06 maio 2010

Um Cadáver de Poeta


A seguir, alguns trechos da 2ª parte do longo poema Um Cadáver de Poeta, de Álvares de Azevedo, que está em sua Lira dos Vinte Anos. Abaixo, um soneto meu, um dos 15 sonetos que estão incluídos em meu livro Poemas do Fim e do Princípio. Posto este soneto aqui justamente porque ele foi inspirado em Álvares de Azevedo. A imagem que acompanha os poemas é o quadro "Hamlet e Horácio com os Dois Rústicos", de Eugène Delacroix.

Um Cadáver de Poeta (Parte II - Trechos)

A poesia é decerto uma loucura:
Sêneca o disse, um homem de renome.
É um defeito no cérebro... Que doidos!
É um grande favor, é muita esmola
Dizer-lhes — bravo! à inspiração divina...
E, quando tremem de miséria e fome,
Dar-lhes um leito no hospital dos loucos...
Quando é gelada a fronte sonhadora
Por que há de o vivo, que despreza rimas,
Cansar os braços arrastando um morto,
Ou pagar os salários do coveiro?
A bolsa esvaziar por um misérrimo,
Quando a emprega melhor em lodo e vício? ...
(...)

Deixem-se de visões, queimem-se os versos!
O mundo não avança por cantigas.
Creiam do poviléu os trovadores
Que um poema não val meia princesa.
Um poema, contudo, bem escrito,
Bem limado e bem cheio de tetéias,
Nas horas do café lido, fumando...
Ou no campo, na sombra do arvoredo,
Quando se quer dormir e não há sono,
Tem o mesmo valor que a dormideira.
(...)

Meu Deus! e assim fizeste a criatura?
Amassaste no lodo o peito humano?
Ó poeta, silêncio! — é este o homem?
A feitura de Deus! a imagem dele!
O rei da criação!...
Que verme infame!
Não Deus, porém Satã no peito vácuo
Uma corda prendeu-te — o egoísmo!
Oh! miséria, meu Deus! e que miséria!

Álvares de Azevedo


Soneto Ultrarromântico


Peguem meus versos e matem com as fadas,
sujem no sangue de todas as mortes,
deixem aos pedaços sangrando de cortes,
sepultem as artes, não servem pra nada.

Joguem no lixo da Terra acabada,
cacem minha alma em covardes esportes,
juntem com a cinza da velha má-sorte,
chutem os poetas das altas escadas.

Aplausos à arte são sempre mentidos,
e todo artista que se acha mui útil
já vê o seu peito nas ruas cuspido.

O homem só louva o imbecil, o que é fútil,
o tolo e a merda. Tudo urde perdido!

Tudo está morto! Ó minha arte que é inútil!

04 maio 2010

e o Resto é Fim

deixo que o verso saia como ele foi
sem que eu pense em nada
para deixá-lo sendo o que ele não é
o verso nada tem a ver do que penso
a arte que por ele passa
vem do todo e nada tem de mim
é livre em seres que não tenho
é livro que se cala no que digo
é vento que se vaga não comigo
é lago que se nada no não-dito

deixo que passe o que se passa por mim
de que importa aquilo do que sinto?
de que sente o sangue que não tenho?
de que vale o vale que me afundo?

o verso é vasto longo e fundo
vai muito além do que está aqui
por que querer que ele fale de um eu?
por que o verso tem que ser o que é meu?

o verso é de mim o meu ser:
se o meu ser não fala por mim
deixo que o verso fale por si...
e o resto é fim.

03 maio 2010

Catástrofes, Impotência da Ciência e Prenúncios


40 milhões de litros de óleo derramados no mar no litoral dos EUA. Isso por enquanto, porque calcula-se que o derramamento prosseguirá por meses. Meses!

Pode ser esse o MAIOR DESASTRE AMBIENTAL DA HISTÓRIA DOS EUA. E um dos maiores da história da humanidade.

Já estou vendo os milhões de peixes e outros seres marinhos mortos. A vegetação de uma reserva de vida totalmente aniquilada. As milhares de aves e os milhares de ovos dessas aves mergulhados no óleo. Isso sem falar nos répteis. Sem falar nos anfíbios. Sem falar nos mamíferos. Inclusive o homem. Mas o homem... O homem merece.

O mar doente por anos. Talvez, para sempre. Quantos desastres desse tipo já ocorreram? E quantos ainda ocorrerão? Cada vez piores.

O homem confia cegamente na ciência. Ninguém esperava que houvesse uma explosão. Mas houve. E depois, ninguém esperava que dessa explosão pudesse vazar tanto petróleo. Mas vazou. E agora, o que a ciência fará? Suas tentativas para impedir que o óleo se espalhe são ridículas, para não dizer trágicas.

Mas não adianta. É inútil. É necessário o "progresso", não é mesmo? O "desenvolvimento", essa palavra sinuosa, que sempre enche a boca rançosa dos políticos, sempre falará mais alto. O "desenvolvimento" não pode parar. Quem tem que parar é a Terra. Qual seria o lema da humanidade racional? "Desenvolvimento até a Morte!". Ou seria melhor, "Desenvolvimento e Morte!"? Ou quem sabe, "Morto, mas Desenvolvido." Ou ainda: "Desenvolver é preciso, viver não é preciso." Bem, não importa, o que importa é que temos que nos desenvolver, produzir mais carros, mais armas, mais brinquedos, mais porcarias alimentícias, mais agrotóxicos, mais computadores, mais celulares, enfim... Produzir até a Terra não aguentar mais.

Para encerrar, seria interessante repostar aqui o poema que escrevi dia 16/04/2010, um pouco antes, portanto, da explosão da plataforma de petróleo, que ocorreu dia 20/04. Soa até como um prenúncio. Claro que eu não adivinhei o que aconteceria. É que tais catástrofes já são tão comuns que... que já fazem parte da arte, desgraçadamente.

Poema Sem Graça
adeus
graça
aos gracejos estúpidos
do homem ingrato

a pena que tenho do homem
afunda como o branco da pena da garça
no negro do óleo que escorre
sem graça nenhuma

vai-te em graça
como símbolo gracioso
de tudo aquilo que morre:
a Deus
garça

e o que resta
à humanidade (in)graçada?
a des...
graça.

01 maio 2010

As Duas Mulheres (3ª Parte - Final)

Mesmo em minha angustiante apreensão para compreender o que estava acontecendo, não sentira, até então, nenhuma espécie de real mal-estar na presença daquela bela mulher. Mas em minha terrível curiosidade, perguntei-lhe nervoso quem poderia ser a bestial mulher manca que me perseguia com tanta perversidade. Ela limitou-se a dizer o seguinte, em sua serena elegância, esboçando um sutil e indecifrável sorriso:

- Já está amanhecendo... Veja!

