Um relâmpago soado como se não estivesse (ele quase nem era) no longínquo do canto de um quadro. Um longe que nem foi notado. Os dois surdos sentados em um banco branco entre o verde desbotado da praça. Olham entusiasmados o carro que passa, mas que não emite som. Para os surdos, ao menos, não emite. Mas o carro os entusiasma pelo fato de se movimentar sem necessidade que algum animal o puxasse. Não obstante, o relâmpago continua no canto de um dia de sol. Já nem tão dia, já se enrugando de sensações de ocaso. Nuvens pardacentas para cinzas que surgem vagarosamente, como lesmas arrastando-se pelas calçadas castanhas em um derradeiro dia de verão. Já nem tão verão, alguns diriam que agourantemente outono.
Entre a praça, os dois surdos, ainda sentados no banco branco debaixo de um limoeiro florido exalando o perfume de suas flores (que, todavia, não cheiram), veem que há alguns pássaros à sua volta. Alguns pássaros, apenas, não muitos. Veem, porém, obviamente, não ouvem. Continuam fixando suas atenções estupefatas nos veículos que passam. Nenhuma pessoa passa pela rua. Não que não passe nenhuma. Logicamente que passam muitas. Em demasia até. Porém os surdos não se interessam por elas. E nem elas pelos surdos. E nenhum de nenhum percebe que alguém está ali ou passa por ali. E ninguém se interessa por ninguém. Então, é como se não passasse absolutamente ninguém.
Eu também passo não passando por ali. Porém, observo os dois surdos atentamente. Um homem e uma mulher, um casal de surdos. Belos, devo dizer, formam um perfeito conjunto. A moça, definitivamente bela, está com os seios quase à vista. Faço que não vejo. Poderia, contudo, olhá-los sem problema, pois os surdos não me veem. Não porque não podem, mas porque não querem, pois estou a um passo deles. Cumprimento-os com uma profunda saudação. Claro que não ouviriam minhas palavras. Mas também não veem meu gesto. Com seus belos olhos vidrados nos carros que passam, a mulher parece que olha através de mim. É como se eu não estivesse aqui, ou nem sequer existisse. O homem olha para baixo, como se verificando se sua roupa está bem ajustada ao corpo. Prossigo a minha caminhada.
Uma névoa de frio surge de súbito. Deve ter surgido do campo que já a essa altura desaparecera. Um pouco mais adiante de onde eu deveria pisar, noto uma pequena poça d’água. Percebo que uma moça chora agachada sob uma pequena tenda colorida como um arco-íris. Imagino, imediatamente, como quem não pensa, que a poça seria a acumulação de suas lágrimas. Uma menina, na verdade. Obviamente, não devem ser suas lágrimas ali. Ainda mais que todos pisam na poça, pois é quase invisível entre a névoa do frio do campo que já não era. Acrescento, como na indiferença, que é quase noite. Um ocaso lento, arrastado. Mesmo entre o nevoeiro, aquele relâmpago, que se aparenta com um detalhe de um fundo de uma pintura antiga e esquecida, não cessa de cintilar. Tenho uma leve impressão, não confirmada, de que se aproximou, embora nada que impressione. Não nesse momento de indiferença.
As pessoas que pisam na poça d’água que eu, ingenuamente, ainda imagino ser das lágrimas da menina de olhos castanhos, como não veem a poça diante de seus pés, no que não as posso culpar, pois é praticamente invisível, molham seus pés até os calcanhares e então resmungam algo que não consigo entender, até porque é tudo muito rápido. A menina permanece chorando debaixo da tenda colorida. Aceno para ela. Então percebo que é cega. Porque me olha, mas não vê. Mas ainda agora tenho a impressão de que ela sorriu, um sorriso malicioso, talvez até maligno. Mas é apenas a minha impressão, que, como não deve deixar de ser, não tem valor algum. Impressões são impressões. Por exemplo: tenho a impressão, fortíssima, de que aquele cachorro que transa com uma cadela sarnenta na esquina diagonal à minha é o cachorro do meu colega de trabalho. E aí está a prova de que impressões não passam de impressões, porque meu colega de trabalho não tem cachorros.
Adiante, um mau cheiro invade minhas narinas como se fosse de amoníaco. Porém, é um fedor mais pungente, insuportável. Acredito ter ouvido um trovão estendido entre os montes. Uma senhora pendura sua blusa na sacada do apartamento. Parece não sentir o fedor. Aliás, parece que ninguém o sente, tão somente eu. Percebo uma aglomeração em uma esquina. Curioso, aproximo-me. Um coração apodrece na calçada. É dele que vem o mau-cheiro. As pessoas, porém, afirmam, categoricamente, como quem estuda, que não há mau-cheiro algum. Protesto, mas é inútil. Estão certos de que é um coração de porco em estado de decomposição, não pode ser humano. Há alguns que discordam; “É um coração humano que algum cachorro trouxe do necrotério, ou do cemitério talvez!”. Outros acham que o coração, carcomido por larvas, foi derrubado por algum médico que o estava levando para a incineração. Ou para doação, enfim. Outros estão certos de que é de brinquedo. Mas a opinião geral, e já aceita, é que é mesmo o coração de um porco, animal que possui seu órgão cardíaco bastante semelhante ao nosso, como sabem os estudiosos. Muitas moscas verdes em volta. A névoa é intensa.
Volto-me para a praça. Lá está o casal de surdos a observar, atônitos, os carros que passam sem cessar. Começa a chover. Aquele relâmpago de canto de pintura continua. Até já se torna um pouco irritante. Quase noite. E o coração ali, coração de porco, dizem. Meu Deus, como fede. Todos dizem que não, tanto que consideram desnecessário retirá-lo, mas eu sinto. Maldito coração!
(Na imagem, detalhe da asa direita do tríptico "O Jardim das Delícias", de Hieronymus Bosch.)