O
recente caso das redações do ENEM para as quais, apesar de alguns erros de
ortografia, pontuação, concordância e de fugirem aos critérios de construção de
textos dissertativos, com inserções indevidas, foram dadas notas relativamente
altas, faz-me escrever sobre algo que há bastante tempo venho pensando.
Independentemente dos objetivos dos candidatos ao escreverem seus textos e da
nota que os textos deveriam receber, uma coisa é certa: a educação brasileira,
ao avaliar, e não só ao avaliar, é injusta no sentido de que somente valoriza
um dos aspectos dos saberes e das inteligências humanas.
Os
encarregados de corrigir os textos do ENEM alegaram que a nota atribuída aos
mesmos foi devido à criatividade que dizem ter encontrado nas dissertações. O
problema é que a dissertação é uma categoria de texto onde há pouco espaço para
a criatividade. No entanto, por mais fora das regras e distante dos critérios
exigidos que tenham sido os textos, não há como negar que foi criativo o
estudante que inseriu uma receita de miojo, de forma totalmente aleatória, em
meio à sua dissertação. Foi uma forma eficaz de chamar a atenção, de estabelecer
um determinado choque. Tanto é que o texto entrou em discussão.
Em
1985, o psicólogo Howard Gardner criou a Teoria das Inteligências Múltiplas. Na
verdade, Gardner estabeleceu de forma sistematizada um pensamento que se
encontrava em nosso inconsciente coletivo: o de que os seres humanos não podem
ser mensurados ou avaliados somente pela inteligência lógico-formal e pelo acúmulo
de conhecimentos, muitas vezes apenas memorizados. Abaixo, as inteligências
múltiplas estabelecidas por Gardner (aqui, a fonte):
Inteligência
linguística - Os componentes centrais da inteligência linguistica são uma
sensibilidade para os sons, ritmos e significados das palavras, além de uma
especial percepção das diferentes funções da linguagem. É a habilidade para
usar a linguagem para convencer, agradar, estimular ou transmitir ideias.
Gardner indica que é a habilidade exibida na sua maior intensidade pelos
poetas. Em crianças, esta habilidade se manifesta através da capacidade para
contar histórias originais ou para relatar, com precisão, experiências vividas.
Inteligência
musical - Esta inteligência se manifesta através de uma habilidade para
apreciar, compor ou reproduzir uma peça musical. Inclui discriminação de sons,
habilidade para perceber temas musicais, sensibilidade para ritmos, texturas e
timbre, e habilidade para produzir e/ou reproduzir música. A criança pequena
com habilidade musical especial percebe desde cedo diferentes sons no seu
ambiente e, frequentemente, canta para si mesma.
Inteligência
lógico-matemática - Os componentes centrais desta inteligência são descritos
por Gardner como uma sensibilidade para padrões, ordem e sistematização. É a
habilidade para explorar relações, categorias e padrões, através da manipulação
de objetos ou símbolos, e para experimentar de forma controlada; é a habilidade
para lidar com séries de raciocínios, para reconhecer problemas e resolvê-los.
É a inteligência característica de matemáticos e cientistas Gardner, porém,
explica que, embora o talento cientifico e o talento matemático possam estar
presentes num mesmo indivíduo, os motivos que movem as ações dos cientistas e
dos matemáticos não são os mesmos. Enquanto os matemáticos desejam criar um
mundo abstrato consistente, os cientistas pretendem explicar a natureza. A
criança com especial aptidão nesta inteligência demonstra facilidade para
contar e fazer cálculos matemáticos e para criar notações práticas de seu
raciocínio.
Inteligência
espacial - Gardner descreve a inteligência espacial como a capacidade para
perceber o mundo visual e espacial de forma precisa. É a habilidade para
manipular formas ou objetos mentalmente e, a partir das percepções iniciais,
criar tensão, equilíbrio e composição, numa representação visual ou espacial. É
a inteligência dos artistas plásticos, dos engenheiros e dos arquitetos. Em crianças
pequenas, o potencial especial nessa inteligência é percebido através da
habilidade para quebra-cabeças e outros jogos espaciais e a atenção a detalhes
visuais.
Inteligência
cinestésica - Esta inteligência se refere à habilidade para resolver problemas
ou criar produtos através do uso de parte ou de todo o corpo. É a habilidade
para usar a coordenação grossa ou fina em esportes, artes cênicas ou plásticas
no controle dos movimentos do corpo e na manipulação de objetos com destreza. A
criança especialmente dotada na inteligência cinestésica se move com graça e
expressão a partir de estímulos musicais ou verbais demonstra uma grande
habilidade atlética ou uma coordenação fina apurada.
Inteligência
interpessoal - Esta inteligência pode ser descrita como uma habilidade pare
entender e responder adequadamente a humores, temperamentos motivações e
desejos de outras pessoas. Ela é melhor apreciada na observação de
psicoterapeutas, professores, políticos e vendedores bem sucedidos. Na sua
forma mais primitiva, a inteligência interpessoal se manifesta em crianças
pequenas como a habilidade para distinguir pessoas, e na sua forma mais
avançada, como a habilidade para perceber intenções e desejos de outras pessoas
e para reagir apropriadamente a partir dessa percepção. Crianças especialmente
dotadas demonstram muito cedo uma habilidade para liderar outras crianças, uma
vez que são extremamente sensíveis às necessidades e sentimentos de outros.
