era só um alcoólatra.
Rilke não tinha dinheiro 
para comprar seus próprios livros.
e eles disseram que a poesia de Baudelaire
era um atentado à moral e aos bons costumes
e que deveria ser proibida.

e hoje eles querem nos falar de Arte...

Deixo este poema em homenagem aos 248 anos de Ludwig van Beethoven, comemorados hoje.





14 dezembro 2018

Castelo de Carta

a desgraça 
da existência humana 
atingiu o momento 
do se fechar de porta 
e eu acostumado 
a tudo que se acaba 
nem me alarma 
nem me resta 
nem me importa 

acostumado 
com tanta merda por toda parte 
e todas essas passadas de gente nas ruas 
que só passam 
e mais nada 
e que já se vão muito tarde 

tudo que veio um dia parte 
nem há sentido que o sinta 
tudo o que fique ou que falte 
ou o de que um dia 
eu de repente tente 
e em algum instante cante 

deixo que se feche 
tudo aquilo que daqui me aparta 
que de um momento o vento 
leva todo um mundo 
como um enorme coração 
que se infarta 

e o raio que o parta.

12 dezembro 2018

O Pior Crime

o homem criou máquinas motores robôs
trens automóveis caminhões
aviões jatos helicópteros
microscópios para o muito perto
telescópios para o muito longe
navios foguetes satélites
celulares computadores internet
metrópoles a perder de vista
prédios a se perder no alto
pílulas remédios vacinas
atulhou o planeta de quinquilharias

e nada disso nem tudo isso junto
chega aos pés do sensacional que é
o voo de uma simples mosca
DE UMA MOSCA
somente pelo fato
de que na mosca há VIDA

e no entanto o inútil do homem 
se vê no direito
de extinguir tigres onças orcas elefantes lobos
(...)
extinguir uma forma de vida
é o pior de todos os crimes

10 dezembro 2018

Confissão de um Parasita

o que o planeta vai querer com alguém como eu?
reles verme racional que vive de despojos
monstro de egoísmo que destrói a vida
para manter em pé meu esqueleto morto?
ainda que mil florestas tombem à minha direita
e 10 mil animais agonizem à minha esquerda
eu tenho que esboçar esse sorriso estúpido
na minha cara cínica
como forma de demonstrar ao vazio social
que NÃO fugi dos padrões e dos contratos
de felicidade fútil e de sucesso inútil obrigatórios
dessa civilização de parasitas homicidas-suicidas

por que o planeta iria se esforçar
para manter vivo o fanfarrão inconsciente que sou
se é que sei se sou alguma coisa
e a minha vida sem eira nem beira
eu, este lixo
unido na desgraça a outros 7 bilhões
de lixos
só o que faço (apoiado por todos)
é produzir mais lixo
lixo que nós, lixos
consumiremos e transformaremos no lixo do lixo
a ir para lixões mares paraísos e abismos

e ai de mim se parar pra pensar
se parar pra sentir
se parar pra viver
como posso parar de produzir lixo
em troca do lixo do dinheiro?
então entrarei para o rol dos fracassados
dos que não prestam
dos homens de mal
dos mal-sucedidos

e dirão os outros 7 bilhões de lixos
que este texto é algo lamentável e deprimente
feito por alguém que em nada contribui
para a ordem e o progresso da sociedade...

mas por que o planeta faria alguma coisa
(para proteger a vida)
com parasitas como nós?

mas corra!
que ainda dá tempo de ficar milionário!

06 dezembro 2018

Ode ao Sofrimento do Patrão

a majestade celestial do nosso futuro presidente
disse que é difícil ser patrão no Brasil
e como sempre ele tem toda a razão:
o coitado do patrão tem a terrível responsabilidade
de lucrar e lucrar cada vez mais e a todo custo
e quanto maior a empresa mais difícil é:
não é fácil fazer empregado vagabundo trabalhar
eles querem ter DIREITOS!!!
onde já se viu?
querem ter férias e um salário A MAIS no fim do ano
querem trabalhar SÓ 8h por dia e cobrar hora extra
querem se aposentar antes dos 70
querem ficar em casa se estiverem doentes
e as mulheres são piores ainda
querem ficar em casa PORQUE ENGRAVIDAM!!!
e o patrão lá, pagando TODO um salário mínimo
pra mulher ficar em casa!!!

