11 janeiro 2021

A Doença

nós somos os doentes de um mundo doente
e o mundo está doente porque nós o adoecemos
nós somos os doentes e a doença
doentes da doença que nós mesmos causamos
e tudo adoece ao nosso redor:
os rios têm febre alta
os animais vomitam sangue
as árvores têm hemorragias
as aves tossem sem parar
os mares estão cobertos de chagas e feridas
o céu está pálido e com fadiga
as flores não conseguem respirar
os campos têm rachaduras na pele
as florestas têm tremores e não conseguem se erguer
e as cidades têm cancer
e nós somos as células cancerígenas


31 dezembro 2020

Poema de Ano-Outro

ano-novo? que é que terá de novo nisso?
como que as pessoas esperam algo de novo
se continuamos sendo os velhos bostas de sempre?
como se a mudança viesse de fora e não de dentro
como se o que mudasse fosse a humanidade
e não o ser humano
como se o novo viesse por decreto
ou pela simples passagem do tempo
que novo que haverá dentro das mesmas regras
das mesmas convenções dos mesmos limites dos mesmos padrões?
todo mundo pensa em novo
mas ninguém muda como pensa
todo mundo fala em novo
mas segue o modelo que já está pronto
e olha com cara feia a quem segue diferente
quem quer mudar seus conceitos?
olhar pelo olhar do outro?
admitir que tem culpa que está errado?
quem é que olha pra seu coração e confessa:
"eu tenho que ser melhor"
quem é que se propõe a amar mais?
então até me falem em ano-outro
mas não me falem em ano-novo.


28 dezembro 2020

Coisas que Não Consigo (e Mahler)

eu não consigo olhar filme dublado
não consigo comer comida recém saída do fogo
não consigo usar roupas claras
não consigo tomar cerveja no inverno
frio exige vinho ou destilado
não consigo ver um gato sem admirá-lo
não consigo gostar de matemática
não consigo dormir cedo
(a não ser em caso de real necessidade, mas é complicado)
não consigo entender quem não gosta de animais
não consigo entender gente que não gosta da natureza
nem mesmo quem gosta um pouco
que negócio é esse de gostar um pouco?
natureza é para ser amada adorada idolatrada
não consigo ler poesia só mentalmente
tem que se usar a voz e sentir a sonoridade das palavras
não consigo escutar música baixa
não consigo imaginar uma reunião
divertida de amigos sem música
não consigo ficar um dia sem ouvir música
e eu não consigo ter esperanças nesta humanidade
(eu disse NESTA)
ainda mais agora enquanto escuto
as sinfonias de Mahler.






25 dezembro 2020

Beethoven e a Solemnis: "De todo o Coração"


Certo músico escreveu que se Beethoven tivesse composto SOMENTE a Missa Solemnis, já seria considerado um gênio da música. Na partitura da Missa, o seu Opus 123 (ou seja, é da mesma época da 9ª Sinfonia, Opus 125, da sua última fase) Beethoven escreveu "De todo o coração".  E de fato o é: música composta de todo o coração, de toda alma, da genialidade mais profunda. Trata-se de uma das maiores obras musicais de todos os tempos, tão alta, tão poderosa, tão imponente, tão revolucionária quanto a Nona Sinfonia, mas bem menos conhecida do grande público. Há obras bem menores de Beethoven, bem menos expressivas, como a bagatelle Für Elise, que  são muito mais conhecidas.

Não é música fácil, de se compreender com facilidade, exige uma, duas, três, quatro, várias audições, o que não a torna inacessível, pelo contrário, seu caráter é tão poderoso e impressionate que assombra a qualquer ouvinte já na primeira vez que a escutar. E mesmo sem muita concentração.

Também não é, como muitos devem imaginar, música de caráter meramente religioso, apesar do seu nome (uma missa) e de sua letra (é a letra da tradicional missa do cristianismo antigo, cantada em latim), pois a missa na música já havia se transformado em mais um gênero à serviço dos grandes gênios.

