- Eu sei que vou morrer. Não preciso da tua ajuda. Eu sou o último. E quando eu morrer, morrerá comigo o meu povo. O meu povo era o mais bravo desta terra que tu agora pisas. O meu povo era o dono desta terra. E o meu sangue, que se mistura a ela agora, faz parte dela e a ela voltará. Vocês, que agora pisam na terra que era nossa, são uns covardes. Não souberam lutar como verdadeiros guerreiros, vieram aos milhares para massacrar meu povo com armas de covardes. Mas nós resistimos até a última gota de sangue, e a última gota será a minha.
- Sim, mas isso faz muito tempo, eu nem era nascido, nem meus avós o eram. Eu não tenho nada a ver com isso, sinto muito pelo teu povo, mas só o que posso fazer agora é te ajudar...
- Eu desprezo a tua ajuda. Vocês queriam nos fazer de escravos, mas não conseguiram, nós resistimos até o último homem, e o último homem sou eu. Queriam nos pacificar, nos domesticar, nos impedir de correr livres e soberanos pelos campos. Pelos campos que eram nossos. Mas nós, nós não permitimos. Nós preferimos a morte a ser domados pela covardia e pela desonra do teu povo. Queriam nos impor os seus costumes, seus hábitos, suas crenças, mas não conseguiram. Vocês são fracos. Tão fracos que fomos nós que empurramos a vocês o que nós somos, ou éramos.
- Sinceramente, eu não estou te entendendo...
- O teu povo não conseguiu fazer com que nós vivêssemos como vocês queriam. Nós resistimos, lutamos até a morte, como os guerreiros terríveis que somos, matamos muitos dos de vocês, vendemos muito caro o nosso fim, mas jamais fomos domados. Somos da guerra, da luta, somos livres como o vento, fortes como o sangue. Mas vocês, vocês agora querem ser como nós... Até os nossos costumes vocês pegaram pra vocês, querem nos imitar. O churrasco que vocês comem, fomos nós que inventamos, a carne assada com fogo de chão em espeto de pau. O mate, o mate é nosso! A erva-mate faz parte do nosso sangue. E essas boleadeiras que vocês usam? E o xiripá? E o pala? Tudo nosso, tudo foi imitado do meu povo. Vocês quiseram nos impor os costumes de vocês... Haha! Mas, no final, foram vocês que se dobraram aos nossos. Porque nós nunca nos dobramos, nunca nos curvamos!
- Sim, devo confessar que tu tens razão... Muitos dos costumes dos gaúchos foram herança de alguns grupos indígenas do pampa. Mas... me diga quem és tu? De onde vens, qual tua tribo? Jamais soube que tivesse índios por aqui...
- E olha agora para estes campos, estas matas, estes rios estes animais... Eles estão todos morrendo, vocês, povo de covardes, estão os matando. O meu povo amava tudo isso. Eu falava com os animais, sim, eu os compreendia, e eles me compreendiam. E foi por conversar com os animais que nos tornamos grandes cavaleiros, os melhores destes campos. Eu conversava com as plantas, com as árvores, tratava-as com amor, como se fossem gente, e elas me curavam das minhas doenças. Eu falava com as águas, com os ares, com a terra, eu sabia que eles também tinham alma, eu falava com a alma deles. E assim eles nos ajudavam, e assim meu povo vivia, em paz com a natureza e com seus filhos.
Mas o teu povo de covardes, o teu povo sem respeito, sem honra, sem alma, não vê alma na natureza, só vê nela coisas a serem usadas, a serem destruídas. O teu povo está espalhando a morte por estes campos, matas e rios. E quem espalha morte vai colher morte. E é o que virá pra vocês. Vocês pensam que a natureza e seus filhos ficarão quietos pra sempre, que eles não irão se erguer para impor a sua força de justiça... Mas eles virão, eles se erguerão com fúria e colocarão tudo novamente em seu devido lugar. Então eu terei pena de vocês... Não, não terei pena nenhuma, o teu povo terá o que merece. Eu sinto no ar, sinto o cheiro da guerra que a natureza prepara aos poucos...
- Sim, mas...
- Ah, tu queres saber quem eu sou... Eu sou o último. O último dos Minuanos, os índios mais bravos, os mais guerreiros, os mais indomáveis que já pisaram estes campos. Aqueles que foram covardemente massacrados por vocês com suas armas de fogo e com muitos mais homens do que nós. Mas o meu sangue, o nosso sangue está vivo, e vivo ele volta a esta terra de que faz parte e fará parte da guerra que virá, fará parte da nossa vingança...
E após alguns opressivos segundos, o índio faleceu, esvaído em sangue. Tentei, então, aproximar-me de seu cadáver para examinar alguns sinais estranhos desenhados em seus braços, mas nesse instante... me acordei. Sim, estive desacordado por todo esse tempo, completamente inconsciente, que creio que não foi muito longo, pois ainda raiava o sol.
Acredito que por efeito de alguma substância tóxica do espinho perdi a consciência por alguns minutos. Então, o índio e toda a sua conversa não passaram de alucinação? Sonhei? Tive uma visão? Seja como for, tudo me pareceu pungentemente real. Tão real quanto o meu sangue que ainda estava sobre as pedras da margem do rio, o meu sangue, em que há o sangue dos índios do pampa...
(Obs.: as 7 histórias que compõem esta série estão relacionadas entre si, mas são independentes, ou seja, uma não é a sequência da outra. Todas as histórias são baseadas em fatos reais e misteriosos da história do RS, mas seu desenvolvimento é fictício. A 7ª história ainda não foi finalizada.)