é muito difícil ser patrão no Brasil
ter que saber todas as manhas pra sonegar imposto
ter que ter a coragem pra roubar do cliente
o imposto que ele paga e colocar no seu próprio bolso
passar noites em claro pensando em formas de roubo e sonegação
de enganar os governos filhos da puta da esquerda
e ter ainda que ir mendigar uma isenção fiscal
de alguns poucos bilhões
e ainda não poder poluir 
e ter que cuidar de bicho e mato
ah, vão se catar!

é dificílimo ser patrão no Brasil
aprender a explorar trabalhador não é pra qualquer um
enfrentar a porra dos sindicatos
greves manifestações e esperar um dia inteiro 
pra que a polícia resolva na pancadaria
isso enche saco, sabiam?

pensam que é fácil cabrestear empregado?
fazer ele se colocar no seu devido lugar
de cabeça baixa e rabo no meio das pernas?
acham que é simples empunhar o chicote
e fazer essa cachorrada pobre ficar quieta
e trabalhar sem reclamar?

ensinar a pobre que pobre é pobre
hoje em dia tá muito difícil
eles querem MELHORAR DE VIDA!!!
como se pobre pudesse viver!
até pode, mas pra trabalhar
e aí o patrão emprega essa gente
e NEM PRA AGRADECER se prestam

meu Deus! que está acima de todos
olhe pelos sofridos patrões do Brasil...

04 dezembro 2018

Ao Verme e à Tormenta que me Transformarem

o homem
(que já não tem reforma)
para hipocrisiar sua miséria
e na tentativa malinformada
de impedir que as forças se formem
formou toda forma de (de)formações:

desde patéticas técnicas inarmônicas
até mecânicas máquinas estúpidas
só para nos acomodarem no nada
de nossas disformes fôrmas vazias

e pensamos entender aquilo que se forma
com nossas fórmulas cálculos cossenos
a foder-nos

mas apesar de tudo
com o pesar de tudo que nos atormenta
nem podemos impedir
o mísero verme que nos deforma
ou que se forme uma Tormenta

02 dezembro 2018

Liberdade pra quê?

não é necessário haver liberdade em se vestir
quando todos usam o mesmo uniforme
não é necessário haver liberdade de gostos
quando todos são convencidos a gostar das mesmas coisas
não é necessário haver liberdade de crença
quando todos acreditam no que dizem ser certo
não é necessário haver liberdade de escolhas
quando as escolhas vêm dentro de um pacote já pronto
não é necessário haver liberdade de pensamento
quando as pessoas jamais param para pensar no que for
não é necessário haver liberdade na vida
quando a vida se torna só um ato mecânico
não é necessário haver liberdade de ser a si mesmo
quando todos são todos iguais

os que não querem a liberdade
não precisam acabar com ela:
basta que a tornem desnecessária

29 novembro 2018

Para que eles enfiem no cu

em 1970
eles disseram que estava tudo bem
que não havia motivos para se preocupar
que a humanidade e o planeta
estavam no rumo certo
e que caminhávamos firmes ao progresso e à evolução

em 1980
eles disseram a mesma coisa
em 1990... a mesma coisa
em 2000...  a mesma coisa
em 2010... a mesma coisa

agora em 2018
desde 1970 já matamos 83% dos mamíferos selvagens
60% dos demais vertebrados
destruímos mais de 50% dos ecossistemas
transformamos rios e córregos em esgotos
mares e oceanos em depósitos de plásticos e outras imundícies
envenenamos as terras as águas as plantas os alimentos
transformamos paraísos em desertos
aquecemos derretemos incendiamos nosso planeta
dizimamos as últimas tribos de humanos nativos
aniquilamos os insetos polinizadores
consumimos à exaustão os recursos naturais
aumentamos a cada dia a pobreza e a desigualdade social
destruímos almas sonhos e esperanças
trocamos a vida por um punhado de moedas...

mas eles continuam dizendo que está tudo bem
que eles sabem o que estão fazendo
e que é isso é bom...

