25 novembro 2018

A Morte Lenta da Bela Mulher

A beleza daquela mulher deslumbrava a todos. Mesmo agora, gravemente doente, sua beleza ainda encantava. Mas um intenso sofrimento era visível em seu rosto de olhos fundos e encovados. Sua doença era terrível, impiedosa, e, aos poucos, bem aos poucos, em uma extrema e quase imperceptível lentidão de brutal angústia, seu organismo ia sendo consumido pela enfermidade. Era como a mais desolada e arrastada das marchas fúnebres.

A enfermidade a definhava de uma forma digna da mais funda das piedades. Seus sintomas algumas vezes surgiam, noutras, desapareciam por completo. Porém, quando retornavam, eram ainda mais violentos. Dores insuportáveis em todas as partes do corpo. Ela chorava. Mas o que assombrava ainda mais era a inexplicável indiferença com que quase todos observavam a sua agonia.

Das dez pessoas que viviam em seu quarto, apenas uma delas sentia verdadeira piedade ao vê-la morrer de maneira tão lenta e sofrível. As outras aparentavam não se dar conta da devastadora desolação que acometia a bela mulher. No entanto, todos afirmavam que conheciam sua doença, que sabiam de suas causas a fundo e que possuíam a cura para a fatal enfermidade. Consideravam-se médicos de extrema perspicácia e inteligência. Havia até alguns que diziam que a doença não era grave, que seria facilmente curada e que exageravam no julgamento da intensidade de seus sintomas. Mas ainda não a haviam curado, apesar de todas as tentativas de fazê-lo, tentativas em realidade estúpidas, vergonhosamente insuficientes, enfim, absolutamente inúteis.

Todos os dez indivíduos também afirmavam com total segurança que conheciam o fato de que eles, todos eles, eram os responsáveis, os culpados pela bela mulher agora se encontrar enferma. Sim, a moléstia que a afetava foi causada pelas dez pessoas que viviam em seu quarto. Viviam em seu quarto e dependiam da bela mulher para tudo, para absolutamente tudo, inclusive para viver. Não viveriam sem ela. Daí então a urgente necessidade de curá-la. Se ela morresse, todos os dez morreriam com ela.

De modo que assombrava, era quase inacreditável a indiferença com que seus companheiros de quarto contemplavam a agonia que levava aquela linda mulher a uma morte dolorosa e implacável. Algo realmente incompreensível. O que passaria pela mente dos cinco homens e das cinco mulheres que ali naquele quarto de doença viviam? O que passaria por seus sentimentos?

Talvez os moradores do quarto já estivessem tão habituados com a doença que causaram à mulher que já nem eram capazes de se emocionar com o vagaroso, lento, gradual sofrimento que ela irradiava. Havia ali somente uma pessoa que ainda agia intentando acender os sentimentos dos outros para que tomassem consciência da iminente situação em que se encontravam. Porém, sempre inútil.

Mais e mais o clima reinante naquele quarto tornava-se pesado e nervoso. Sombras pesarosas iam surgindo dos cantos do ambiente carregado de densos espectros de ocaso. Lentamente, numa lentidão que parecia eterna. Em alguns momentos, luzes cintilavam em algumas pequenas reentrâncias quase ocultas que traziam consigo determinada esperança. Porém, em pouco tempo eram rapidamente subjugadas por nuvens escuras de uma fumaça de ignota origem.

Sistematicamente, a bela mulher em sua suprema agonia emitia gritos horripilantes, gemidos dilaceradores, que ensurdeciam e inflamavam os ouvidos dos seus companheiros de quarto, a ponto de sangrá-los. Mesmo assim, raramente se emocionavam, bem raramente.

Os gritos da bela mulher não eram reações desesperadas somente às suas dores excruciantes, mas ela reagia também às horríveis chagas que surgiam em todo o seu corpo e sangravam de forma inclemente, espargindo um sangue pútrido e mau-cheiroso. O Sangue se derramava por toda a cama, maculando os brancos lençóis e carregando o ar impuro de pestilentas emanações. As chagas desapareciam com o passar dos arrastados dias, mas sempre retornavam, cada vez piores, em cores mórbidas que iam do vermelho, ao roxo e finalmente ao negro.