Voltei o rosto para meu lado direito e divisei ao fundo duas imensas janelas góticas cobertas por duas vastas cortinas escarlates. A moça ergueu-se e abriu lentamente as cortinas. Pelos vidros cristalinos das janelas, vislumbrei a irradiação de uma anormal luminosidade que alternava colorações avermelhadas, levemente azuis, tenuemente roxas, e, mais intermitentemente, verde-escuras.

Em seguida, a bela moça abriu uma pequena porta por onde essa estranha luminosidade penetrou como uma densa névoa fosforescente. Pediu-me que me levantasse e me dirigisse até a porta. Ao chegar a um passo da entrada, fui assombrosamente surpreendido por uma visão deslumbrante até o absurdo. Ao longe, uma vastidão de campos e matas estendia-se até onde alcançava a vista. Era um horizonte infinito que parecia se perder em um universo de colorações avermelhadas. Creio que muito ao longe relampejava... Nas planícies mais próximas de meu ponto de observação, cobertas de exuberante vegetação anormal, brilhava a luminosidade estranhamente colorida, como se esta não fosse oriunda do sol, ou, pelo menos, do sol que conhecemos.

As nuvens envoltas por tais luzes assumiam formas espectrais, fantasmagóricas. Era impossível definir de qual ponto do espaço as luzes eram oriundas. Oscilavam como ondulações pelas atmosferas que refulgiam transbordantes de suas sobrenaturais luminosidades. Enquanto contemplava estarrecido aquele lancinante espetáculo, não percebi que Aurora me observava com perscrutadora atenção. Quanto a mim, tentava elaborar em minha mente algum tipo de explicação. Só sei que sentia uma profunda tristeza. O que presenciava, apesar de fantástico, não era de forma alguma feliz ou apaziguador. Pelo contrário, transmitia uma sensação quase insuportável de melancolia.

Ao deitar meus olhos àqueles horizontes sem fim e avermelhados, senti um desânimo desolador. Seria algum efeito daquele misterioso chá? Lembrei-me então do tique-taque perturbador que havia cessado. Nesse exato instante, Aurora proferiu algumas frases que para mim soaram completamente desconexas. Sua voz parecia flutuar ecoante pelo ar carregado daquelas luzes coloridas. O que pude depreender do que a moça disse era algo relacionado ao relógio. Olhei para o alto da porta, de maneira esquisitamente mecânica. Ali estava o relógio funcionando, mas sem emitir o som dos tique-taques.

Cheguei a imaginar que tudo fosse um sonho. Mas sabia que estava acordado. Ou não sabia? Afinal, de que é que sabemos? Como se lesse meus pensamentos, a moça sussurrou-me aos ouvidos que o que sabemos é o que sangramos. E beijou-me nos lábios, e da minha boca derramaram-se copiosas golfadas de sangue. Em seguida, disse-me ela para que olhasse para a porta por onde eu havia entrado.

Olhei. Pelo lado de fora da porta, pude distinguir as feições repulsivas da bruxa manca, observando-me fatalmente com seus olhos arregalados e devoradores, com seu escabroso sorriso de defunto. Um arrepio diabólico percorreu minha espinha. Nada pude dizer. Senti-me paralisado. Mal conseguia mover-me, parecia que algo pesava sobre meus ombros. Meu pulso estava fraco. Foi Aurora que quebrou o fúnebre silêncio:

- Agora tu deves ir através dessas luzes e dessas paisagens. Sabes o que tem lá? Lá vibra o Horizonte do Infinito.

Aurora pronunciou tais palavras como se cantasse uma missa, e novamente um calafrio percorreu o meu corpo. Porém, a sensação de tal calafrio era substancialmente diversa daquela que senti devido à visão ominosa da bruxa.

Poderia dizer que os calafrios eram diametralmente opostos, suas sensações vibravam de um extremo ao outro, como se fossem dois pólos de uma mesma corrente elétrica... As conclusões irracionais a que tal constatação me levou tenho receio de mencioná-las agora. Uma comoção de sublime fatalidade fervilhou em minha psique. Estaria salvo? Estaria perdido? Ou simplesmente morto? Ou nada disso?

Começou a soar uma música... Era uma flauta desolada. Legítima melodia de Fim. Não sei de onde ela surgira. As notas daquela música eram de uma tristíssima estranheza. Adejava pelo ar como uma sentença. Confundia-se com as nuvens fantasmais envolvidas pelas absurdas colorações.

Senti um perfume trágico de incensos. Aurora entrou e abriu a porta para a bruxa manca. Levou-a para um canto da sala, e imaginei que cochichavam. Quanto a mim, deveria partir. Mergulhei nas névoas de luzes anômalas em direção ao horizonte que aparentava não ter fim. Mal consegui caminhar. Não tive coragem de olhar para trás. A caminhada seria penosa. E a flauta do Fim me acompanhava. Agora já é um piano...

30 abril 2010

As Duas Mulheres (2ª Parte)

Foi então que as cabeças das pessoas começaram a explodir. Antes disso, percebi que seus olhos congestionavam-se violentamente de sangue, enquanto urravam de dor. Então, a cabeça explodia, e o sangue espalhava-se por todos os lados. Minha camisa branca tingia-se de vermelho sanguinolento. Alguns indivíduos, nos instantes imediatos à explosão de sua cabeça, lamentavam profundamente o fato de que no outro dia estariam impossibilitados de trabalhar, pois já teriam morrido. Centenas de cabeças já haviam explodido, quando senti que em breve chegaria minha vez. Um desespero cósmico fez tremer minha alma.

Nesse instante, avistei novamente a mulher manca. Vinha em minha direção. Dessa vez, não de maneira lenta e arrastada, mas com rapidez canhestra, grotesca, uma marcha verdadeiramente assustadora. Porém, nunca deixava de manquejar. Trazia os olhos quase que fora das órbitas e um sorriso debochado em seu rosto de maligna deformidade. Avançava a passo célere em minha direção. Com as mãos na cabeça, fugi alucinado, tropeçando em lixo e em cadáveres.

Ao passar por uma casa antiga e parcialmente arruinada, vi que alguém me observava com um enorme par de olhos fixos e escuros. Detive-me. Olhei ao redor. Principiava a anoitecer. A porta abriu-se rapidamente. A moça que me observava limitou-se a ordenar:

- Entra! Aqui ela não entrará, agora.

Obedeci, aliviado. O ambiente em que entrei encontrava-se em uma densa penumbra. Somente duas velas o iluminavam. Pude perceber que era uma casa bastante antiga, tanto pela sua arquitetura interna, quanto pelos móveis e pela decoração. Esta, embora eu não pudesse contemplá-la satisfatoriamente devido à escassa luminosidade, era um tanto estranha, perturbadora, eu diria. Havia quadros com retratos de pessoas aparentemente muito antigas, e todos passavam a impressão que me fitavam de forma sentenciosa. Distingui também algumas pinturas clássicas. Duas eram de Da Vinci, outras, de Bosch e algumas, de Rembrandt.