é por isso que escrevi esta merda de poema
para que eles ENFIEM NO CU
junto
com o que
eles
dizem

27 novembro 2018

A Sete Palmos

se você é otimista
ou você não está prestando atenção
ou é sua atenção que não presta

ou são seus ouvidos que não cheiram a morte
ou seus olhos que não provam as águas
ou seu nariz que não vê o sangue
ou sua boca que não toca a terra
ou suas mãos que não ouvem os céus

ou é seu coração que já não sente nada
ou é sua alma que já está bem morta

25 novembro 2018

A Morte Lenta da Bela Mulher

A beleza daquela mulher deslumbrava a todos. Mesmo agora, gravemente doente, sua beleza ainda encantava. Mas um intenso sofrimento era visível em seu rosto de olhos fundos e encovados. Sua doença era terrível, impiedosa, e, aos poucos, bem aos poucos, em uma extrema e quase imperceptível lentidão de brutal angústia, seu organismo ia sendo consumido pela enfermidade. Era como a mais desolada e arrastada das marchas fúnebres.

A enfermidade a definhava de uma forma digna da mais funda das piedades. Seus sintomas algumas vezes surgiam, noutras, desapareciam por completo. Porém, quando retornavam, eram ainda mais violentos. Dores insuportáveis em todas as partes do corpo. Ela chorava. Mas o que assombrava ainda mais era a inexplicável indiferença com que quase todos observavam a sua agonia.

Das dez pessoas que viviam em seu quarto, apenas uma delas sentia verdadeira piedade ao vê-la morrer de maneira tão lenta e sofrível. As outras aparentavam não se dar conta da devastadora desolação que acometia a bela mulher. No entanto, todos afirmavam que conheciam sua doença, que sabiam de suas causas a fundo e que possuíam a cura para a fatal enfermidade. Consideravam-se médicos de extrema perspicácia e inteligência. Havia até alguns que diziam que a doença não era grave, que seria facilmente curada e que exageravam no julgamento da intensidade de seus sintomas. Mas ainda não a haviam curado, apesar de todas as tentativas de fazê-lo, tentativas em realidade estúpidas, vergonhosamente insuficientes, enfim, absolutamente inúteis.

Todos os dez indivíduos também afirmavam com total segurança que conheciam o fato de que eles, todos eles, eram os responsáveis, os culpados pela bela mulher agora se encontrar enferma. Sim, a moléstia que a afetava foi causada pelas dez pessoas que viviam em seu quarto. Viviam em seu quarto e dependiam da bela mulher para tudo, para absolutamente tudo, inclusive para viver. Não viveriam sem ela. Daí então a urgente necessidade de curá-la. Se ela morresse, todos os dez morreriam com ela.

De modo que assombrava, era quase inacreditável a indiferença com que seus companheiros de quarto contemplavam a agonia que levava aquela linda mulher a uma morte dolorosa e implacável. Algo realmente incompreensível. O que passaria pela mente dos cinco homens e das cinco mulheres que ali naquele quarto de doença viviam? O que passaria por seus sentimentos?

Talvez os moradores do quarto já estivessem tão habituados com a doença que causaram à mulher que já nem eram capazes de se emocionar com o vagaroso, lento, gradual sofrimento que ela irradiava. Havia ali somente uma pessoa que ainda agia intentando acender os sentimentos dos outros para que tomassem consciência da iminente situação em que se encontravam. Porém, sempre inútil.

Mais e mais o clima reinante naquele quarto tornava-se pesado e nervoso. Sombras pesarosas iam surgindo dos cantos do ambiente carregado de densos espectros de ocaso. Lentamente, numa lentidão que parecia eterna. Em alguns momentos, luzes cintilavam em algumas pequenas reentrâncias quase ocultas que traziam consigo determinada esperança. Porém, em pouco tempo eram rapidamente subjugadas por nuvens escuras de uma fumaça de ignota origem.

Sistematicamente, a bela mulher em sua suprema agonia emitia gritos horripilantes, gemidos dilaceradores, que ensurdeciam e inflamavam os ouvidos dos seus companheiros de quarto, a ponto de sangrá-los. Mesmo assim, raramente se emocionavam, bem raramente.

Os gritos da bela mulher não eram reações desesperadas somente às suas dores excruciantes, mas ela reagia também às horríveis chagas que surgiam em todo o seu corpo e sangravam de forma inclemente, espargindo um sangue pútrido e mau-cheiroso. O Sangue se derramava por toda a cama, maculando os brancos lençóis e carregando o ar impuro de pestilentas emanações. As chagas desapareciam com o passar dos arrastados dias, mas sempre retornavam, cada vez piores, em cores mórbidas que iam do vermelho, ao roxo e finalmente ao negro.

