Abordaram-me durante uma manhã de sol. Disseram que eu estava indo para o trabalho pelo caminho errado. Garantiram-me que, para meu próprio bem, eu deveria seguir por outro caminho. Protestei que, para mim, o caminho que percorria naquele momento era perfeito, que eu sempre o fizera, e que não via por que outro seria melhor. Mostraram-me então o caminho que eu deveria percorrer. E não somente naquele dia, mas por todos os outros em que eu fosse trabalhar. Caso não fosse por ele, seria punido. O que era, segundo eles, perfeitamente justo, uma vez que era tudo para o meu próprio bem.
Convencido, passei, daquele dia em diante a ir trabalhar somente pelo caminho que me fora orientado. Não vi nenhuma vantagem em fazê-lo, creio que era até um pouco mais longo do que o que percorria anteriormente. Mas se eles estavam tão certos que era para o meu bem, como poderia contrariá-los? Sem contar que, se não o fizesse, seria punido. Não me esclareceram, no entanto, que tipo de punição eu sofreria.
Dias depois, estava almoçando em minha casa, quando ouvi batidas na porta. Atendi. Eram eles. Traziam-me algumas viandas com variados tipos de comida, conforme verifiquei instantes depois. Imaginei que as viandas fossem o seu almoço. Convidei-os para entrar e almoçar. Recusaram, declarando que aquela comida não era para eles, mas para mim. Naturalmente, eu deveria pagar pela comida. E o fiz. Acrescentaram que já haviam se encarregado de realizar a encomenda de meu almoço, e que o mesmo seria entregue sempre por volta do meio-dia no meu endereço por um menino escolhido por eles. Eu deveria pagar o almoço ao menino. Todos os dias. E comer, ao menos durante o almoço, somente o que havia nas viandas.
Eram alimentos cuidadosamente escolhidos para a minha mais perfeita saúde. Retruquei que não gostava de vários alimentos que ali estavam. Responderam que isso não fazia diferença, eu deveria comer e me habituar a eles. Era para o meu próprio bem. Caso me recusasse a me alimentar somente com os alimentos das viandas, seria severamente punido. Tive que aceitar.
Quando abri a última das viandas (eram 5 no total), não havia comida ali, mas uma folha de papel cuidadosamente dobrada. Abri-a e li o seguinte:
“Senhor Gilberto, aqui está uma lista dos livros, revistas, músicas e filmes. São os que você deverá ler, ouvir, assistir durante este mês. Não é necessário ler todos os livros, ouvir todas as músicas, assistir a todos os filmes. Porém, o que senhor desejar ler, ouvir ou assistir, deverá estar incluído nessa lista. Nem é preciso que escrevamos que é para o seu próprio bem. E crescimento individual. Tudo o que está na lista foi selecionado pensando-se exclusivamente em seu bem-estar. É igualmente desnecessário que escrevamos que a punição oriunda do descumprimento destas determinações será exemplar. No mês seguinte, junto com alguma das viandas, virá a lista para o mês em questão. E assim sucessivamente. ”
No mesmo dia, providenciei alguns dos filmes, livros e músicas. Eu não gostava de quase nada do que estava na lista. Porém, estava certo de que, com o tempo, aprenderia a gostar, e que o benefício a mim trazido pelas obras seria extremamente recompensador.
Por vezes, desejava encontrá-los na rua para que eu pudesse agradecê-los por tamanha bondade e consideração por alguém tão insignificante quanto eu. Eu, que trabalho em uma indústria de móveis da manhã à noite e que recebo um salário não mais que razoável. Realmente, eu jamais teria tempo para pensar em todas essas coisas que eles têm pensado por mim. Tenho me sentido bem mais tranquilo. Fico imaginando o que devo ter feito de tão meritoso para receber a preocupação e dedicação deles. E chego à conclusão de que não fiz nada. Aliás, nada faço além de trabalhar e voltar para casa. Nos fins de semana, bebo, melhor dizendo, bebia, uma cervejinha com os amigos.
Digo que bebia, porque não o posso mais fazer. Para meu próprio bem. Há alguns dias, acordei com um telefonema às 3h da madrugada. Eram eles. Rapidamente, pois não podiam desperdiçar seu tempo, disseram-me que eu não deveria mais beber nenhuma bebida alcoólica. Eram nocivas, fosse para a minha saúde física, fosse para a psíquica. Nunca, jamais, eu deveria voltar a ingerir um gole sequer de álcool.
Também não deveria sair mais com meus amigos. No fundo, não eram meus amigos, eles sabiam. E eu deveria sentir-me grato por eles estarem agora me alertando, antes que fosse tarde demais. Antes que eu me perdesse e me transformasse em um ser inútil, absolutamente improdutivo para a sociedade. Exclamei que sim, que minha gratidão era infinita, e lembro que chorei ao telefone as mais sinceras lágrimas.
Então se despediram, muito polidamente, lembrando-me das severas punições em caso de desobediência e acrescentando que no dia seguinte eu receberia algo muito importante. Seria um manual, uma cartilha de como encontrar bons amigos. No final da cartilha, haveria uma breve lista com nomes, telefones e endereços de pessoas que seguramente seriam ótimos amigos para mim. Eu deveria procurá-los o mais rápido possível. Poucas vezes senti-me tão feliz em minha vida.
