01 dezembro 2008

O Poema mais Trágico

Qual o poema mais trágico da literatura brasileira? O amigo leitor já pensou a respeito? Certamente, é uma decisão dificílima, ainda que a literatura brasileira não seja lá tão trágica, se compararmos com a alemã, com a inglesa, com a francesa... Nas américas, eu escolheria "O Corvo", de Poe, como o mais trágico poema. Mas ficando apenas no Brasil, qual escolher? Pensei bastante a respeito, e entre os poetas que conheço oscilei entre obras de Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Fagundes Varela, Alphonsus de Guimaraens, Emiliano Perneta, entre alguns trágicos poemas de nosso Modernismo e Pós-modernismo, entre obras de alguns autores bem pouco conhecidos, enfim, analisei um quantidade razoável de poemas dentro de minhas possibilidades, mas acabei me decidindo pela poesia do talvez mais famoso de nossos poetas sombrios: Álvares de Azevedo. De fato, ele compôs um poema que é insuperável no quesito "tragicidade"(na minha opinião, que isso fique bem claro, afinal sempre haverá divergências naturais e compreensíveis, até porque eu não posso conhecer todos os poemas escritos no Brasil). E mesmo que o poema abaixo não seja o mais trágico entre os brasileiros, pois trata-se de uma análise obviamente subjetiva, como não pode deixar de ser em artes, é fato incontestável que muito dificilmente alguma obra em verso superará o profundo e radical desespero e melancolia deste escrito azevediano, o clima desolador de perda e de fim, a densidade perturbadoramente sombria de um universo emocional carregado de devastadores desejos e inquietações sem resposta e que se chocam fatalmente contra um mundo sem sentido. A seguir, o poema que, na minha humilde decisão, é o mais trágico da literatura brasileira. Se alguém quiser deixar sua contribuição, citando algum outro poema brasileiro que seja mais trágico do que este, sinta-se à vontade, será muito bem-vindo.

Lágrimas de Sangue

Ao pé das aras no clarão dos círios
Eu te devera consagrar meus dias;
Perdão, meu Deus! perdão
Se neguei meu Senhor nos meus delírios
E um canto de enganosas melodias
Levou meu coração!

Só tu, só tu podias o meu peito
Fartar de imenso amor e luz infinda
E uma Saudade calma;
Ao sol de tua fé doirar meu leito
E de fulgores inundar ainda
A aurora na minh'alma.

Pela treva do espírito lancei-me,
Das esperanças suicidei-me rindo...
Sufoquei-as sem dó.
No vale dos cadáveres sentei-me
E minhas flores semeei sorrindo
Dos túmulos no pó.

Indolente Vestal, deixei no templo
A pira se apagar — na noite escura
O meu gênio descreu.
Voltei-me para a vida... só contemplo
A cinza da ilusão que ali murmura:
Morre! — tudo morreu!

Cinzas, cinzas... Meu Deus! só tu podias
À alma que se perdeu bradar de novo:
Ressurge-te ao amor!
Malicento, da minhas agonias
Eu deixaria as multidões do povo
Para amar o Senhor!

Do leito aonde o vício acalentou-me
O meu primeiro amor fugiu chorando.
Pobre virgem de Deus!
Um vendaval sem norte arrebatou-me,
Acordei-me na treva... profanando
Os puros sonhos meus!

Oh! se eu pudesse amar!... — É impossível!
Mão fatal escreveu na minha vida;
A dor me envelheceu.
O desespero pálido, impassível
Agoirou minha aurora entristecida,
De meu astro descreu.

Oh! se eu pudesse amar! Mas não:
agora que a dor emurcheceu meus breves dias,
Quero na cruz sangrenta
Derramá-los na lágrima que implora,
Que mendiga perdão pela agonia
Da noite lutulenta!

Quero na solidão — nas ermas grutas
A tua sombra procurar chorando
Com meu olhar incerto:
As pálpebras doridas nunca enxutas
Queimarei... teus fantasmas invocando
No vento do deserto.

De meus dias a lâmpada se apaga:
Roeram meu viver mortais venenos;
Curvo-me ao vento forte.
Teu fúnebre clarão que a noite alaga,
Como a estrela oriental me guie ao menos
Té o vale da morte!