Inteligência
intrapessoal - Esta inteligência é o correlativo interno da inteligência
interpessoal, isto é, a habilidade para ter acesso aos próprios sentimentos,
sonhos e ideias, para discriminá-los e lançar mão deles na solução de problemas
pessoais. É o reconhecimento de habilidades, necessidades, desejos e
inteligências próprios, a capacidade para formular uma imagem precisa de si
próprio e a habilidade para usar essa imagem para funcionar de forma efetiva.
Como esta inteligência é a mais pessoal de todas, ela só é observável através
dos sistemas simbólicos das outras inteligências, ou seja, através de
manifestações linguisticas, musicais ou cinestésicas.
Em
nenhum ser humano, tais inteligências atuam de forma isolada, porém os
indivíduos diferem substancialmente quando a questão é saber qual delas é a preponderante.
Em alguns pode ser a lógico-matemática, em outros, a linguística, em outros, a
interpessoal. E em meio a todas essas manifestações da inteligência está a
imaginação, a criatividade, a capacidade de perceber e de estabelecer o novo, o
que irá modificar as regras, talvez chocar, despertar consciência. Afinal, sem
o advento do novo, não há nenhum tipo de evolução. Em nenhuma área. Já dizia
Einstein que “a imaginação é mais importante que o conhecimento”. Contudo, ao
avaliarmos um estudante para o ingresso em uma universidade, e mesmo ao
avaliarmos os estudantes das escolas de Ensino Básico, quais dessas
inteligências são avaliadas? Parece-me que quase tão somente a inteligência
lógico-matemática. Talvez um pouquinho da linguística. Pergunto: é justo?
É
justo que o estudante que possua em alto grau, por exemplo, a inteligência
interpessoal e a intrapessoal e em menor a lógico-matemática seja avaliado e,
portanto, julgado, apenas pelo seu ponto fraco? E, por exemplo, onde entra a
valorização da imaginação, da capacidade de criar? Então, só é bom, produtivo,
inteligente, capaz, o estudante que, mesmo sem criatividade alguma e sendo um
completo imbecil nas outras inteligências, domina o raciocínio lógico e a
estruturação mental do conhecimento? Não estamos privilegiando determinadas
pessoas em detrimento de outras? Que tipo de sociedade “justa” estamos criando?
E mais: por que a seleção, nas universidades, é quase sempre padronizada, se
cada curso tem características próprias que, muitas vezes, são diametralmente
opostas às características de outros?
E
não me refiro somente à educação brasileira, mas ao sistema educacional como um
todo, de toda a humanidade. Por que julgamos como “bons” os racionais e não os imaginativos e não os que possuem grande sensibilidade? Não estaria aí uma das causas da desumanização da sociedade contemporânea? Como avaliar, e, portanto,
julgar, de uma maneira inteiramente nova, revolucionária? São perguntas que
deixo, apenas perguntas.
4 comentários:
Alguns conceitos precisam ser repensados, e outros, simplesmente, pensados... bom dia!
Colega, gosto da tua escrita e concordo com tudo o que escreveste sobre a sensibilidade de considerar os vários tipos de inteligência e privilegiar cada um deles. O que me parece preocupante é a cultura de exigir cada vez menos, em termos de desenvolvimento de competências, dos alunos. Infelizmente nossa forma de avaliação mais utilizada ainda é a "prova" e sua consequente "nota". Realmente uma avaliação muito parcial e que não contempla todos os tipos de competências humanas. Acontece que "politicamente" é importante ao governo, tanto federal como estadual, que o índice de reprovação emagreça muito (devido à repasses, verbas, empréstimos, etc que só são concedidos quando há minimamente atendida a satisfação dos índices de aprovação na educação). Tanto é que ao que me parece, as escolas públicas de ensino médio têm políticas que evidenciam a NÃO reprovação de alunos. É uma infelicidade, considerando que oferta-se menos exigências para o desenvolvimento dos alunos, avlia-se menos, evolui-se menos, e tudo pode estar relacionado à políticas economicas. Vê-se mais acesso à educação e menos qualidade nela.
Assisti uma entrevista com uma avaliadora e ela disse que eles são instruídos a relevar alguns erros, porque o aluno não pode zerar a nota da prova, para que tenha novas oportunidades futuras. Os gaiatos sabem disso, pois sim? Não acho que fez por inspiração ou qualquer tipo de inteligência. Até acho que ler e escrever é o básico para todos!! Entramos na escola para isso e erros ortográficos quer dizer no mínimo que o aluno não tem o hábito da leitura.
Posteriormente ao ensino básico e as chatices das provas, cada pessoa deve fazer aquilo que bem apetece com os dons e inteligências que possui, antes disso tem que respeitar as regras.
Bom fim de semana!!
Sim, Luma, mas essas regras benefeciam alguns e esquecem de outros. As regras foram feitas por quem e para quem? Quem determinou que o correto seria assim e não de outro jeito? Por que deve valer mais saber a fórmula de báskara do que ter sensibilidade para ouvir uma sinfonia de Beethoven? E vejam bem, eu não estou dizendo que o ensino deve ser afrouxado, muito pelo contrário, estou dizendo que ele dever ser diversificado, tornado mais amplo e justo. A discussão que proponho partiu dos textos do ENEM, mas o que trato é de algo muito mais profundo, que fica mascarado pelo aparente "inquestionabilidade" das "regras" do que deve ser "aprendido".
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