E as pessoas ali respiravam aquela atmosfera mefítica, com uma imbecil tranquilidade sorridente. A mulher ardia em febre, e sua febre irradiava-se pelo ar, elevando a temperatura aos poucos. Ondas de enfermidade partiam de seus entristecidos olhares de negras olheiras. Suas lágrimas não cessavam de escorrer como orvalhos de desgraça por seus cabelos negros. Sua face pálida e cadavérica implorava por misericórdia. No entanto, aqueles que viviam em seu quarto apresentavam um comportamento tão estúpido, tão indiferente, tão agressivo e miserável, que faziam, ainda que inconscientemente, com que a moléstia da mulher se agravasse ainda mais.

Em um instante soou um luto deprimente. E nas atmosferas ensombrecidas, mornas de enfermidade, densas de pesadelos, assomou pelo ambiente degradado a tensão desesperada de uma trágica marcha fúnebre. E suas notas noturnas vibravam como sinos de maldições. Simultaneamente, adejaram pela janela as asas de um corvo que surgiu da noite distante, do espaço longínquo, e fitou seus olhos fundos de sentenças nas pessoas que ali no quarto estavam. Como nos quadros de Bosch, trazia uma carta no bico.

Às vezes, os dias transcorriam em aparente serenidade. A serenidade funesta que antecede as piores tormentas. E nos dias lentos, rastejantes, de tensão insuportável, relâmpagos e trovões, por vezes distantes, por vezes próximos, assomavam nos céus consternados. E o clima obscurecia-se aos poucos, bem aos poucos.

Ataques golfejantes de tosse assediavam os pulmões da bela mulher. Golfadas espessas de sangue espalhavam-se por todo o aposento. Um catarro amarelecido descia de seu nariz. Ela debatia-se e revirava-se na cama inundada de um suor ardente, pegajoso, febril.

Pela janela semiaberta do quarto, uma estranha luminosidade avermelhada penetrou no ambiente de dúvidas e desesperos adejantes. A bela mulher desvairava, embriagada das mais absurdas catástrofes. Contorcendo-se de dor em todos os seus órgãos, ela levava as mãos amareladas e ressequidas, de veias proeminentes, à cabeça que latejava.

Um sopro rubro de sangue entrou com diabólica violência pela janela entreaberta. Tal sopro deve ter afetado a sanidade da bela mulher. Agonizante, como um furacão ela redobrou suas forças para erguer-se da cama sanguinolenta. Insana, descontrolada, enlouquecida, ela agarrou com suas mãos crispadas, de unhas crescidas e ensanguentadas, um por um o pescoço daqueles que viviam em seu quarto e os estrangulou com fúria absoluta.

Nove dos dez moradores do quarto foram mortos dessa forma. Apenas aquela mulher que sinceramente tentava ajudar a bela doente foi poupada. E, nesse instante, uma tênue fagulha de vida refulgiu nos enormes olhos verdes da mulher enferma. E o nome da bela mulher era Terra.

23 novembro 2018

Breve Tratado Sobre a Descrença no Ser Humano

(Dmitri) Shostakovich (1906 - 1975)
(Alfred) Schnittke (1934 - 1998)
(Krzysztof) Penderecki (1933 - ainda em vida)
são os compositores nascidos no séc.XX
de que mais gosto
também fizeram muita música para filme

Shostakovich é triste e mórbido
Schnittke é caótico e fantasmagórico
Penderecki é sombrio e trágico
(ou todos são tudo isso)

quando tenho o mínimo sintoma
de alguma crença no ser humano
vou escutá-los
até perceber sobre mim mesmo e minha miséria
e deixo de acreditar no ser humano

vejo que a humanidade não pode melhorar
com gente como eu sou
e não vejo ninguém melhor do que eu

e eles também me dizem
que a saída para essa civilização
é a saída dessa civilização