A Missa Solemnis vai muito, muito além. Beethoven não era um homem propriamente religioso. Também não era ateu. Entendia Deus como uma força, uma potência universal que abrangeria a tudo e a todos. Beethoven era um panteísta. E assim é o caráter da Missa Solemnis. Um sobre-humano monumento à essa força universal, uma obra-prima absoluta de expressão do Cosmos, do amor entre todos os seres, advinda do Ser, é a materialização musical da alma do universo.

A 2ª missa de Beethoven, ou seja, a Solemnis, finalizada em 1823, não é a única grande missa da história da música. Bach compôs a sua fenomenal Grande Missa em Si, Mozart tem a Grande Missa em Dó, Schubert, Bruckner, Haydn, entre outros, também criaram nesse gênero obras excepcionais. Mas a Solemnis de Beethoven possui algo que a torna única, inigualável, e não se sabe dizer exatamente o que é. Talvez a força descomunal, a inovadora potência instrumental, a inusitada violência sinfônica, talvez os coros alucinados, dilacerados entre o sofrimento e a glória, entre a angústia e a grandeza, entre o tragédia e o amor. Talvez tudo isso junto e ainda mais.

A Missa Solemnis é Beethoven em seu auge. É o que há de mais elevado no gênio de Bonn. É o que há de mais elevado na Arte. É arte "de todo o coração" para o coração dos homens.

Acima, um trecho da Missa Solemnis, o Gloria, em uma das melhores interpretações dessa obra gigantesca: a da Concertgebouw Orchestra, com o grande Bernstein na regência.

22 dezembro 2020

O que Falta aos Homens

não precisamos de mais mente
precisamos de mais coração.
inteligência sem coração se transforma em vazio
em maldade em destruição.
desconfia de toda pessoa 
que despreza o coração e o sentimento:
é ou será um perverso um tirano.

precisamos de mais coração:
quem ama um árvore
não corta uma árvore
quem ama um animal
não caça ou maltrata um animal
quem ama um rio um mar
não joga lixo nas águas
quem ama sua terra não destrói sua terra.
quem mantém o seu coração
entende e sente compaixão pelo sofrimento
e evita o sofrimento dos outros
busca aliviar as dores e reduzir as injustiças
só o coração traz, ao menos, a empatia
(eu nem vou falar de amor).
inteligência não significa sabedoria.

não é inteligência que falta:
o que falta é sensibilidade.
a ausência de coração
está destruindo nosso planeta
e a humanidade.

21 dezembro 2020

Poema de Natal a um Urutau



naquela noite de Natal
tu serás tu mesmo:
enquanto os homens se mostram
tu te escondes
como se nem fosses.

tu não estás nem aí
para o que os homens fizeram de 2020
ou de todos os anos que passaram 
tu és pássaro
és noite e oculto
tu existes no teu não estar
não sendo nada além de Ser
és um verbo que se fantasma
grito do não-dito
és um lamento-punhal
és toda a Dor 
de uma era final
quem te vê quando cantas?
quem te sente quando choras?
o que cantas é um susto
que não nos deixa sinal
por isso este poema
ninguém te vê ninguém te quer por perto
porque dizem que és ave-funeral
mas tu sabes, Urutau
que ninguém também 
vê o Natal.


Obs.: o urutau é uma ave noturna que se utiliza muito bem da sua incrível capacidade de camuflagem. Por isso, raramente é vista. Vive da Costa Rica até a Argentina. Seu nome, urutau, em tupi-guarani significa "Ave-Fantasma". O motivo do nome, além de sua quase "invisibilidade", é que o seu canto melancólico é uma espécie de gemido muito triste, que lembra um lamento humano. 

16 dezembro 2020

Beethoven, nos teus 300 anos, eu estarei morto


Beethoven, tu faz hoje dois séculos e meio de eternidade
um gênio e um ser humano
e emocionante pra caralho.
(alguns vão reclamar do meu palavrão, foda-se.)
tua música é profunda e é sincera
é imensa e é simples: é simples
fala direto ao coração: basta sentir.
não é difícil como pensam aqueles
que nunca pararam para te ouvir:
é música de alma para alma
é música para quem ama música
(ou só pra quem gosta, nem precisa amar)
é MÚSICA. ponto.
é música para quem tem olhos
para quem tem boca
para quem tem peito
para quem sofre para quem luta
para os vitoriosos para os derrotados
para quem vive para quem morre
para as lágrimas para  os sorrisos
é música para quem ama
é sangue para quem ama.
Beethoven, tu sofreu como um filhodaputa
e quase te matou
mas decidiu viver putodacara
para nos ensinar a amar.
Beethoven, obrigado por resistir
e por sentir por todos nós.
eu teria sido pior (ainda pior) se não fosse tu.
então, bêbados, como tu gostava,
vamos comemorar!
Salud!