E as pessoas ali respiravam aquela atmosfera mefítica, com uma imbecil tranquilidade sorridente. A mulher ardia em febre, e sua febre irradiava-se pelo ar, elevando a temperatura aos poucos. Ondas de enfermidade partiam de seus entristecidos olhares de negras olheiras. Suas lágrimas não cessavam de escorrer como orvalhos de desgraça por seus cabelos negros. Sua face pálida e cadavérica implorava por misericórdia. No entanto, aqueles que viviam em seu quarto apresentavam um comportamento tão estúpido, tão indiferente, tão agressivo e miserável, que faziam, ainda que inconscientemente, com que a moléstia da mulher se agravasse ainda mais.

Em um instante soou um luto deprimente. E nas atmosferas ensombrecidas, mornas de enfermidade, densas de pesadelos, assomou pelo ambiente degradado a tensão desesperada de uma trágica marcha fúnebre. E suas notas noturnas vibravam como sinos de maldições. Simultaneamente, adejaram pela janela as asas de um corvo que surgiu da noite distante, do espaço longínquo, e fitou seus olhos fundos de sentenças nas pessoas que ali no quarto estavam. Como nos quadros de Bosch, trazia uma carta no bico.

Às vezes, os dias transcorriam em aparente serenidade. A serenidade funesta que antecede as piores tormentas. E nos dias lentos, rastejantes, de tensão insuportável, relâmpagos e trovões, por vezes distantes, por vezes próximos, assomavam nos céus consternados. E o clima obscurecia-se aos poucos, bem aos poucos.

Ataques golfejantes de tosse assediavam os pulmões da bela mulher. Golfadas espessas de sangue espalhavam-se por todo o aposento. Um catarro amarelecido descia de seu nariz. Ela debatia-se e revirava-se na cama inundada de um suor ardente, pegajoso, febril.

Pela janela semiaberta do quarto, uma estranha luminosidade avermelhada penetrou no ambiente de dúvidas e desesperos adejantes. A bela mulher desvairava, embriagada das mais absurdas catástrofes. Contorcendo-se de dor em todos os seus órgãos, ela levava as mãos amareladas e ressequidas, de veias proeminentes, à cabeça que latejava.

Um sopro rubro de sangue entrou com diabólica violência pela janela entreaberta. Tal sopro deve ter afetado a sanidade da bela mulher. Agonizante, como um furacão ela redobrou suas forças para erguer-se da cama sanguinolenta. Insana, descontrolada, enlouquecida, ela agarrou com suas mãos crispadas, de unhas crescidas e ensanguentadas, um por um o pescoço daqueles que viviam em seu quarto e os estrangulou com fúria absoluta.

Nove dos dez moradores do quarto foram mortos dessa forma. Apenas aquela mulher que sinceramente tentava ajudar a bela doente foi poupada. E, nesse instante, uma tênue fagulha de vida refulgiu nos enormes olhos verdes da mulher enferma. E o nome da bela mulher era Terra.

23 novembro 2018

Breve Tratado Sobre a Descrença no Ser Humano

(Dmitri) Shostakovich (1906 - 1975)
(Alfred) Schnittke (1934 - 1998)
(Krzysztof) Penderecki (1933 - ainda em vida)
são os compositores nascidos no séc.XX
de que mais gosto
também fizeram muita música para filme

Shostakovich é triste e mórbido
Schnittke é caótico e fantasmagórico
Penderecki é sombrio e trágico
(ou todos são tudo isso)

quando tenho o mínimo sintoma
de alguma crença no ser humano
vou escutá-los
até perceber sobre mim mesmo e minha miséria
e deixo de acreditar no ser humano

vejo que a humanidade não pode melhorar
com gente como eu sou
e não vejo ninguém melhor do que eu

e eles também me dizem
que a saída para essa civilização
é a saída dessa civilização


21 novembro 2018

Fazer a sua Parte

as pessoas dizem: “faça a sua parte”
que parte é que deve ser feita?
fazer a parte para o quê?
o que é fazer a sua parte?
quem é que faz a sua parte?

não, eu não fiz a minha parte
eu não faço a minha parte
eu não sei que parte
querem que eu faça
quem determinou
a parte que deve ser feita?