Certo dia, estava eu em um shopping, experimentando roupas em um provador de uma loja. Enquanto vestia a camiseta que provavelmente levaria, escuto um som de respiração, como se alguém estivesse muito próximo a mim. No meu lado esquerdo havia uma cortina. Parecia ser detrás dela que o som provinha. Abri-a. E ali estavam eles. Logo, declararam que estavam me observando, através de um pequeno orifício na cortina, enquanto eu experimentava as novas roupas. E, com um ar de profunda gravidade e decepção, que me estremeceu, disseram-me que não gostaram nem um pouco das roupas que eu estava pretendendo comprar. Eu não estava os agradando dessa forma. As roupas não combinavam comigo, garantiram, não podiam combinar. Elas não me deixariam melhor como pessoa. Eram de muito mau gosto.
Exclamei, bastante envergonhado, que, fosse como fosse, era o meu gosto pessoal. Eles não quiseram saber. De súbito, retiraram de seus paletós várias sacolas, cada uma com uma peça de roupa diferente. Disseram-me que, a partir daquele dia, para o meu próprio bem e crescimento individual, deveria usar aquelas roupas. E sempre que eu fosse comprar vestimentas novas, deveriam ser naquele estilo e com aquelas cores. Qualquer dúvida, deveria consultar um manual, uma cartilha de bem vestir-se que eles deixariam com a gerente da loja. Em caso de desobediência... eu já sabia. Claro que as roupas que eles me deram não eram de graça. Paguei por elas.
Levei-as comigo e experimentei-as somente em casa. De início, foi um choque. Senti-me verdadeiramente ridículo. Aquelas roupas não tinham nada a ver comigo. Porém, mantive firme minha força de vontade e segui as usando. Fui trabalhar com elas. Percebi que todos me olhavam na rua com sorrisinhos mal disfarçados e troçavam de como eu estava me vestindo. Mantive-me altivo e não dei atenção. Idiotas, pensei, que não sabem de nada. Se eles me garantiram, é porque assim eu estou bem melhor. De modo que os dias se passaram, segui usando aquelas roupas, adquirindo outras que não fugissem àquele estilo, e, ao fim das contas, nunca me senti tão bem vestido.
As semanas, os meses, os anos foram seguindo seu curso, e, de tempos, em tempos, eu os encontrava na rua, ou em algum local público, ou em meu trabalho, ou eles vinham até minha casa, com o nobre intuito de me transmitir mais instruções de como eu deveria viver, a melhor forma de se viver. E eles aproveitavam tais ocasiões para me inquirir. Desejavam saber se eu estava cumprindo com todas as determinações que me foram outorgadas. Garanti que sim, simplesmente porque era verdade. E mesmo que eu quisesse mentir, seria uma catástrofe, porque eles sempre sabiam de tudo. E então, com a mentira, a punição seria triplicada.
Questionavam-me apenas para verificar o meu nível de sinceridade. É óbvio que jamais os decepcionei, nunca deixei de agradá-los, sempre agi e me comportei de acordo com o que esperavam de mim, esforçava-me, em suprema abnegação, em mantê-los plenamente satisfeitos. Afinal, eles estavam sempre certos, a razão estava sempre com eles, suas opiniões eram as mais corretas, seus gostos, os mais perfeitos, suas ideias, as mais brilhantes. É assim, que posso fazer?
As últimas instruções que recebi referiam-se a uma lista das mulheres que eu poderia namorar e, posteriormente, casar-me. Não era uma lista longa, havia ali apenas cinco mulheres. Também não eram muito bonitas. No entanto, em hipótese alguma eu poderia escolher para namorar alguma mulher que não estivesse na lista. A punição seria impiedosa. Como deve ser, para que nos mantenhamos na linha. Ainda estou escolhendo qual delas será. Uma vez escolhida, não posso mais trocar. E a moça deve me aceitar em namoro. Ela não tem escolha. E é melhor realmente que não tenha, daria muita confusão. São as leis, justíssimas, para o nosso próprio bem.
É claro que desde que os conheci, minha vida tem se tornado difícil. Mas eu não reclamo, eu não protesto, jamais me rebelo, nunca questiono. Por que o faria? Sei que tudo o que eles fazem, os sacrifícios por mim e por tantos outros, todas as suas instruções, regras, ordens e disciplinas constituem um esforço tenaz em me tornar um exemplo de cidadão, um bom homem em todos os sentidos, cumpridor de seus deveres, um indivíduo correto, que conhece o seu lugar e as suas responsabilidades, que vive sua vida dentro da lei e da ordem estabelecidas e que, apesar de todos os percalços, é um homem satisfeito e bem sucedido.
Lembro que certa vez um antigo amigo, que, graças, nunca mais o vi, perguntou-me: “Mas como assim, eles decidem tudo por ti e tu achas bom?” Eu, sereno, limitei-me a responder: “É claro, por que não acharia, se assim sou feliz?”