15 dezembro 2020

Eles vão ficar horrorizados

há uma vida que não a vivida
onde deveríamos estar
mas os caras querem nos convencer
de que a vida é só isso que esta aí
esse rastejar cego de vermes
que sempre seguem a mesma linha
sempre na mesma fôrma no mesmo molde 

esses caras querem que a vida
seja só os meios de se viver:
trabalhar comer cagar trabalhar
dormir levantar trabalhar morrer
e nas horas de folga se preocupar
em ter que trabalhar para pagar
o que nem se pode viver
e não se chegar a fim nenhum
a não ser chegar ao fim
mas eles querem que isso seja a nossa vida
e que agradeçamos com um sorriso
a chance de sobreviver sem sentido
para deixar uns poucos mais ricos
(que por coincidência são eles)
sendo só mais um entre um monte de uns

para eles o sonho a natureza a arte o amor 
pensar sentir  passear e ver 
são só coisas fúteis que não valem nada 
(mas só quando é para os outros)

e se você mandar eles à puta que pariu 
eles vão ficar horrorizados 
enquanto eles é que são o horror.


13 dezembro 2020

a uma Serpente


entre o sim e o sol
silencia o segredo
calma de alma
que nunca passa
teu sempre sábio
som de sonata
calma da água 
que nada (a)tinge
que pedra alguma
nem mancha nenhuma
perturba (a)funda
infringe.
olhar de fogo frieza
lâmina adaga
que ninguém enfrenta
ou afaga
sangra teu sopro
sereno em veneno
saga  teu sonho
em cosmos distantes
teu silvo hipnótico
a que tudo se rende
e teme teu dente
para sempre serpente.

09 dezembro 2020

Só para quem gosta de Gatos


um gato pode sofrer
mas não se desespera
pode estar triste
mas nunca abatido
pode perder tudo
mas nunca fica sem nada
um gato, se não tiver quem lhe ampare
ele se vira
se não tiver quem lhe alimente
ele caça
se não tiver quem lhe ame
ele se ama
um gato pode ser humilhado
mas nunca perde a majestade
pode estar faminto
sem perder a presença de espírito
pode estar um farrapo
mas sua graça leveza agilidade
inteligência sentidos elegância
permanecem.
um gato é uma obra prima
enquanto o homem é uma vergonha.
e aí está a Sophie
que não me deixe mentir como um homem.


07 dezembro 2020

Não me confundam com o que escrevo

minha poesia  não dá concessões
não suaviza não ouve opiniões
minha poesia é como um basta
que não agrada não dá o braço
não busca a paz (não mais)
não se retrata não retrocede
não se arrepende
não volta atrás
não dá ouvidos
radicaliza definitiva
poucos sorrisos
quando ironiza.

minha poesia está cansada
já não perdoa não alivia.
minha poesia
é de tristeza
dilacerada
angústia extrema
é de um luto
absoluto
quase divino.
é só um aviso
que não dá chances
não acredita
e faz miséria
e mau poema.

nem sente pena.

é a minha poesia
não sou eu 
não é o que eu sou.
mas ela fica
e eu logo me vou.

06 dezembro 2020

Adeus, Humanidade

 alguém poderia questionar:
"por que tu escreve? ou
pra quê?
quase ninguém mais lê
muito menos poesia
e se lê entende muito pouco
se é que entende
e mesmo que entenda 
não dá muita atenção
entra por um olho e sai pelo outro"

eu responderia
que isso é escrever pelos outros
mas eu escrevo por mim e para mim
é para o meu bem
(com amáveis exceções)
se for bom para os outros, melhor
se não for, eu escrevi
bem ou mal aí está: obra feita.

mas outros ainda poderiam argumentar:
"não há mais nada a ser dito
tudo o que se diz hoje
já foi dito antes
e de forma melhor por gente melhor."

eu responderia
que não deixa de ser verdade
mas completaria dizendo que ainda
há algo a ser dito:
o Adeus.