21 novembro 2018

Fazer a sua Parte

as pessoas dizem: “faça a sua parte”
que parte é que deve ser feita?
fazer a parte para o quê?
o que é fazer a sua parte?
quem é que faz a sua parte?

não, eu não fiz a minha parte
eu não faço a minha parte
eu não sei que parte
querem que eu faça
quem determinou
a parte que deve ser feita?

fazer a minha parte
para melhorar o mundo?
quem disse que o mundo
pode ser melhorado
se eu e você nunca melhoramos 
e somos nós que fizemos o mundo

eu não faço minha parte
porque não posso fazê-la
porque só na fato de viver
eu já desfaço minha parte
no ato de comer
eu desfaço minha parte
em respirar
eu desfaço minha parte

ao invés de fazer a sua
infazível parte
as pessoas deviam aceitar
que para reiniciar
antes

é preciso a morte

19 novembro 2018

Dois Poemas para Schubert

Sendo, hoje, aniversário de morte de um dos maiores gênios da história da música, Franz Schubert (1797-1828):


Soneto a Schubert

surgiste dos solares das auroras
já pronto para ocasos iminentes
anoiteceu em tudo o que tu sentes
e cavalos galopam tuas horas

um sonho de mais vida te devora
que é o oposto de sublime ir em frente
há um alto nos avisos que pressentes
segredos que ameaçam ao ir embora

que deus que morre em teu gênio profético?
quem é que escuta teus sopros fatais?
que traz de oculto teu cântico hermético?

as fúnebres marchas são teus sinais...
quem me dera um catastrófico épico
para entender-te os anúncios finais


Após Schubert

essa estrela que eu olho
não é ela que está lá
pois uma outra há que vá
que me olha no que eu olho
mas essa estrela que é
que deseja o que eu vejo
nunca é no meu desejo

essa noite que eu vi
nunca foi a que estava
mas se vai com outra asa
longe do que pedi
alma do que não foi
e outra noite me envia
som-voo do que morria

este sonho que eu tenho
não é sonho que pode
fiz-me por outro acorde
nada em que me sustenho
erro do meu não ser
noite do que vou tê-la
nem sonho e nem estrela

17 novembro 2018

Soneto no Modo Ultrarromântico

ela que sempre esteve do meu lado
e na paz me passava a mão no rosto
ela sabia do meu sol já posto
e que de vinho eu era consolado

só ela aceitou sangue no meu fado
e sempre amou o meu olhar de corvo
e agora que só o não eu absorvo
me declarei por ela apaixonado

ouço Brahms e Schubert demais
doença que sempre me tornou mais forte
me encheu a vida de fins e finais

só ela lambe o fundo deste corte
e me chora amor entre coisa e tais...
me emociono ao ouvir seu nome: Morte.


15 novembro 2018

A Esperança Existe

a Esperança existe.
veio me visitar ontem
e disse que ficaria para o jantar
não trouxe um gole de bebida
e não ajudou com a pizza
não parava um segundo de falar
entre assuntos sérios
coisas lindas
absurdos merdas e bobagens

seja como for
a conversa até que era envolvente
mas a Esperança ficou bêbada muito rápido
e logo passou mal
vomitou por todo o banheiro
desmaiou por alguns minutos
e quando voltou a si
disse que tinha que ir
mas que voltaria amanhã

amanhã é hoje
e agora a Esperança está ali
num canto da parede
na forma de um gafanhoto verde

13 novembro 2018

de Governos e de Leis

I - governo
(quando ditadura)
é alguém dos alguns
metido a força
que pensa poder mandar em todos
para benefício desses alguns
que inclui a si e aos seus

governo
(quando má-democracia)
é o empregado
autorizado e pago
pelo povo
para mandar em todos
em benefício dos mesmos alguns
que querem fazer do povo
um bando de nadas
e de nenhuns

II - lei
é estabelecer
que todos são iguais
desde que não
sejam os alguns
para que o povo
se iguale sempre ao povo
e jamais
se desiguale do seu nada
a lei é a ordem dos alguns
e para estes
lei é sempre se manter
dentro dos limitados
limites da estrada