Havia espessas teias de aranha em todos os cantos. Alguns animais que deviam ser gatos (deviam, mas não pude ter certeza) escondiam-se sorrateiramente atrás dos móveis. Apesar do clima tétrico, sentia-me relativamente bem naquela casa (pudera, depois de todos os horrores por que passei nas ruas dantescas). Ali não ouvia os aflitivos tique-taques e, consequentemente, minha dor de cabeça cessara por completo. Mas uma inquietação profunda me atormentava...

A moça pediu-me que sentasse. Era bela, muito bela... porém... estranha. Apesar de toda sua beleza, não sei dizer com termos racionais o porquê, ela de alguma forma indefinível lembrava a horrenda mulher manca que me perseguia. Trajava um lindo vestido de um intenso vermelho que lembrava o odioso vestido de vermelho desbotado daquela bruxa. Seus cabelos, como os da manca, eram castanhos, contudo, um pouco mais longos e bem mais lisos, perfeitamente limpos e penteados.

Seus belos olhos, também castanhos, eram igualmente enormes, porém, não apresentavam olheiras, não aparentavam saltar das órbitas, não expressavam nem insanidade nem ódio, mas uma esquisita ternura, uma inquietante cordialidade e uma viva inteligência. Os olhares que ela me dirigia transmitiam simultaneamente uma sensação de bem-estar e de estranhamento. Um receio, uma constante inquietação.

Seu corpo era perfeitamente esbelto, seu porte irrepreensível chamava de imediato a atenção pela extrema elegância. Nada tinha, portanto, da deformidade hedionda daquela bruxa manca. No entanto, e isso eu não consigo explicar, algo na moça enquanto ela caminhava trazia à mente a marcha pavorosa daquela mulher infernal.

Após sentar-me, a moça declarou seu nome. Chamava-se Aurora. Perguntou-me se eu aceitaria um chá. Aceitei, e logo me trouxe um chá que ela já havia preparado. Provei do chá com certo receio e cautela. Era delicioso. Mas não identifiquei seu sabor. Ao questioná-la sobre qual seria, ela respondeu-me de forma alarmantemente misteriosa:

- Certas coisas não devem ser ditas... pelo menos por enquanto...

Gelei ao ouvir essas palavras. Não exatamente pelo que elas poderiam significar, o que já constituiria um forte motivo, mas devido ao tom com que foram proferidas. Sua voz, de fria e tranquila beleza, irradiava, ao mesmo tempo, doçura e gravidade, uma clássica cordialidade unida a uma expressão sombria de autoridade e ameaça.
(Amanhã, a 3ª e última parte)

29 abril 2010

As Duas Mulheres (1ª Parte)


Sentado na pequena escadaria da entrada de minha casa, observava, com um sarcástico sorriso no rosto, aquela horrível e ridícula mulher que trajava um vestido velho de um vermelho desbotado. A mulher mancava de forma grotesca. Principiava uma manhã nublada e abafada. Aos poucos, um vento insalubre de uma chuva enfermiça iniciou a soprar. A mulher avançava mancando com uma irritante lentidão. Porém, eu ria. Ria de sua insuportável fealdade, de seu ridículo manquejar, de seus odiosos cabelos castanhos, curtos e sujos, completamente desgrenhados e embaraçados. Sua tez morena parecia exageradamente queimada pelo sol. Seus enormes olhos rodeados por repugnantes olheiras transmitiam a sensação de um profundo rancor e vingança, um terrível ódio reprimido.

As finas gotículas de uma deprimente garoa começaram a cair, mas a mulher prosseguia em seu arrastado e odiento manquejar. De seu rosto comprido, gotejava a garoa mesclada à coriza amarelenta que escorria de seu desproporcional nariz. Seu velho vestido desbotado já principiava a grudar em seu corpo deformado e de imenso abdômen. Era uma cena insanamente grotesca, e não consegui segurar meu riso.

A mulher fitou-me com o canto dos olhos, com um visível rancor. Até que lentamente desapareceu, coberta pelas densas árvores que margeavam a rua sem calçamento.

Levantei-me da escadaria e, quando me dirigia à cozinha, ouvi batidas vagarosas na porta. Voltei-me, e qual não foi me susto ao ser canhestramente surpreendido pelo rosto repulsivo da mulher manca. Seus olhos escuros e esbugalhados dardejavam-me com ironia e malignidade. Seus lábios ressecados, lacerados, exprimiam um abjeto sorriso que me causava enjôos. Não havia como ignorar em todo horror de sua expressão um desejo transtornado de vingança.

Saí desvairado pela porta dos fundos, jamais sentira uma sensação tão demolidora de medo. Era algo como um medo ancestral, em estado puro, advindo de horrores do inconsciente coletivo. Havia algo de anomalamente perverso na fisionomia daquela mulher (ou deveria dizer, daquela bruxa?)...

Fugindo pelos fundos do pátio, atravessando o quintal de um vizinho, atingi a rua, correndo com todas as minhas forças. Após alguns minutos, parei e atrevi-me a olhar para trás. Nenhum sinal da hedionda mulher. Mais aliviado, mas não tranquilo, passei a caminhar pelas ruas imundas. O dia encontrava-se nervosamente sombrio. A garoa era irritante, e eu enlameava meus pés sem perceber. Aos poucos, passei a ouvir o tique-taque de um relógio, mas não conseguia distinguir de onde ele provinha. Sei apenas que era algo enlouquecedor. Transmitia a impressão de ser onipresente. Onde quer que fosse, ouvia o mesmo tique-taque incessante, invariável, odiosamente insano.

Pessoas passavam apressadas por mim, olhando seus relógios com extrema angústia e nervosismo. Várias traziam expressões de desespero, colocando suas mãos à cabeça e arrancando os cabelos. Algumas choravam. Creio que todas, como eu, ouviam os torturantes tique-taques.

Avançava sofrivelmente por entre toda espécie de lixo. Foi só então que percebi que estava com lodo quase até os joelhos. Pisava em animais apodrecidos, em pilhas elétricas deterioradas, em restos de comidas gordurosas, sacolas plásticas enroscavam-se em meus pés, que já sangravam. Havia cortes por todos os lados de minhas pernas. Pelo caminho, eu esmagava garrafas quebradas e latas de alumínio vazias. No desespero de sair de casa, não calçara meus sapatos. A chuva engrossara. E os trovões confundiam-se com os tique-taques que ameaçava minha sanidade.

Alguns vermes geneticamente modificados que vagavam pela lama infecta começaram a penetrar pelos ferimentos de minhas pernas, alimentando-se de meu sangue. A dor era insuportável. Lentamente, crescia o número de pessoas que passavam por mim pelas ruas miasmáticas. Suas expressões eram cada vez mais desesperadas. Olhavam seus relógios, mas nenhum deles funcionava. Não era deles que provinha o diabólico tique-taque.