02 dezembro 2020

Política no Brasil

torpes
querem todos chegar aos topos
dos montes de merdas 
dos castelos de cartas
inflados de peido e marmeladas

tortos
mais máscaras do que rostos
vão vendendo seus ânus
a preços mais baixos
do que os dos capachos
em que esfregam os sapatos
seus cagados amos

duas caras escancaradas
de farsas e trapaças
sorrisos de babas
a ostentar suas gordas carcaças
abaixando as calças

línguas largas e lacaias
de lambedoras de botas
com a espinha curvada
de carregar sacos
de bostas.

30 novembro 2020

Tens a Minha Palavra

é a palavra que fala
é a palavra que diz
é a palavra que escreve
é com a palavra que se pensa
é com a palavra que se sente
é a palavra que pede que manda que ora
que sonha que sofre que chora
que cria convida aconselha emociona

ninguém pode saber nada sem a palavra
ninguém pode viver nada sem a palavra
ninguém pode SER nada sem a palavra
ninguém diz que ama sem a palavra
ninguém diz que morre sem a palavra
"me liga", "falamos", "me manda mensagem":
é tudo palavra.

é a palavra que deixa o rastro
é ela que diz o Faça-se e o Acabe-se
em tudo o que se faz ou se deixa de fazer
há uma palavra por trás 
antes da palavra ser dada
não há nada
e chega de conversinhas 
e me perdoem o palavrão
mas a porra da palavra
tem que ser respeitada.



29 novembro 2020

Eu Disse

eu disse às flores que só emitissem perfumes
e só irradiassem suas cores
quando tu passares muito perto delas
eu disse às flores
eu disse às árvores que só ficassem verdes
e as que dão frutos que só dessem seus frutos
quando tu estiveres entre as sombras delas
eu disse às árvores
eu disse às dores que só sofressem tanto
e aos sofrimentos que só pudessem ser
quanto tu fugires para longe deles
eu disse às dores
eu disse às onças que estivessem longe
para vir bem perto de ti quando tu passeares
não para te assustar com seus terrores
mas para te proteger dos teus temores
eu disse às onças
eu disse aos rios que corressem mais limpos
e às suas águas que fossem mais puras
quando tu tocares os teus lábios neles
eu disse aos rios eu disse às águas
eu disse à chuva que só caísse forte
e ao raio que só assombrasse a noite
quando tu sonhares pelos astrais mundos
descuidada por entre sóis e luas
eu disse à chuva eu disse ao raio
eu disse às nuvens que se abrissem todas
quando tu sorrires para o céu com os olhos
eu disse às nuvens
e para o céu eu disse que te mostrasse os anjos
quando tu pensares no amor mais fundo
eu disse ao céu 
e eu disse aos anjos...
aos anjos eu disse que eu te disse tudo.



26 novembro 2020

Robôs Fodidos

as pessoas não querem mais ser gente
não querem sentir nem pensar nem viver 
nem querem saber
suas vidas são só vitrines
é só o que o outro vai achar:
que agora são todos fortes e vitoriosos
todos de sucesso e todos de bem
todos justos e saudáveis
todos felizes com sorrisos constantes
todos amantes e amados
todos ricos e bonitos 
todos certos e espertos
chorar é coisa do passado
sofrer é coisa de fracasso
ninguém mais chora ninguém mais sofre
ninguém mais sente
como diria Fernando Pessoa: 
"onde é que há gente?"
ninguém mais erra ninguém mais falha 
ninguém mais se fode
agora são só robôs sem defeitos
feitos em fábrica e linhas de série
autômatos pré-programados 
todos perfeitos e todos iguais...
e nenhum presta.
é preciso acabar esta humanidade
para que volte a Humanidade.