11 novembro 2018

Maldição vem de berço

Maldição vem de berço.
não é pra qualquer um.
quem é maldito nunca perde a maldição:
ser maldito é um estado de espírito
um existir de alma
uma forma de vida
não há filosofia que seja melhor

poeta não é quem tem inspiração
até um político pode se inspirar às vezes
poeta é quem tem maldição

nem a luz nem a escuridão
estão sempre presentes
mas a maldição está:
tu olhas e lá está ela
sempre ali a te olhar de volta

tem que ser muito maldito
pra aguentar ter alma
há que se viver muito horror
pra se tocar no coração
tem que se conhecer muito bem o mal
para se saber o que é amor

maldição não é para melhorar ninguém:
maldição é para se criar Arte.
arte de verdade e ausência de maldição
são termos irreconciliáveis

Maldição vem de berço
ou antes.

09 novembro 2018

Dois Noturnos

I - é a lua que nasce para todos
bem mais que o sol: 
não é para todos que o sol brilha 
mas não há quem não tenha noite 
e não há quem não sinta sono 

II - o teu canto 
coruja hermética 
de olhos autônomos 
equivale a um tratado de filósofos 

e há mais sabedoria no teu pio 
do que em todo os autômatos 
do povo do Brasil

07 novembro 2018

Rastro de Ser Humano

por onde quer que o ser humano passe
deixa um rastro de destruição e morte
tudo para poder manter sua bunda rica
sobre o banco de couro do seu carrão do ano
matas devastadas campos miseráveis
paisagens desoladas rios apodrecidos
tudo em nome da ostentação do sucesso
por onde quer que o ser humano cruze
deixa um banho de horror e sangue
animais caçados torturados massacrados
atropelados queimados extintos
tribos perdidas escravizadas dizimadas 
tudo em nome da enganação do progresso
o rastro do ser humano
é um rastro de fedor e doença
o homem cospe em tudo mija em tudo caga em tudo
a tudo estraga a tudo acaba
desconstrói sonhos afunda paraísos
enegrece as águas enfumaça os céus
o rastro do ser humano é de óleo e de injustiça
de agrotóxicos e de lágrimas
de horrores e de aço
tudo para que uns se afoguem em moedas
e outros mergulhem em restos
e o que me resta de mim ser humano
é um rastro de cansaço

05 novembro 2018

Há Mordaças no Canto dos Pássaros

olho para o azul do céu azul
mas não há nenhum azul a ser olhado
o sol que brilha queima sem brilhar
quilômetros e quilômetros de matas amarelas como ouro
há mordaças no canto dos pássaros
o som das águas que correm
paira em névoas de barulhos negros
e eu afundo meus pés
em cadáveres de felinos

levo minhas mãos ao rosto
e elas estão sujas de barro e veneno
mas eu ainda acredito
acredito no Horror
em tudo que rasteja e afunda

um bando de porcos berra com gosto de gordura e sangue
ao longe eu vejo um prédio de 16 andares
e do seu alto pessoas se atiram
e caem com o pescoço quebrado
sobre um verde lago de merdas
como se não houvesse esperança
mas há esperança por entre os vermes

eu acredito no Fim
em tudo que agoniza e morre
e a minha crença se derrama
como sangue quente
de golfinhos mortos pelas praias
357 cavalos brancos se atiram em poços
quebram as patas e caem de ponta cabeça
quando de repente vejo um espelho
e ali estou eu:
zumbi acreditando no futuro


04 novembro 2018

De uma Influência de Edgar Allan Poe

quem garante
que o real não é sonho
e que o sonho é o que é?
há lagos em que o fundo
nunca alcança a existência de nosso pé

o que existe existe
ou existe
porque eu penso que existe?
dependendo de como
e quando
se vê
a mesma flor
pode ser alegre
ou pode ser triste

só se sente
que o sonho é sonho
quando o sonho chega ao fim
e mesmo quando sinto
não domino o que vem-me aos sentidos
e até mesmo o vinho tinto
só é tinto
porque meus olhos humanos
o percebem assim

e mesmo quando penso 
quantos pensam ao mesmo tempo
dentro de mim?
e mesmo quando escrevo
um verso que diz não 
quem garante
que ele dizendo não
não disse sim?