Ligavam seus celulares, falavam berrando com alguém, mas eu não conseguia definir o que diziam. Só sei que os vermes, quando aquelas pessoas gritavam, surgiam às dezenas em suas gargantas, como em um sintoma típico de uma grave infestação por lombrigas.

Iniciei a sentir uma estranha dor de cabeça. Comprei numa farmácia um analgésico. Foi inútil. Carros ultramodernos conduzidos por altos executivos atropelavam brutalmente cachorros e pedestres, para em seguida espatifar-se contra prédios em desmoronamento. Minha dor de cabeça se intensificava de forma alarmante. Ao observar com mais atenção os homens e mulheres que perambulavam devastados pelas ruas, percebi que também eles sofriam com terríveis dores de cabeça. Por tal motivo arrancavam os cabelos. Creio que tão impiedosa cefaleia era causada pelo incessante e insuportável tique-taque.

(Amanhã, a continuação - Na imagem, o quadro, "O Tempo e as Mulheres Velhas", de Francisco de Goya)

28 abril 2010

Cachorro Esfomeado

a esperança
é o carneiro pendurado pela pata
aguardando que o punhal afiado
lhe fure a veia da garganta

é a curta distância em centímetros
na tábua reta sem verniz
do último passo do condenado à forca

é a luz ao longe contemplada
que se ergue aos céus em cogumelo
na majestade da bomba atômica
...
a esperança
é o sangue do carneiro que coagula
derramado pela terra em pó
enquanto sacia o desespero
do cachorro esfomeado

26 abril 2010

Tristeza do Infinito, de Cruz e Sousa


A partir de hoje, uma vez por semana, escolherei um poema de algum grande poeta para postar no blog. Não interpretarei o poema com palavras. Farei sua interpretação, como já fazia com os sonetos de Fernando Pessoa anteriormente postados, através de uma pintura. E assim, deixo aos leitores que façam sua própria interpretação do poema e da pintura, e da possível relação entre ambos.

Iniciarei com o poema "Tristeza do Infinito", de Cruz e Sousa, incluído em seu livro "Faróis", uma das obras fundamentais do Simbolismo brasileiro. Aproveito para lembrar aos leitores que se escreve Cruz e SouSa, com s, e não com z, como quase sempre as pessoas grafam. Eu, sendo um grande fã de Cruz e Sousa (para mim, o maior poeta brasileiro), não posso admitir tal erro, rsrs. Mas vamos ao que importa, o poema. Acompanha-o o quadro "Noite e Tristeza", do pintor simbolista Gustave Moreau.

Tristeza do Infinito

Anda em mim, soturnamente,
uma tristeza ociosa,
sem objetivo, latente,
vaga, indecisa, medrosa.

Como ave torva e sem rumo,
ondula, vagueia, oscila
e sobe em nuvens de fumo
e na minh'alma se asila.

Uma tristeza que eu, mudo,
fico nela meditando
e meditando, por tudo
e em toda a parte sonhando.

Tristeza de não sei donde,
de não sei quando nem como...
flor mortal, que dentro esconde
sementes de um mago pomo.

Dessas tristezas incertas,
esparsas, indefinidas...
como almas vagas, desertas
no rumo eterno das vidas.

Tristeza sem causa forte,
diversa de outras tristezas,
nem da vida nem da morte
gerada nas correntezas...

Tristeza de outros espaços,
de outros céus, de outras esferas,
de outros límpidos abraços,
de outras castas primaveras.

Dessas tristezas que vagam
com volúpias tão sombrias
que as nossas almas alagam
de estranhas melancolias.

Dessas tristezas sem fundo,
sem origens prolongadas,
sem saudades deste mundo,
sem noites, sem alvoradas.

Que principiam no sonho
e acabam na Realidade,
através do mar tristonho
desta absurda Imensidade.

Certa tristeza indizível,
abstrata, como se fosse
a grande alma do Sensível
magoada, mística, doce.

Ah! tristeza imponderável,
abismo, mistério, aflito,
torturante, formidável...
ah! tristeza do Infinito!

E-mail Recebido e Autopromoção

Às vezes, é bom quem escreve fazer um pouco de autopromoção. Ainda mais quem não tem apoio da mídia. Se até o Juremir Machado da Silva, que é colunista do Correio do Povo, muito mais conhecido do que eu, vendendo muuuitos mais livros, faz autopromoção, por que eu não posso fazer? Eu sempre hesitei, mas a partir de agora, farei umas autopromoçõeszinhas de vez em quando. Se a cada 5 autopromoções eu vender um livro, já está ótimo.

Então, vou publicar aqui um e-mail recebido do amigo Ruy Gessinger, em que comenta sobre minhas recentes postagens. Que bom que o blog tem atingido o padrão de qualidade que muito me dedico para alcançar.

"Tuas Postagens:
uma melhor que a outra, arte pura, exigência, cuidado, capricho, genialidade!
Como se criou alguém como tu, nos dias de hoje e, ainda, no país que moras?
um abraço, ruy"

24 abril 2010

Outro Trecho de Um Instante de Sono

é assim que sinto:
quando a angústia água
deixo que o silêncio sangue
sobre meu olhar que morte...

tudo que te busco é música
um som de luz que se esvai em lábio
quando em desejo não me digo simples...

toda nuvem roxa sabe do que penso
e o meu pulso vaga sem resposta
quando me vejo sendo o que não tive...

há uma eperança que suspira em chama
coração em rubro pelo verde azul
e onde estás já perto pela Mão que guia:

caminho em asas pelo todo e onde
em dúvida é ao detalhe que me vou,
que quando meu eu se esconde
é que então me Sou...

23 abril 2010

Por Que Eu Sei que Bach Tem Mais Valor que Bruno e Marrone?

Prossegue no orkut o debate sobre o subjetivismo na arte, mais especificamente na música, e me parece deveras interessante postar o meu ponto de vista a respeito aqui no blog. Que os leitores também exponham suas opiniões. Prometo que essa é a última postagem a respeito do assunto.

"O homens querem fugir do subjetivismo na arte com argumentos racionais como os que você se utiliza, e não conseguem. Porque você dizer que Bach foi mais importante para o desenvolvimento da música está simplesmente baseado, inconscientemente, no seu gosto pessoal por ele, ainda que você não queira e proteste com mil e um argumentos quanto a isso. Sabe por quê? Porque você jamais convencerá um beethoveniano de que Bach foi mais importante. E os beethovenianos tentarão lhe convencer com os mesmos argumentos racionais e perfeitamente válidos como os seus de que Beethoven foi mais importante para o desenvolvimento da música. Já participei de debates sobre tais assuntos, não no orkut, onde cada um defende seu ponto de vista com absoluto brilhantismo, e cada um fica de acordo com seu gosto. Isso é subjetivismo. Não adianta, não há como fugir a ele. É bonito falar em valoração e em critérios objetivos, mas isso é uma conversa da mente racional que sempre procura limitar as definições. Quer ter um ilusório controle das coisas.