25 novembro 2020

Desprezo

quero ser aquele gato
negro bicho tão noturno
que não tem culpa de nada
que com nada mais se importa
que não tem seu rabo preso
pra fugir da humanidade
me ocultar entre o oculto
e miar para o infinito
pra ser sempre vagabundo
vendo almas e fantasmas
sem provar pra todo mundo
pra sonhar sem ter os sonhos
e dormir por entre a lua
quero ser aquele gato
ser sagrado e ser profano
ser um deus ser um demônio
e no fundo bem no fundo...
desprezar o ser humano

23 novembro 2020

Kafkiano

chegamos a um ponto 
tão absurdamente absurdo 
de tudo que é absurdo 
que o absurdo nem traz susto 
estamos surdos aos absurdos 
vivemos surtos após surtos
e são tantos os horrores e os mortos 
que o absurdo nem é mais a exceção:
é a própria absurda instituição.

21 novembro 2020

Réquiem em Dor Maior

que sonho que eu sou quando eu for-te
em que som deixei-me em que parte
se tanto eu partia em nos ver-te
nem sonho cai mais pelos mares

não tenho onde um sol que vou por-me
ou deixar-te a quem não achar-me
se tanto vi o céu não mais ser-me
nem almas sai mais dos cantares

o Fim me olhou sempre em horror-me
e senti-lo é dever-me de arte
se tanto li a dor do que verte
nem sangue sai mais dos olhares

qual anjo que vem quando há mor-te
no que não deixei-me em que aMarte.

18 novembro 2020

Como se não houvesse Morte

como se houvesse tempo
estão lá com sede de progresso
como se evoluíssem ceifando paraísos
para semear infernos
lucram como se fossem eternos
a transformar vidas em desertos
e é como se nunca bastasse
mentindo como se fosse
para matar a fome
sem ter que distribuir a renda
como se fosse em nome do que fosse justo
como se não fosse pra colher ganâncias
como se fosse ser herói
se enriquecer à custa do que morre
existir à custa do que some

e ainda se acham fortes
e ainda se dizem homens
como se não passassem de parasitas
mais fracos do que cacos
mais fiascos que palhaços
como se não viesse a volta
pelo horror do que plantaram
como se não tivesse preço
todo a beleza desfigurada
como se ficasse por isso mesmo
todo o amor que foi corrompido
e como se não viesse o Tempo
bater no seu endereço

fazem tudo
como se o tudo ficasse mesmo assim:
como se não houvesse o Fim.

16 novembro 2020

Apenas Noite

leis políticas instituições
prédios cidades civilizações
rolarão por terra um dia
mas sempre haverá a noite.

séculos décadas anos
vidas sonhos planos
deixarão a terra um dia
mas ainda continuará a noite.

dados rodas moedas
homens coisas pedras
não serão na terra um dia
no entanto prosseguirá a noite.

planetas sóis luas estrelas
todas as coisas que forem sê-las
não serão no cosmo um dia
e o universo será apenas Noite. 

15 novembro 2020

Mais Alto

um outro sol
um outro sol mais ao alto
se erguerá sobre o sol derradeiro
vitorioso em som sonho e pesadelo
e um outro som mais alto e vermelho
se erguerá em de cada perdido instante
em teu vasto sim de guerra e mais adiante
um outro sou se erguerá em que vai avante
mais alta em larga prata e mortífera espada
de ponta adiante e ainda mais e mais elevada
de ultra e além lâmina e mais afiada em adaga
e um outro canto em soprano surgirá mais além
de sublime em sublime e mais ainda em quem vem
se erguerá mais acima e acima em que nunca ninguém
e se erguerá mais um passo ao alto do horizonte que espanta
e um outro verbo mais grave com fúria aguda venta e se lança
e outro olho mais fundo e avante em outra Força mais alta levanta

13 novembro 2020

Poema Lacônico de Sexta-Feira 13

1.1 - acima das plumas-brancas 
da pomba da esperança
paira a asa-negra do urubu
que voa mais alto.

1.2 - os melhores vinhos
trazem as trevas da noite
e os piores raios
brilham como o dia.

1.3 - no olho do furacão
não há ventos.