01 novembro 2018

Desaforadas (Ou Após ouvir Shostakovich)

porque há risos gargalhadas
em cascatas cataratas
sanguinadas pelas pragas

são cantatas de gargalhas
das risadas alastradas
zombarias pelas águas

são compassos de risadas
entre asas garras brasas
pelas rubras russas geadas

o deboche dos abutres
o gaguejo de macacos
gorgolejo de galinhas

graves línguas de lagartos
entre o sarcástico dos asnos
pelas gárgulas e cabras

ironias desbocadas
em metralhas e sarcasmos
em grotescos e catarras

há danças valsas facas
essa desgraça de engraçada
a lembrar que a humanidade

é só uma piada

31 outubro 2018

Governo Bolsonárico

piadas
cagadas
desgraças
desertos
caçadas

riquinhos
tirinhos
milicos
patentes
pinicos

usura
censura
tortura
tragédia
amargura

acéfalos
hipócritas
suásticas
patéticas
dos trópicos

e os três Phoderes:

o Cômico
o Estúpido
e o Catastrófico


29 outubro 2018

A Era da Maldade

Trump e Bolsonaro venceram. Isso, para ficar nos casos mais representativos nas Américas. Bolsonaro é um Trump piorado. Ou uma caricatura tosca de Trump. Mas apesar das diferenças pró Trump (tem mais história, mais feitos, é mais culto e mais inteligente, traz uma base muito mais sólida que a de Bolsonaro), ambos têm algo em comum: a maldade.

Vivemos um outro momento na humanidade. Ou o retorno de um outro momento que se configurava há cerca de 100 anos atrás. Momento em que o egoísmo e o desumano prevalecem. O egoísmo fala em um pseudo-nacionalismo de ódio ao diferente, o qual é visto como ameaça, utilizando-se de falsos conceitos de família, pátria e Deus, que se tornam apenas eficientes instrumentos de controle.

O desumano nos fala de uma ordem, na realidade impossível e de fachada, mas que seria necessário  se implantar a todo custo através da opressão, da repressão, da redução dos direitos individuais, do controle da liberdade de muitos para o benefício de poucos. É ostensível que o discurso de fachada desses novos governantes é um, e seus atos, são outros. Falam através da liberdade e da democracia, mas tentam convencer que para se "manter a liberdade e a democracia", é necessário que se "reduza a liberdade e a democracia". Exatamente como fez Hitler nas primeiras décadas do século XX.

O egoísmo também  nos fala do lucro a qualquer custo. O custo é mais e mais destruição ambiental e exploração do trabalho humano. Vivemos uma nova era da impiedade e do medo, da ausência de compaixão e de solidariedade. Nosso coração morre a cada dia. Voltamos à era da redução das áreas de preservação ambiental, do massacre dos povos nativos, da liberação da caça e da aniquilação da vida selvagem, pois isso não tem valor para o neoliberalismo, a não ser o valor financeiro. A poluição desenfreada não terá limites, a vida será cada vez mais subjugada pelos meios de produção. Vivemos a era em que os recursos naturais, desde campos, florestas, até a água ficarão nas mãos de muito poucos, assustadoramente poucos. 

O capitalismo agonizante tenta sobreviver através da morte, sugando a última gota de sangue que restar em nosso planeta. Vivemos a era em que o trabalho humano voltará a perder valor. Direitos trabalhistas são e serão retirados ao limite máximo. Com a justificativa de que é para gerar empregos e pelo excesso de mão de obra. Mas é apenas para gerar mais lucros. E não se poderá se pronunciar contra essa "ordem" estabelecida. Como previram Aldous Huxley e George Orwell, uma falsa necessidade de ordem criada artificialmente trará o autoritarismo disfarçado de democracia. 