Aqueles que julgaram Bach ultrapassado certamente tinham brilhantes argumentos de "valoração" para isso. Assim como os que queriam "corrigir" Bruckner, e os que se julgam aptos para julgar um concurso literário, como aquele em que o genial Fernando Pessoa foi considerado inferior a um escritor medíocre. Com o tempo as coisas são percebidas. Nossos critérios de "valor" sempre serão falhos. Porque sempre serão subjetivos. Quem você convencerá com seus argumentos? Aqueles que pensam como você. Aqueles que GOSTAM mais de Bach que de Beethoven. Se fosse o contrário, os beethovenianos viriam com mil e um argumentos contra os seus. Eu, particularmente, acho que ambos têm o seu valor em níveis completamente diferentes. Por exemplo, sem Beethoven, não haveria romantismo. Sem romantismo, Bach não seria o deus que é hoje. Essa é a verdade. E será que se fosse assim você estaria aqui nesta comunidade? Talvez nem houvesse a comunidade. Como querer afirmar que um é mais importante que outro a não ser com subjetivismo?

A sua comparação com Bruno e Marrone foi um ótimo recurso de retórica, mas não procede. É um argumento sofismático. O subjetivismo nesse caso vai ocorrer numa comparação entre esses cantores e Chitãozinho e Xororó, por exemplo. Qual dessas duplas é melhor? Eles estão em níveis semelhantes, e estou certo que os defensores de uma dupla e de outra teriam ótimos argumentos racionais para defender seu subjetivismo. Assim como em níveis superiores os defensores de Bach e os de Beethoven se digladiariam eternamente para um tentar convencer o outro de que um é mais importante. E ninguém convenceria ninguém, o subjetivismo sempre vence, mesmo que um lado esteja certo de que está com a razão. Aqui muitos podem concordar contigo porque têm pensamentos e visões semelhantes. Em outras comunidades seria diferente.

Os mozartianos, por exemplo, dizem que Mozart foi o mais genial de todos porque ele compunha com mais facilidade que os outros compositores músicas originais, belas, melodiosas e profundas. E acham que esse é um critério de valoração perfeitamente válido. Para mim, isso também é subjetivo. Se eu fosse defender Beethoven, diria que ele é o mais genial porque foi o único que causou uma revolução bombástica na música. Isso também é subjetivo. A arte é e sempre será subjetiva. Uma certeza de um momento, pode ser quebrada adiante. E graças a Deus elas são quebradas. Porque se houvesse objetivismo na arte, os que julgaram Bach ultrapassado estariam certos até hoje.

Cada um bebe em uma influência e, se for genial, transforma essa influência em algo novo, como Beethoven, como Wagner, como Schoenberg. Bach também bebeu em várias fontes. Seria Monteverdi mais importante que Bach? Não foi Bach que inventou o barroco na música, foi, praticamente, Monteverdi. Olha que usando critérios supostamente "objetivos" pode surgir aqui um monteverdiano dizendo que Monteverdi é mais importante que Bach, pois sem ele não existiria barroco, e não existiria Bach. Tudo subjetivismo. É inútil...


E um outro ponto? Como você vai convencer um fã de Bruno e Marrone de que Bach é melhor com os SEUS critérios de valoração? Isso não existe. Vai dizer que Bach é melhor porque o ritmo é perfeito, porque o contraponto é infinitamente superior, porque é muito mais complexo, porque sua melodias são mais belas, mais profundas, porque sua música é muito mais original, porque ele necessitou de mais estudo, porque ele é mais genial, enfim... O fã de Bruno e Marrone dirá simplesmente: "mas no meu critério de valor, Bruno e Marrone é melhor. Eu procuro simplicidade na música, melodias fáceis, que me emocionam sem eu precisar de concentração, músicas para momentos de festejos, e para isso Bach não serve." Então, onde ficam seus critérios de valoração?

É uma utopia você querer estabelecer critérios de valoração. Eles não existem, serão sempre relativos, sempre subjetivos. Por que, no meu caso, eu julgo Bach infinitamente melhor que Bruno e Marrone? A minha resposta é simplíssima: porque Bach me eleva, Bruno e Marrone não, pelo contrário, me dá nojo. Pronto. Esse é o meu critério de valoração. E é subjetivo. E o mesmo acontece com Gershwin. Bach é para mim superior porque Bach me eleva muito mais que Gershwin. Agora você vai usar critérios que dizem que o contraponto é melhor, o ritmo, a melodia, etc. Mas o fã de Bruno e Marrone não acha que isso seja um valor. Para ele não é. Não há como estabelecer valores universais. O que há são níveis de consciência. E os níveis de consciência são subjetivos. Eu sei que Bach é melhor porque tenho consciência disso. Os fãs de sertanejo não tem essa consciência. E não há critérios de valores para transmitir a eles essa consciência. Você diz que a forma e o contéudo são critérios de valores. Tudo bem, mas quem vai estabelecer que Bach tem mais forma e mais conteúdo que Beethoven? Quem? E o que é forma? Forma é perfeição formal ou é inovação formal? Quem foi mais inovador? O que é conteúdo?

No que há mais forma e mais conteúdo? Na Paixão Segundo São Mateus de Bach ou na 9ª Sinfonia de Beethoven? Quem pode afirmar com certeza que há mais em um ou em outro? Pode ser que daqui a um século, a PSM e a 9ª Sinfonia sejam esquecidas ou tenham sua importância minimizada, porque podem surgir outros critérios de valores. Só o que pode nos dizer o real valor de uma obra de arte é a nossa alma, a nossa psique. Não existem critérios objetivos. Os homens de grande alma sabem o imenso valor que essas obras possuem. Os homens de alma pequena não sabem, não entendem. Não adianta querer estabelecer critérios de valoração objetivos. O que nos dá a certeza do valor das obras dos mestres é uma certeza interna, espiritual, anímica, psíquica, como quiserem, e não critérios objetivos."

22 abril 2010

Sobre a Subjetividade na Arte: eliminável ou não?


Em uma comunidade de música erudita no orkut, mais precisamente a "Eu Acredito em Bach", surgiu um debate sobre se é possível julgar uma obra de arte eliminando-se a subjetividade do julgador. Alguns participantes afirmam que sim. Eu acredito que não. É uma questão bastante polêmica. Deixei minha opinião sobre o assunto na comunidade. Creio que seria interessante transcrevê-la aqui no blog, para que os amigos leitores também se posicionem. Abaixo, está a transcrição de minha postagem na comunidade. E você leitor, o que pensas?

"Com todo respeito, eu vou discordar de você quanto a ser possível eliminar o subjetivismo da análise artística. Não, a meu ver isso não é possível. Quanto ao puramente técnico pode ser, mas todos sabemos que a arte não é puramente técnica. Ele vai muito além disso. A arte não é algo racional, lógica, mental, muito pelo contrário, ela fala aos sentimentos, à alma. Logo, ela é subjetiva por natureza, a sua essência é subjetiva. Se fosse possível eliminar o subjetivismo, não haveria erros nas análises críticas. E quantos erros os críticos cometeram e cometem em todas as artes?