12 novembro 2020

Trágico

tristeza de não-antídoto
sorriso de lábio fêmino
um beijo que seja válido
entendo teu gesto lânguido
o sonho em teu rosto sânguino
o longe se arrasta rápido
o tudo que eu digo é símbolo
caminho que seja pórtico
sangue de vela e lâmpada
a chama escarlate tântrica
meus olhos nas luas cálidas
o longínquo em não ser-me ósculo:
trágico é proparoxítono.

10 novembro 2020

De Sangue

sangue nos lábios é perigoso
tanto se vier de fora
como se vier de dentro
mas o sangue vem aos lábios
de qualquer jeito.

vida, sua filhadaputa
ensanguentada louca
que me enche de sangue na boca.

08 novembro 2020

Sofrimento é Algo que Falta

o sofrimento não deve ser medido
pelo tipo de sofrimento
mas pela relação sofrimento x anseio:
sofre a pessoa não pelo que ela é
ou deixa de ser
não pelo que lhe acontece
ou deixa de lhe acontecer
não pelo que ela vive
ou deixa de viver
mas pelo que ela gostaria de ser
ou gostaria que lhe acontecesse
ou que fosse a sua vida
sofrimento é muito mais
o não-vindo.

o tamanho do sofrimento
é o tamanho da insatisfação
o sofrimento é um algo que falta.
uma vida com tudo
ou uma vida com nada
pode dar no mesmo:
o sofrimento se mede pelo desejo
para quem não tem o que comer
o alimento na mesa é a felicidade
para quem tem alimento na mesa
a felicidade está no alimento do sonho
do coração da alma do espírito
e ambos os sofrimentos
são legítimos.



05 novembro 2020

Olhares das Feras


sim, há uma Paz profunda
nos olhares das feras
há verdades silêncios
que se ocultam por eras
saber desde o que é vida
até mortes de estrelas
o olho fogo do tigre
só ao ser se revela 
o olho gelo do lobo
em segredo nos vela

sim, há um Sangue profundo
nos olhares das feras
há tormentas noturnas
que parecem com trevas
são abutres nas árvores
de sentinelas eternas
serpentes que veem almas
de quem passa por elas
é que há um Fim profundo
nos olhares das feras...

04 novembro 2020

Não ter que dizer nada

aquilo que não. que não o quê?
que não tudo.
desde o lá ao agora que não está
ao que seja como sendo
o longínquo de um algo de dentro
o que nunca em nenhum momento
sonho que sona o meu real
o outro lado do que não o outro
além-me-ar estando aqui
pela sanga do teu quintal
flor que cheirou o meu gesto
sem tocar a minha mão
fuga drogada de um verso
ao voo do que não me fui
em estares de imaginação
o  mas do que me distância
e longos pelos teus anelos
olhos  no éter sem sê-los
que terminam em um nada
e começam em um fim
e ainda tem o outro lado
que é aquilo que sim.

01 novembro 2020

Poema de Finados (ou Um Réquiem)


Mozart morreu antes de terminar seu Réquiem
de certeza uma das músicas mais emocionantes comoventes
assombrosas já compostas nessa merda de mundo
até um cara com um coração de pedra esfarelenta
sentiria algum tipo de arrepio de pelos
ao ouvir alguns trechos rápidos
do sobre-humano Réquiem de Mozart.

Mozart finou-se antes de finalizar
a maior Música de Fim da história
ele escreveu sua própria Missa para os Mortos
e morreu aos 35 anos no abandono e na miséria
foi enterrado como indigente e se tornou imortal...
(a vida é uma puta de uma ironia)

adoecido de corpo e de incompreensão
Mozart já não podia suportar o peso
de escrever a música mais trágica de todos os tempos.
outros caras concluíram o Réquiem a partir de esboços de Mozart
mas as partes completadas apenas pelo Amadeus
já dizem tudo e fim de papo.

seu Réquiem é uma titânica súplica desesperada de ajuda
ao mundo a Deus ao universo
uma urgência em pânico daquele que aos 35 anos
era o maior gênio musical de sua geração.

mas o Réquiem de Mozart é muito mais do que 
uma poderosa súplica sobrenatural
é um monumento ao sentimento uma tentativa de salvação
da humanidade pela vivência da própria morte.
a gente se sente um pouquinho salvo
ao ouvir a mais dolorosa música
já arrancada do último amor
antes da Morte.