Vivemos a era da insensibilidade. A era em que a inteligência, a cultura e a arte serão vistas como um perigo por ameaçarem a farsa da necessidade da "ordem". Vivemos a era do ódio ao próximo, se o próximo não vive ou não pensa ou não concorda com o que é tido como "correto". Mas tudo encharcado da hipocrisia dos papinhos moles e dos melosos sorrisos de falsa amizade, nos discursos de fingimento religiosos, naquela velha coisa de "isso vai ser bom pra você". 

É a era das sentenças arbitrárias e dos julgamentos por interesse. Dos bodes expiatórios. A era em que o culpado de tudo é sempre o outro. Principalmente, se o outro for diferente. E, portanto, o outro deve ser eliminado ou excluído. Caminhamos para uma 3ª Guerra Mundial. Vivemos a Era da Pós-Humanidade. A Era do Fim.

24 outubro 2018

Sem Fundamento

as pessoas se habituaram
a viver a vida que vivem
como se a vida fosse isso que vivem

a vida?
por que assim?
quem levanta de sua cama
levanta para quê?
o trabalho
é um trabalho para qual objetivo?
e alcançado o objetivo
o que é que resta do que fica?

quem dorme
descansa de qual cansaço?
e para que se cansou?

saímos todos os dias
para viver a vida
dentro do mundo
e estamos convencidos
de que a vida é essa que se vive
e de que o mundo é esse que se tem
e de que o que fazemos
é o que deve ser feito

saímos todos os dias
para a morrer a vida
e ninguém se pergunta nada
e não se faz nenhum questionamento

mas errado sou eu
quando digo que tudo isso
não tem nenhum fundamento

23 outubro 2018

Da Mediocridade

I - a humanidade é a soma geométrica
de todas as merdas de cada um de nós:
progredimos pelo bueiro avante.
mas não é esse o problema
o problema é que os humanos
tomaram laxante

II - as pessoas dizem:
“a humanidade é medíocre”
mas a humanidade
é formada pelas pessoas
logo
as pessoas são medíocres.
mas alguém diz:
"eu sou uma pessoa
logo
eu sou medíocre..."
?
o medíocre começa
em não se perceber que o é.

20 outubro 2018

O Meu Lado

eu sempre estarei do lado dos que não têm lado
dos oprimidos dos esquecidos dos explorados
dos combalidos dos excluídos dos exilados
eu nunca serei pelos lucros das empresas
eu nunca serei pelas lavouras dos latifúndios
eu nunca serei pelos produtos das indústrias
eu nunca serei pelo ouro das mineradoras
eu nunca serei pelos tanques dos exércitos

eu estou do lado de quem paga a conta
e não de quem cobra o juro
eu estou do lado de quem cuida a planta pra crescer
e não de quem a enche de veneno
eu estou do lado do animal que é caçado
e não de quem dá o tiro
eu estou do lado dos que sofrem pela vida
e não dos que vivem para a morte

eu sempre estarei do lado 
dos que não têm vez:
é o único lado
que representa um poeta

17 outubro 2018

Tempos - Sombra

não há esperança pra vida ou pra massa
nosso Horror nos domina a fogo e a ferro
Shostakovich sangra ácido berro
e Beethoven se ergue além da fumaça

tempos-sombra assomam atrás das desgraças
homens tropeçam no seu desespero
tudo o que é luz desmorona no erro:
nos restam o vinho o whisky a cachaça

mundos de caos nos espreitam na lama
tudo o que somos não passa de falha
máquinas pisam por todas as gramas

resta-me a arte por som e navalha
resta-me um algo que é mais do que chama
que chama o que fúria: triunfo e mortalha

15 outubro 2018

Sangue de Porco

a humanidade
está acabada.
(é, eu sei, alguns  irão protestar,
o que não muda nada)

então que estas levas 
de palavras em lavas
larvas de palavras não-livres
livros não lavrados mal-lidos
me deixam mais leve

estas palavras
largarei letra a letra
pingos de vela
granos de areia
e uma cabeça de ovelha

a humanidade acabada:
aquele jorro
de sangue de porco
da garganta esfaqueada

que estas levas
de palavras em lama
me deixem mais breve:
que o diabo as carregue
e o sangue as te leve