No mar dos vivos o cadáver bóia
— A lua é descorada como um crânio,
Este sol não reluz:
Quando na morte a pálpebra se engóia,
O anjo se acorda em nós — e subitâneo
Voa ao mundo da luz!

Do val de Josafá pelas gargantas
Uiva na treva o temporal sem norte
E os fantasmas murmuram...
Irei deitar-me nessas trevas santas,
Banhar-me na friez lustral da morte
Onde as almas se apuram!

Mordendo as clinas do corcel da sombra,
Sufocado, arquejante passarei
Na noite do infinito.
Ouvirei essa voz que a treva assombra,
Dos lábios de minh'alma entornarei
O meu cântico aflito!

Flores cheias de aroma e de alegria,
Por que na primavera abrir cheirosas
E orvalhar-vos abrindo?
As torrentes da morte vêm sombrias,
Hão de amanhã nas águas tenebrosas
Vos rebentar bramindo.

Morrer! morrer! É voz das sepulturas!
Como a lua nas salas festivais
A morte em nós se estampa!
E os pobres sonhadores de venturas
Roxeiam amanhã nos funerais
E vão rolar na campa!

Que vale a glória, a saudação que enleva
Dos hinos triunfais na ardente nota,
E as turbas devaneia?
Tudo isso é vão, e cala-se na treva
— Tudo é vão, como em lábios de idiota
Cantiga sem idéia.

Que importa? quando a morte se descarna,
A esperança do céu flutua e brilha
Do túmulo no leito:
O sepulcro é o ventre onde se encarna
Um verbo divinal que Deus perfilha
E abisma no seu peito!

Não chorem! que essa lágrima profunda
Ao cadáver sem luz não dá conforto...
Não o acorda um momento!
Quando a treva medonha o peito inunda,
Derrama-se nas pálpebras do morto
Luar de esquecimento!

Caminha no deserto a caravana,
Numa noite sem lua arqueja e chora...
O termo... é um sigilo!
O meu peito cansou da vida insana;
Da cruz à sombra, junto aos meus, agora
Eu dormirei tranqüilo!

Dorme ali muito amor... muitas amantes,
Donzelas puras que eu sonhei chorando
E vi adormecer.
Ouço da terra cânticos errantes,
E as almas saudosas suspirando,
Que falam em morrer...

Aqui dormem sagradas esperanças,
Almas sublimes que o amor erguia...
E gelaram tão cedo!
Meu pobre sonhador! aí descansas,
Coração que a existência consumia
E roeu um segredo! ...

Quando o trovão romper as sepulturas,
Os crânios confundidos acordando
No lodo tremerão.
No lodo pelas tênebras impuras
Os ossos estalados tiritando
Dos vales surgirão!

Como rugindo a chama encarcerada
Dos negros flancos do vulcão rebenta
Golfejando nos céus,
Entre nuvem ardente e trovejada
Minh'alma se erguerá, fria, sangrenta,
Ao trono de meu Deus...

Perdoa, meu Senhor! O errante crente
Nos desesperos em que a mente abrasas
Não o arrojes p'lo crime!
Se eu fui um anjo que descreu demente
E no oceano do mal rompeu as asas,
Perdão! arrependi-me!

Álvares de Azevedo

3 comentários:

Micheli Pissollatto disse...

Realmente muito trágico.
Me fez pensar sobre minha vida, estes versos principalmente:
"Se eu fui um anjo que descreu demente
E no oceano do mal rompeu as asas,
Perdão! arrependi-me!"
É, digamos que, perfeito.

Rúbida Rosa disse...

Um Poema "Suavemente Trágico" do simbolista Alphonsus de Guimarães:

Ismália

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

Mell Borba disse...

Gosto desse, mas de fato para mim o mais trágico é "Desencanto", de Manuel Bandeira.

Desencanto

Eu faço versos como quem chora
De desalento , de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto

Meu verso é sangue , volúpia ardente
Tristeza esparsa , remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota à gota do coração.

E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca

Eu faço versos como quem morre.
Qualquer forma de amor vale a pena!!
Qualquer forma de amor vale amar!
(Manuel Bandeira)