28 outubro 2020

Poesia não é para ser entendida

poesia é sensação, não é entendimento.
só fica o que for sentido
só fica aquele gosto de algo
nem que não se saiba do que é
(Poesia não é para ser entendida)
 que se sente e não se explica 
aura de alma que é só sugerida 
uma impressão um indício um vago pelo ar
(qual coisa é que faz sentido pela vida?)
a poesia é mais ser do que pensar

eu sou mas não estou 
na poesia que escrevo 
a poesia é como o beijo:
estraga se tentar explicar
é tudo que fica do que pode haver 
é a palavra mais forte a mais funda a mais pura 
a mais próxima do amor
pode ser trágica terrível mas é sempre bela
está no olhar da Sophie nos olhos dela
para ler poesia não há outro motivo
a não ser o de amar
seja lá o que for

essas palavras que digo
nem sei se estão comigo
assim como não sei se estarei vivo 
no meu próximo dia
mas se um deus ou deusa 
viesse nos falar 
só falará poesia.


26 outubro 2020

Não temos olhos para dentro

o gavião voa pelo céu azul
e paira no ar entre a corrente de vento
com suas asas abertas aproveitando o instante
e nós olhamos e achamos isso grande e belo

porque é a vida em seu estado puro
e a vida em seu estado puro é imensa e simples
e vivida a cada instante porque a vida é o instante
e não há outra vida a não ser o instante que se vive
e isso é simples e é grande e é belo

mas nós humanos estamos aqui
não sabemos nem ser simples nem grandes nem belos
sufocados numa existência complicada e pequena
não vivemos os instantes porque pensamos em outros instantes
que ainda não vieram e talvez nunca venham
e bem lá dentro no nosso íntimo no nosso ser
que é onde vive a vida
nós não alcançamos
porque não olhamos mais para dentro
mas só para o próximo desejo lá fora
a (não) ser alcançado.

23 outubro 2020

Cacem minha Alma

Peguem meus versos e matem a pauladas
sujem em fluídos de todas as mortes,
deixem aos pedaços pingando dos cortes,
e enterrem aos montes, não servem pra nada.

Joguem no lixo da Terra acabada,
cacem minha alma em covardes esportes,
juntem com a noite da antiga má-sorte,
deixem que caiam meus olhos da escada.

Aplausos à arte são risos mentidos,
e todo artista que se acha mui útil
já vê seu vasto nas ruas cuspido.

Homens só louvam imbecis, o que é fútil,
o verme e a merda. Tudo ânsia perdido
num ato morto de um sonho que é inútil.

20 outubro 2020

Nas Ruas de Santa Maria

o ato de caminhar pelas ruas
para quem vive é diferente de quem caminha
só pelo necessidade de caminhar 
ou pelo bem estar físico.
geralmente as pessoas caminham mortas:
ou afundadas no quem tem que fazer pelas ruas
ou afundadas na sua dita saúde
para que possam viver mais
estando mortas.

para quem vive caminhar é algo que vem de dentro:
como sentir que naquele canto da calçada
de qualquer rua do centro de Santa Maria
muita coisa já aconteceu, já houve almas ali
sendo felizes ou desgraçadas
e que tanta coisa poderia ter acontecido
e é triste o não ter sido.

as folhas rolando pelas ruas com o vento
são como facas que fere o que se olha
e fere mais ainda o que se sente
e o céu de amores e ausências se infiltra 
por entre prédios sacadas janelas e negócios
como vapores de um pântano de distâncias.

caminhar para quem vive é um ato de solidão.
e o porquê já está explicado.





18 outubro 2020

"Um urubu pousou na minha sorte" Augusto dos Anjos

 a Morte sempre esteve do meu lado
desde quando eu vivia antes de agora
pedi mas ela nunca foi embora
nem se comoveu por eu ter chorado

me olhou com seus olhos acastanhados
os cabelos pelos ombros afora 
sangue e mais sangue e mais sangue indo embora
por entre beijos de horrores e fados

hoje os dias só nos falam de morte
de tudo que parte acaba se finda
e resto de almas caçado em esporte

meus dias de vida resistem ainda
mas "um urubu pousou na minha sorte"
e a Morte... a Morte é sempre mais linda.