Quantos críticos julgaram que a música de Beethoven era exagerada, equivocada, sem futuro? E de Brahms? Não disseram que ele era um retrógrado? E não quiseram "corrigir" as sinfonias de Bruckner? Isso para ficar somente na música? Eu poderia citar vários exemplos de outras artes. Por quê? Porque quiseram julgar eliminando os subjetivismos. Mas a arte se expressa muito além de parâmetros técnicos, objetivos, positivos, exatos. Ela fala ao inconsciente coletivo que somente se pode entender a fundo subjetivamente. Algumas artes são mais subjetivas que outras, e alguns períodos artísticos valorizam mais a subjetividade. Mas ela sempre está presente. Bach mesmo foi considerado ultrapassado. Certamente, os que assim o julgaram tinham "parâmetros" racionais para tal afirmação. Porém, sua arte provou que ela tinha muita mais força interior para sobreviver ao tempo. Seu valor não era só técnico. Se assim fosse, haveria poucas diferenças entre Bach e Tellemann. Ambos possuem uma técnica perfeita.

Mas quem é mais genial? Bach ou Tellemann? Então, ao meu ver, isso é porque há mais alma na música de Bach, ele capta melhor o inconsciente coletivo que Tellemann, e isso não é mensurável. Há algo na arte que não é racionalizável, mensurável, nem mesmo plenamente definível. Por isso ela é arte e não ciência. Esse é o seu mistério. Ela também é técnica, mas vai muito além disso. Os concursos artísticos estão cheios de equívocos e de decisões contraditórias. Fernando Pessoa perdeu um concurso com sua genial obra "Mensagem" para um padre hoje absolutamente desconhecido. Porém, certamente, os julgadores do concurso estavam certos de que tinham parâmetros para julgar os textos.

Apenas mais um ponto. Na literatura, o barroco e o romantismo estão muito próximos, são considerados estilos similares, assim como, mais tarde, o simbolismo. Similares no sentido de que primam pelo subjetivismo, pela emoção colocada acima da razão, pela crença no sobrenatural (seja cristão ou não), pela ideia de que a arte deve ser colocada em um patamar de ligação do homem com o mistério, de que o artista tem uma missão divina, de que a arte liberta, eleva e está acima das regras da sociedade, pois vem da alma e do mistério do universo, logo seguiria outras regras. Tais características são plenamente românticas. E elas também não estão em Bach? Ao meu ver, estão."

21 abril 2010

O Poema Cósmico

o problema de onde está a Verdade
é que ela nunca está.
o que é verdadeiro
só o é por símbolo...

mas à humanidade
é tudo ao pé da letra
e a verdade que fala por vínculo
afunda em sua alma
como uma pedra
e assim a humanidade caminha
com o pé na lama...

o universo
se envia por metáforas
em um Cósmico Poema
(e um poema
nós sentimos...)

por tais motivos
no dia há luz
por tais razões
é que a noite é sombria...
mas os homens não entendem
simbologia...

19 abril 2010

A Marcha da Morte (Parte Final)


Prossegui na minha mórbida e masoquista observação, e uma série macabra e absurda de metamorfoses foi se realizando, e todas aquelas faces, muito diferentes uma das outras, era eu mesmo, eu as compreendi como personificações diabólicas do horror que de forma ostensiva ou latente sobrevive e procria em minha adoentada psique... E assim é com todos os meus irmãos “humanos”, que provavelmente ignoram a maior parte de todo esse nosso conflitante e perverso lado negro, causa indubitável de todo sofrimento e destruição. E agora se constituíam em mim como nefastas densificações moleculares e ectoplasmáticas, obtendo poder de assumir minha aparência externa, embora eu não estivesse totalmente inconsciente, pois percebia e compreendia o ocorrido.

Não obstante, permanecessem as metamorfoses faciais, eu consegui manter-me relativamente calmo e, através da serena reflexão, questionava-me sobre o que seria a loucura, ou a psicose... E vi, como um relâmpago de intuição, que a esquizofrenia, por exemplo, era muito semelhante ao que eu passava, mas em um âmbito exclusivamente interno. Ou seja, eram aqueles seres demoníacos que, em um determinado instante, fortalecidos por diversas circunstâncias, alimentados pala energia anímica humana, obtêm o poder de dominar a mente do homem que parasitam, até que assumem a personalidade característica de algum ou de alguns diabos internos, e então dizemos: é um esquizofrênico!

No entanto, em um determinado momento, senti que as trágicas transformações pareciam ter finalmente cessado. Dirigi-me outra vez ao espelho e comprovei que, de fato, voltara ao meu estado normal, apresentando de novo minha face física comum. Todavia, era atormentado por vulcânicas oscilações e inquietações em meu espírito, algo que me impulsionava a abrir a porta da casa e, desvairadamente, entrar correndo no bosque que tinha seu início nos fundos do meu pátio.

Alguma coisa se movia, em termos energéticos ou espirituais, no meu universo interior, era uma força e uma vontade que se apresentavam como dotadas de consciência, isto é, como sendo um intuito legitimamente meu, uma revolta profunda e sincera contra a totalidade daquele exército de bestas que infestavam minha torturada psique. Eu me sentia volitivamente poderoso e desloquei-me sem destino por entre o denso e enigmático ambiente da floresta, carregado de dramáticos incensos noturnos, das espessas sombras do mistério sentencioso... de fluídicos vapores espectrais oriundos da Alma do Cosmos... que secretamente falavam-me à intuição exacerbada.

Foi nesse preciso instante, onde soavam mudos todos os sobrenaturais alarmes, que uma inefável melodia cantada por celestial voz feminina principiou a invadir toda a atmosfera do bosque... Era uma voz profundamente comovida, acompanhada por divina orquestra, cantando belíssimos poemas que eu nunca conhecera... A música e a poesia tomaram completamente todos meus pensamentos e sentimentos, em um inefável domínio sobre meu mundo psíquico, agora perfeitamente consciente e harmonioso, sem nenhuma espécie de conflito íntimo, que sei que adivinha de meu ser profundo, do âmago que não consigo conceituar.

Então, consecutivamente, senti uma espécie de estranho alívio orgânico-psíquico-espiritual, como se um terrível peso estivesse me abandonando. Olhei para trás e avistei um imenso rastro de um líquido negro e viscoso que, só então, verifiquei que manava dos meus poros epidérmicos. A negra viscosidade fluía copiosamente através de mim e, à medida que saía de meu corpo e espírito, percebi que aos poucos eu ia flutuando, ascendendo, à proporção que me sentia mais e mais leve, melífluo, alimentado sobre-humanamente pela indizível música e pela indefinível poesia...