fazer a minha parte
para melhorar o mundo?
quem disse que o mundo
pode ser melhorado
se eu e você nunca melhoramos 
e somos nós que fizemos o mundo

eu não faço minha parte
porque não posso fazê-la
porque só na fato de viver
eu já desfaço minha parte
no ato de comer
eu desfaço minha parte
em respirar
eu desfaço minha parte

ao invés de fazer a sua
infazível parte
as pessoas deviam aceitar
que para reiniciar
antes

é preciso a morte

19 novembro 2018

Dois Poemas para Schubert

Sendo, hoje, aniversário de morte de um dos maiores gênios da história da música, Franz Schubert (1797-1828):


Soneto a Schubert

surgiste dos solares das auroras
já pronto para ocasos iminentes
anoiteceu em tudo o que tu sentes
e cavalos galopam tuas horas

um sonho de mais vida te devora
que é o oposto de sublime ir em frente
há um alto nos avisos que pressentes
segredos que ameaçam ao ir embora

que deus que morre em teu gênio profético?
quem é que escuta teus sopros fatais?
que traz de oculto teu cântico hermético?

as fúnebres marchas são teus sinais...
quem me dera um catastrófico épico
para entender-te os anúncios finais


Após Schubert

essa estrela que eu olho
não é ela que está lá
pois uma outra há que vá
que me olha no que eu olho
mas essa estrela que é
que deseja o que eu vejo
nunca é no meu desejo

essa noite que eu vi
nunca foi a que estava
mas se vai com outra asa
longe do que pedi
alma do que não foi
e outra noite me envia
som-voo do que morria

este sonho que eu tenho
não é sonho que pode
fiz-me por outro acorde
nada em que me sustenho
erro do meu não ser
noite do que vou tê-la
nem sonho e nem estrela

17 novembro 2018

Soneto no Modo Ultrarromântico

ela que sempre esteve do meu lado
e na paz me passava a mão no rosto
ela sabia do meu sol já posto
e que de vinho eu era consolado

só ela aceitou sangue no meu fado
e sempre amou o meu olhar de corvo
e agora que só o não eu absorvo
me declarei por ela apaixonado

ouço Brahms e Schubert demais
doença que sempre me tornou mais forte
me encheu a vida de fins e finais

só ela lambe o fundo deste corte
e me chora amor entre coisa e tais...
me emociono ao ouvir seu nome: Morte.


15 novembro 2018

A Esperança Existe

a Esperança existe.
veio me visitar ontem
e disse que ficaria para o jantar
não trouxe um gole de bebida
e não ajudou com a pizza
não parava um segundo de falar
entre assuntos sérios
coisas lindas
absurdos merdas e bobagens

seja como for
a conversa até que era envolvente
mas a Esperança ficou bêbada muito rápido
e logo passou mal
vomitou por todo o banheiro
desmaiou por alguns minutos
e quando voltou a si
disse que tinha que ir
mas que voltaria amanhã

amanhã é hoje
e agora a Esperança está ali
num canto da parede
na forma de um gafanhoto verde

13 novembro 2018

de Governos e de Leis

I - governo
(quando ditadura)
é alguém dos alguns
metido a força
que pensa poder mandar em todos
para benefício desses alguns
que inclui a si e aos seus

governo
(quando má-democracia)
é o empregado
autorizado e pago
pelo povo
para mandar em todos
em benefício dos mesmos alguns
que querem fazer do povo
um bando de nadas
e de nenhuns

II - lei
é estabelecer
que todos são iguais
desde que não
sejam os alguns
para que o povo
se iguale sempre ao povo
e jamais
se desiguale do seu nada
a lei é a ordem dos alguns
e para estes
lei é sempre se manter
dentro dos limitados
limites da estrada

11 novembro 2018

Maldição vem de berço

Maldição vem de berço.
não é pra qualquer um.
quem é maldito nunca perde a maldição:
ser maldito é um estado de espírito
um existir de alma
uma forma de vida
não há filosofia que seja melhor

poeta não é quem tem inspiração
até um político pode se inspirar às vezes
poeta é quem tem maldição

nem a luz nem a escuridão
estão sempre presentes
mas a maldição está:
tu olhas e lá está ela
sempre ali a te olhar de volta

tem que ser muito maldito
pra aguentar ter alma
há que se viver muito horror
pra se tocar no coração
tem que se conhecer muito bem o mal
para se saber o que é amor

maldição não é para melhorar ninguém:
maldição é para se criar Arte.
arte de verdade e ausência de maldição
são termos irreconciliáveis

Maldição vem de berço
ou antes.