15 outubro 2020

Agora, estão Todos Mortos

Goethe disse que nunca conheceu um artista
tão enérgico e concentrado como Beethoven.
depois completou afirmando que
o mundo lhe deveria ser detestável e que  
"infelizmente, tem uma personalidade incontrolável".
Beethoven, que era fã de Goethe, bêbado mais tarde
não gostou dos elogios 
e mandou Goethe se foder declarando que ele, Goethe
gostava demais do ambiente dos ricos para um poeta.

sobre Van Gogh conta-se
que ele passava por episódios de profunda 
tristeza e isolamento (depressão, né)
tinha personalidade complicada (sério?)
e adorava discussões.
frequentemente causava apreensão em sua família
(que ele mandava à merda)
e só tinha amores impossíveis ou infelizes.

já Michelangelo, conhecido como "O Divino"
era desconfiado e antissociável.
tinha má digestão e dores de cabeças frequentes
o que o deixava ainda mais melancólico.
diziam os italianos que era terrível e passional 
e estava sempre puto da cara.

quanto ao borracho Edgar Allan Poe
o inventor do terror moderno
das histórias policiais e de crime
criador do poema mais perfeito da história
bom, esse era o pior.
não passava de um pinguço apaixonado 
com QI acima de 180.
como não tinha Quem lhe Indicasse
muito menos sorte ( que o diga O Corvo)
o gênio da literatura morreu na sarjeta
literalmente.





13 outubro 2020

Sorriso-máscara

aquele sorriso dos seres humanos 
salivando os dentes alvos e calvos
com lábios largos e vastos
já tocando nas costas

aquele sorriso distribuído nas ruas
e servido com bosta
de graça sem graça nenhuma
noticiado em jornais 
e em ditos progressos de governos 

sempre dando nas vistas
e nos nervos 
em telas de TV celulares capas de revistas

aquele sorriso da dita alegria da vida

de que não se duvida e a todos afaga
do ideal alcançado
da esperança elevada

aquele sorriso-máscara 

do que não adianta 
mais nada.

10 outubro 2020

Bunda Suja

ninguém assume seu próprio peido 
ninguém se olha no seu espelho 
muito menos no próprio poço 
todos só querem saber de "eu posso"
mas ninguém enxerga o "eu morro"

só queremos coisas leves 
sem preço retorno ou culpa
otimismos sorrisos sucessos 
existências fashion
e descoladas
onde pensar tornou-se um saco
e sentir tornou-se piada

queremos vidas de nada
em que se possa ter de tudo
e não se paga por nenhum ato
com os lábios até as orelhas
sem voltas sem consequências 

enfim aquela coisa
em que todo mundo caga
e ninguém lava a bunda

e a humanidade afunda

05 outubro 2020

Uma Ave Cantou na Madrugada

 uma ave cantou ontem na madrugada
eram quase 5h
de canto estranho antigo desconhecido
como se fosse um presságio um aviso um hino
(aquela ave realmente cantou de madrugada)
eu não soube que ave que era
eu que conheço tantas aves e tantos cantos
tantos sons tantas músicas tantos espantos
parecia não ser deste século milênio ou idade
soou pré-histórico não-existente algo de extinto
de coisas que morrem que partem desaparecem
parecia que vinha de florestas tombadas e paraísos perdidos
havia algo de fim havia algo de morte
um eco de tudo que foi e já não é
de tudo que é e não será
de tudo que será quando nada for
era como um grito um sangue um pranto
cheirava a sonhos ou de outros planetas
um último ou um novo sopro de vida
a morte e a donzela de Schubert
lacrimosa do Réquiem de Mozart
e foi no fim da madrugada
mas era só o começo do que anoitece
talvez fosse um bater de sino
talvez do fim do mundo
talvez do meu destino


03 outubro 2020

Breve Consideração sobre o Fim desta Humanidade

há sabedoria na natureza.
em todas as grandes extinções em massa
(e hoje já vivemos outra)
o objetivo final sempre foi
extinguir a espécie dominante 
para que outras novas espécies 
pudessem reinar.