E assim fui... já se extinguia o líquido, as últimas gotas asquerosas pingavam de minha pele, até que se estancou definitivamente, e eu mergulhei nas notas e nos versos daquela feminina voz angelical, mergulhei e me diluí, tornei-me uno e indissociável daquelas artes magníficas, eu era elas, elas constituíam meu ser, e desapareci, aniquilando minha existência na dissolução pelo mistério infinito.

(Na imagem, o quadro "São Jorge Lutando Contra o Dragão" de Raphael Sanzio)

18 abril 2010

A Marcha da Morte


(Este conto foi publicado originalmente em meu livro Contos do Crepúsculo e do Absurdo, lançado em dezembro de 2006.)


Tenso e angustiado, não conseguia dormir. Desisti, portanto, de tentar adormecer e resolvi realizar uma observação do que se passava em meu mundo interior, sem dúvida, intensamente caótico. Aos poucos, fui penetrando mais e mais nas sombras de minha psique, naquele umbral tenebroso e insolitamente desconhecido... Sim, desconhecido, pois nosso mundo psicológico, nossa psique ou nossa alma, como queiram os leitores, é zona de absoluto mistério... Digo que o homem, tão orgulhoso de seu “conhecimento” que, mesmo em termos exteriores, não é mais do que uma gota no oceano, nada sabe sobre si próprio... Nada sabe sobre o que realmente pensa, sobre o que realmente sente. Isso eu afirmo totalmente destituído de qualquer receio, pois naquela noite profunda, eu principiei meu terrível autoconhecimento e, consequentemente, conheci todo o diabólico funcionamento geral da psicologia humana...

Tudo era estranho e nebulosamente sobrenatural naquele universo dantesco em que mergulhava... eu submergia no mim-mesmo, no meu eu de horror e caos. Agora posso declarar, sem medo, que o ser humano já não me pode enganar com sua dúbia “sinceridade”, de minha boca poderão ouvir a recorrente frase: “eu os conheço muito bem e não confio no homem meu semelhante”; ou poderia, ainda me utilizar dos versos de Baudelaire: “ó falso, hipócrita leitor, meu igual, meu irmão”. Eu submergia em minha psique e em poucos segundos percebi o tagarelar e a gritaria insana de uma infinidade de entes, algo como seres perversos, em eterna, estéril e fatigante disputa por uma supremacia momentânea de minhas emoções e pensamentos. Nitidamente, eu “ouvia” berros, relinchos, grunhidos, frases absurdas e desconexas, que provinham ora de um lado, ora de outro, apresentando-se sob diversas e assustadoras vozes, ou estridentes, ou cavernosas, ou satanicamente infantis, ou de velhos decrépitos, ou de monstros mitológicos, ou de bruxas sádicas, ou de pseudoanjos, ou de supostas fadas celestiais...

E todas aquelas vozes eram eu e, ao mesmo tempo, não eram, algumas eu conhecia, outras me eram absolutamente ignotas, personificando miseravelmente o universo de meus desejos, de minhas lembranças, de minhas saudades, de meus remorsos, minhas cobiças, minhas maldades, minhas vaidades, meus erros, minhas supostas grandiosidades e ações superiores... E então iniciei a perceber os rostos hediondos de todas as repulsivas hostes satânicas que interiormente dominavam e constituem o ego de todo e qualquer ser humano que sobrevive na degenerescência crepuscular deste planeta em morte...

O medonho desfile de rostos demoníacos parecia não ter fim, e todas as sensações, sentimentos e ideias próprias de cada personificação interior iam me assediando, na mente e no coração, conquanto paradoxalmente eu me questionava: quem sou eu? Como posso considerar-me um ser individual, de uma só unidade psicológica, se um batalhão de entidades contraditórias são as formadoras de minha vida interior? Como posso supor e afirmar perante toda a falsa e corrompida sociedade, todos iguais a mim, ou talvez ainda piores, que sou um individuo único e de constante e confiável comportamento, sem em um momento aprecio com ternura e noutro odeio com todas as forças a mesma pessoa? Se em um instante sinto-me alegre e confiante, em luminoso bem-estar, e noutro caio em negros abismos, considerando-me o mais infeliz e desgraçados dos homens?


Como posso julgar-me alguém uno, se meus pensamentos e sentimentos nunca permanecem os mesmos por muito tempo? Se sou aquele que faço o que não quero e o que quero, não faço, impelido por forças irrevogáveis? E mais ainda: se nem ao menos consigo manter minha atenção em um único ponto por consecutivos minutos, pois inconscientemente sou invadido, contra a minha vontade, de forma implacável e inexorável, sem que eu tenha o mínimo controle sobre mim mesmo, por uma infinidade indomável de lembranças irrelacionáveis, de idéias desconexas e absurdas, de perturbadoras emoções integralmente discordantes dos propósitos a que intento sofrivelmente dirigir minha débil atenção. Algo que leitor algum poderá negar, e os desafio a tanto. Esse é o homem, essa é “a eterna contradição humana”, nas palavras de Machado de Assis.

Passados alguns instantes dessa abominável constatação, estando eu ainda semi-conscientemente submergido em meu inferno particular, algo de absolutamente terrível e inusitado começou a ocorrer comigo. Tive a brutal sensação de que aquelas entidades satânicas de minha psique, comuns a toda humanidade inconsciente, intentavam agora, não satisfeitas em possuir o controle de minhas emoções e ideias, assumir também meu aspecto físico, ou seja, a minha fisionomia. Levantei-me em pânico e dirigi-me a um espelho... Aterrado, tive a traumática visão de alguém que não era eu... um bicho, uma coisa de aspecto odioso e repelente, que insanamente assumira minhas feições! Tentando tranquilizar-me, busquei observar com maior atenção aquilo que agora constituía monstruosamente o que então fora meu rosto, quando, para minha maior estupefação, o rosto modificou-se por completo, em uma assombrosa transformação...


Amanhã, o final.


(Na imagem, o quadro "Perseus e Andrômeda" de Pierre Mignard)

Fernando Pessoa e Seus Passos da Cruz XIV (e Último)

Continuo postando os sonetos de Passos da Cruz de Fernando Pessoa, conforme explicado na seguinte postagem: http://artedofim.blogspot.com/2009/12/fernando-pessoa-o-predestinado-passos.html . Este é o passo XIV e, portanto, o último. Na imagem, o quadro " Cristo de São João da Cruz" de Salvador Dalí.

Passos da Cruz - Soneto XIV

Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vãos olhares
Se admiraram), p'ra além dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tédio nasce

Parou... Apareceu já sem disfarce
De música longínqua, asas nos ares,
O mistério silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce...

A paisagem longínqua só existe
Para haver nela um silêncio em descida
P'ra o mistério, silêncio a que a hora assiste...

E, perto ou longe, grande lago mudo,
O mundo, o informe mundo onde há a vida...
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...

