Ainda estou no clima dos 180 anos de Brahms. Decidi reelaborar este conto que escrevi em 2006. Vamos envelhecendo e amadurecendo. Creio que agora deixei melhor esta obra, da qual eu já gostava bastante. Agora, enquanto publico o conto, não escuto Brahms, mas a sua amada, escuto peças de Clara Schumann. Bom, basta de comentários. Aqui está o conto reelaborado. Mais uma simples homenagem que faço a Brahms.
É manhã. E caminho pelo
campo a descobrir o que é que me observa. E o campo é verde, vivo e vasto.
Alguém, algo, algum ser, de forma permanente e misteriosa, oculto sob o invisível,
vigia-me cheio de presságios... É aurora e o sol sobe como quem canta. E a
aurora é bela e fria. No céu imensamente azul, no céu estranhamente azul, uma
grande ave paira sobre meus sonhos. É ela que me observa? Porém quem é que toca
a Sinfonia nº. 1 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, porém
não sei de onde ela nasce.
Dos
grandes e roxos olhos da ave eu fito a saudade. E a ave parte ao longe sob o
sol que brilha e assim percebo que não é ela que me observa. Sol que brilha
como quem ama. Imperador , doador da vida, que também mantém fixo seus olhos de
luz, fogo e raio sobre minha consciência. Mas não é ele que me observa. À
medida que caminho por entre flores e enxames de borboletas, vejo que o astro
solar ascende entre o que existe, cintila sobre a tranquilidade escura e
iminente das folhas ancestrais das árvores das matas que avisto na distância do
meu desejo. E a cintilar nas árvores fêminas, o sol proclama com cristalinas
trombetas que não é ele que me observa, porque ele somente o faz durante o dia,
e quem me observa o fará eternamente... Porém quem é que toca o concerto para
piano nº. 2 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não
sei de onde ela nasce.
Vem
uma névoa do onde não é. Névoa densa e fria e longa e bela. Um céu nublado que
amorteceu a luz solar. E o sol se mortifica em benefício à sombra. Um gelado
estremecimento anímico traz consigo um inconcebível enigma... Que almas são
aquelas que diviso flutuando invisíveis por entre a neblina? Que dança de
espectros assoma solene ascendendo em alto cedro negro. Espíritos brancos e
céleres valsam em perfeito equilíbrio e simetria e miram meus olhos, mas não
são eles que me observam, apesar de tão fantástico espetáculo. Quem é que berra
dentro do bosque? Bosque em sonhos, sombrio. Contudo não sou eu que sonho. Porém
quem é que toca o Trio para piano, violino e violoncelo n°1de Brahms? Sim,
porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.
É
Tarde. Sinto que parte minha inspiração, ainda que permaneça ouvindo tantos
gritos e grunhidos e rugidos e urros e gemidos e lamentos e murmúrios e
sussurros que caem e sobem, que vão e voltam, que voam e brilham, que crescem e
morrem, que dançam e beijam na tarde em névoa da mata inaudita. E sei que não
são essas coisas que me observam. Há segredos e arcanos inacessíveis por trás
de tão largo labirinto. Porém, quem é que toca o quarteto para piano e cordas
nº. 3 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus tímpanos, mas não sei de
onde ela nasce.
Correu
por entre o tenso um gato-do-mato. Dizem que há algo que não é nos olhos dos
felinos. Escondeu-se atrás de um cipreste. Que nuvens etéreas se evolam daquele
cipreste, carregadas de intensa paixão desesperada?... No entanto, a paixão não
é minha. Talvez eu perca minha paixão. Sei que a vertigem em um dos galhos do
cipreste mergulha na emotividade psíquica daquelas nuvens vermelhas que não sei
de onde caem. Só sei que não existem ciprestes em nossas matas nativas...
Portanto, não é nem o gato nem o cipreste que me observam. E nem mesmo aquele
seres inclassificáveis que agora cruzam montados em lobos-guarás. Porque eu os
conheço. Avistando as longínquas colinas e coxilhas longas e adormecidas sob as
nuvens densas, tensas, nervosas e carregadas, eu sei que não é ele. Seu sorriso
lembra algo absolutamente familiar. Eu, um cavaleiro de uma coroa perdida há
muitos séculos, eu, um nada absoluto, fitando os cavalos e as ovelhas pastarem
ao longe... Sei que não pode ser ele. Porém, quem é que toca o Concerto para
Violino de Brahms Op.77 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus
tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.
