Música e Literatura sempre andaram de mãos dadas. Desde os tradicionais lieder e óperas até as peças incidentais, balés, poemas sinfônicos etc. Uma das mais inusitadas união entre música e literatura foi a inclusão de um poema cantado por uma soprano no Quarteto para Cordas n°2, Op.10, de Arnold Schoenberg (1874-1951), escrito em 1908.
Até então, um quarteto para cordas, assim como a sinfonia antes da 9ª Sinfonia de Beethoven, era exclusivamente instrumental, sem interferências vocais. Schoenberg quebrou o paradigma incluindo uma soprano que canta o poema Êxtase do poeta alemão Stefan George (1868-1933) nos dois últimos movimentos da obra. O texto do poema, de características simbolistas e expressionistas, de versos sem métrica, é perfeitamente adequado à obra de Schoenberg, que é uma peça de transição do tonalismo para o atonalismo, o próprio quarteto vai se tornando cada vez mais atonal conforme se aproxima do fim (música atonal é aquela em que não há um tom, uma tonalidade predominante, quebrando, assim, a estrutura clássica em que se insere a música ocidental). Schoenberg foi um dos pioneiros da atonalidade.
O início do poema de Stefan George, "Sinto o ar de outros planetas", nos dá uma ideia bastante sugestiva daquela sensação de estranheza e obscuridade que a música atonal de Schoenberg nos passa, onde a quebra do centro tonal relaciona-se com a ausência ou diferenças de gravidade de um outro planeta ou de outras regiões do espaço, e ainda a ausência de referenciais terrestres do eu-lírico pode também relacionar-se à ausência de tonalidade, principalmente nos últimos movimentos, como sugere o poema em alguns trechos, tais como: "eu me desprendo em sons...", "sinto como se nadasse acima da última nuvem..." "E árvores e trilhas que amo me faltam/ De modo que mal as reconheço..." Música e Literatura envoltas em mistérios cósmicos.
Abaixo, o poema de Stefan George:
Êxtase
Sinto o ar de outros planetas.
Os rostos, gentilmente voltados para mim, desvanecem pálidos na
escuridão.
E árvores e trilhas que amo me faltam
De modo que mal as reconheço; e tu, brilhante e
Amada sombra – chamado de meus tormentos –
Agora estás apagada, extinta em ardor profundo
Para, depois da vertigem de um frenesi belicoso,
Animar-me com um piedoso arrepio.
Eu me desprendo em sons, circundando e tecendo infundados agradecimentos
[e impronunciáveis elogios.
Entrego-me ao Destino sem temores.
Quando me sobrevém uma impetuosa dor,
Na embriaguez da solenidade, onde imploram
[aos gritos
As rezadeiras, jogadas à poeira:
Então eu vejo como nuvens perfumadas de neblina
[se elevam
Em uma amplidão clara e ensolarada,
Que cerca apenas os cumes mais distantes das
[montanhas.
O solo treme branco e macio como coalhada...
Eu escalo penhascos pavorosos e
Sinto como se nadasse acima da última nuvem,
Em um mar de brilho cristalino –
Eu sou apenas uma fagulha do fogo sagrado.
Eu sou apenas um murmúrio da voz sagrada.
Stefan George
(Na imagem, Schoenberg pensando em como fazer mais música estranha.)