16 abril 2010

Poema Sem Graça

adeus
graça
aos gracejos estúpidos
do homem ingrato

a pena que tenho do homem
afunda como o branco da pena da garça
no negro do óleo que escorre
sem graça nenhuma

vai-te em graça
como símbolo gracioso
de tudo aquilo que morre:
a Deus
garça

e o que resta
à humanidade (in)graçada?
a des...
graça.

Cafezinho Poético Itinerante

O Cafezinho Poético da Casa do Poeta de Santiago passará agora a ser itinerante. Neste sábado, dia 17/04, ele ocorrerá no Rotaract Club "Terra dos Poetas" - Clube União Santiaguense, às 17h. O cafezinho poético é sempre aberto ao público, e todos estão convidados. Contamos com sua presença.

15 abril 2010

O Sublime Pergolesi Faleceu aos 26 Anos...


O poema que compus e está postado abaixo com o título de "Stabat Mater" constitui algo como uma adaptação para os tempos atuais do texto de um hino cristão de origem medieval, mais precisamente do século IX, cujo nome é o mesmo: Stabat Mater. O Stabat Mater (Estava a Mãe), expresso em latim, trata do profundo sofrimento da Virgem Maria diante da crucifixação de seu filho, Jesus Cristo, e é um texto de extrema tristeza.

Inúmeros compositores, principalmente no Barroco e no Classicismo, musicaram o texto cristão. Existem centenas de Stabat Mater. Porém, 5 entre eles se sobressaem: o de Pergolesi (considerado o maior), o de Vivaldi, o de Haydn, o de Rossini e o de Verdi. Alguns musicólogos ainda incluem o de Emmanuelle D'Astorga entre os mais importantes.

Mas realmente o de Pergolesi é o mais emocionante, o mais divino, o mais melancólico. Giovanni Battista Pergolesi nasceu em 3 de janeiro de 1710, na Itália. Portanto, este ano comemoramos os seus 300 anos. E eu me penitencio agora por não ter lembrado da data em janeiro. Mas ainda há tempo de deixar minha homenagem.

Pergolesi viveu bem pouco. Morreu de tuberculose aos 26 anos. Não lhe foi permitido, portanto, tempo para deixar uma obra extensa. Mas o que deixou é de uma qualidade absolutamente impressionante, e ficamos entristecidos ao imaginar o que ele poderia ter ainda nos legado caso não falecesse tão jovem. Ele, sendo um compositor barroco, já mostrava indícios de um classicismo que ainda nem havia surgido. Morreu com ele a promessa de um imenso gênio. Mas cada um com o mistério de seu destino... Como diria Álvares de Azevedo, que também faleceu muito precocemente: "Ó morte, a que mistério me destinas..."

E absolutamente genial é o seu Stabat Mater, cujas últimas notas foram escritas um dia antes de sua morte. Trata-se de uma composição absolutamente sublime. Sublime e profundamente triste. Triste e sobrenaturalmente trágica. São páginas de um grave dilaceramento, de estranha e misteriosa poesia. Não está em seu Stabat Mater somente a dor da Virgem diante de seu Filho morto. Está ali a dor de sua prória morte, e talvez a dor da sua mãe vendo a morte de seu filho. E muito mais que isso. Está ali a Dor Universal, como diria Cruz e Sousa...

Por mais duro que seja o coração de um homem, considero quase impossível não se emocionar com a dolorosa celestialidade das notas do Stabat Mater de Pergolesi. Impossivel não sentir e pensar no que há de mais triste e mais puro, no que há de mais sagrado para nós, independente da crença de cada um. Com seu Stabat Mater, Pergolesi morreu como um anjo...

Abaixo, o texto, traduzido do latim, do

Stabat Mater

Estava a mãe dolorosa
chorando junto à cruz
da qual seu filho pendia.

Sua alma soluçante
inconsolável e angustiada
era atravessada por um punhal.

Ó, quão triste e aflita
estava a bendita mãe
do Filho Unigênito!

Transpassada de dor,
chorava, vendo
o tormento do seu Filho.

Quem poderia não se entristecer
Ao contemplar a Mãe de Cristo
sofrendo tanto suplício?
Quem poderia conter as lágrimas
vendo a mãe de Cristo
dolorida junto ao seu Filho?
Pelos pecados do seu povo
Ela viu Jesus no tormento,
Flagelado por seus súditos.
Viu seu doce Filho
morrendo desolado
ao entregar seu espírito.

Ó mãe, fonte de amor,
faz com que eu sinta toda a sua dor
para que eu chore contigo.

Faz com que meu coração arda
no amor a Cristo Senhor
para que possa consolar-te.

Mãe Santa, marca profundamente
no meu coração
as chagas do teu Filho crucificado.
Por mim, teu Filho coberto de chagas
quis sofrer seus tormentos,
quero compartilhá-los.

Faz com que eu chore
e que suporte com Ele a sua cruz
enquanto dure a minha existência.
Quero estar em pé
ao teu lado, junto à cruz
chorando junto a ti.

Virgem de virgens notável,
não sejas rigorosa comigo,
deixam-me chorar junto a ti.

Faz com que eu compartilhe a morte de Cristo,
que participe da Sua paixão
e que rememore suas chagas
Faz como que me firam suas feridas,
que sofra o padecimento da cruz
pelo amor do teu Filho.

Inflamado e elevado pelas chamas
seja defendido por ti, ó Virgem,
no dia do juízo final.
Faz com que eu seja custodiado pela cruz,
fortalecido pela morte de Cristo
e confortado pela graça.

Quando o corpo morrer,
faz com que minha alma alcance
a glória do paraíso.

Amém.

14 abril 2010

Stabat Mater *

Estava a Mãe Natureza
chorando junto das cruzes
das quais seus Filhos pendiam.

Via suas almas gementes
imponderáveis e aniquiladas
traspassadas por motosserras.

Oh! Que triste e aflita
estava a bendita Mãe
dos filhos universais!

Devastada de dor,
chora vendo
o desastre dos seus Filhos.

Quem poderia conter as seivas
da Grande Mãe
já tombada junto dos seus Filhos?
Quem poderia não se entristecer
ao contemplar a Mãe Natura
vendo os animais no tormento
flagelados pela humanidade?

Oh Mãe, fonte de vida,
faz-me sentir todo o seu fim
para que eu me acabe contigo.

Mãe pura, derrama
profundamente no meu coração
o sangue dos teus Filhos massacrados,
eu também sou culpado,
quero compartilhar deste sangue.
Faz com que eu chore
e padeça com Eles
até o fim da minha existência.
Quero estar ao teu lado
chorando junto de ti.

Faz com que me firam as suas feridas,
que eu também ajudei a causá-las,
faz com que sofra os horrores do progresso
pelo amor dos teus Filhos.

E quando o corpo da Terra morra
faz com que a sua alma alcance
a glória do seu retorno.

Amém.

*(Escrevi este poema baseando-me no Stabat Mater de Pergolesi. Amanhã comentarei sobre esta obra do compositor italiano.)