Inverno magnífico e trágico! Vejo teus olhos
com febre nos horizontes. Olhos que choram e sangram lilases. Talvez sejam eles
que me observam. Talvez eu esteja atingindo o ápice do segredo, o auge de todos
os enigmas e mistérios... Mas não... O que é que importa? Porém quem é que toca
o Quarteto para Cordas n°1 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus
tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.
A
névoa se dissipa. Meu coração se acalma e segue batendo lento, muito lento,
sublimemente lento, canhestramente lento. Já que não sou mais eu. Sou talvez
uma possibilidade de fuga. Aqueles perfumes balsâmicos dos pântanos e arbustos
já assombrados e alarmados surgem melancólicos, enquanto o sol asfixiado em
incensos desmaia cantando no chumbo, no verde, no roxo do céu de ocaso.
Simultaneamente, aos berros de sapos, uma lua titânica surge em plenilúnio, carregada,
fantasmagórica, ascendendo rápido por entre invisibilidades e nimbos. Inauditamente
amarela e dourada. Uma lua noturna nasce triunfante e pungente. Quantos anseios
e ânsias, e desejos e sonhos cavalgam com ela naquele conhecido dramático
tropel? E quem é que me observa? E quantos fantasmas violinam no crepúsculo
tardio que avança? E quantos seres que não sei que seres dançam nas nuvens
avermelhadas, arroxeadas, acinzentadas e inflamadas na noite que ainda não é?
Que Dança Fatal é esta que me inquieta e perturba? Divina ou demoníaca? Porém quem
é que toca o Quinteto op. 34 de Brahms? Sim, porque vibra essa obra em meus
tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.
E
aquela lua onírica que me observa? E aquela lua de vinho? E aquela noite em que
te amo? E aquela coruja? Aquela noite sangrenta... Aquela lua de lábio...
Aquelas estrelas de Eros... Aquele longe de alma... Aquele vento de olhos... Aqueles
astros pagãos... Aquela noite que é tua. Mas não é ela que me vigia, que me
contempla, que me observa. Aquela lua não é a lua. Aquela lua é um sinal,
talvez Trono, talvez Virtude. Talvez Deusa-Mãe. E dela goteja o que sonhei. Grotescos
sentimentos. Gotejam olhos e tristezas de distante. Existências que se calamitam.
Coisas rubras ao redor das árvores se abraçam com as minhas aspirações
inexistentes, estranhamente velhas, nunca-vistamente verdes. E quem é que me
observa? Porém quem é que toca o Réquiem Op.45 de Brahms. Sim, porque vibra
essa obra em meus tímpanos, mas não sei de onde ela nasce.
Ainda não é
noite, é quase. Subindo, eu fito a noite se menstruando de onde partem
sussurros e músicas em surdina, e cantos de despedaçados espíritos, e sonhos de
amores fatais, febres de inflamações cardíacas, tragédias de sublimes
arquétipos do espaço infinito, da eternidade que assombra, de beijos sanguíneos
na boca, na língua, que pairam nos dilacerados outonos entristecidos. Vejo
olhos em todos os cantos, em todos os rios, em todas as matas, em todos os céus,
em todos os seres! Quem é que me observa? E quem é que toca Brahms? Quem é que
toca Brahms numa tormenta apocalíptica, a febre de Brahms, a fúria de Brahms, o
sonho de Brahms! Quem é que toca Brahms, quem é que me observa? A Tristeza? A Tragédia?
A Paz? A Força? A Paixão? A Tempestade? De Brahms? Que jamais se rende, que
jamais se verga, que jamais se entrega!
Sim,
porque vibra a Sinfonia nº. 4 de Brahms em meus tímpanos, e agora eu sei de
onde ela nasce... É tu que tocas, é tu que me observas...
É
Noite. E pela primeira vez sinto medo, pois estou no escuro da Noite e sei
que é tu que me observas... Eu sigo meu caminho, olhando-te, somente com a lâmpada
daquela nota em dó menor...